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Guerras e capital

Introdução ao livro Guerres et capital, lançado por Éric Alliez e Maurizio Lazzarato pela ed. Amsterdam (Paris: 2016) | Trad. UniNômade

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Introdução aos nossos inimigos

1. Nós vivemos no tempo da subjetivação das guerras civis. Não saímos ainda do período do triunfo do mercado, dos automatismos da governamentalidade e da despolitização da economia da dívida, para reviver a época das “concepções de mundo” e seus enfrentamentos. Nós entramos na era da construção de novas máquinas de guerra.

2. O capitalismo e o liberalismo trazem a guerra na barriga como as nuvens trazem a tempestade. Se a financeirização do fim do século 19 e do começo do 20 conduziu à guerra total e à Revolução Russa, à crise de 1929 e às guerras civis europeias, a financeirização contemporânea nos leva à guerra civil global reconfigurando todas as suas polarizações.

3. Desde 2011, as múltiplas formas de subjetivação das guerras civis mudaram profundamente tanto a semiologia do capital, quanto a pragmática das lutas que se opõem aos mil poderes da guerra enquanto quadro permanente da vida. Do lado das experimentações de máquinas anticapitalistas, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, os Indignados na Espanha, as lutas estudantis no Chile e no Quebec, a Grécia de 2015, todos se batem em situação de disparidade de armas contra a economia da dívida e as políticas de austeridade. As “primaveras árabes”, as grandes manifestações de 2013 no Brasil e os enfrentamentos ao redor do Parque Gezi na Turquia fizeram circular as mesmas palavras de ordem e de desordem dos vários Sul globais. O movimento do Nuit Debout na França foi o último sobressalto de um ciclo de lutas e ocupações que talvez tenha começado na Praça Tiananmen, em 1989.

Do lado do poder, para melhor alastrar o fogo das suas políticas econômicas predatórias, o neoliberalismo promove uma pós-democracia autoritária e policialesca, gerida pelos técnicos do mercado, ao mesmo tempo que as novas direitas declaram guerra ao estrangeiro, ao imigrante, ao muçulmano e às camadas mais pobres, para o único proveito das direitas extremas “desdiabolizadas”. São estas últimas que voltam a instalar-se no terreno das guerras civis que elas conseguem subjetivar por meio do reinício de uma guerra racial de classe. A hegemonia neofascista sobre os processos de subjetivação ainda é confirmada pela retomada da guerra contra a autonomia das mulheres e dos devires-menores da sexualidade (na França, a frente conservadora La Manif pour tous), como uma extensão do domínio endocolonial da guerra civil.

À era da desterritorialização sem limites de Thatcher e Reagan, sucede a reterritorialização racista, nacionalista, sexista e xenófoba de Trump, que já assumiu a dianteira de todos os novos fascismos. O sonho americano se transformou no pesadelo de um planeta insone.

4. É flagrante o desequilíbrio entre as máquinas de guerra do Capital e dos novos fascismos, por um lado, e as lutas proteiformes contra o sistema mundo do novo capitalismo, do outro. Desequilíbrio político, mas também intelectual. Este livro se concentra sobre um vazio, uma clareira, uma inibição teórica bem como prática, que está,  ainda assim, no coração das potências e impotências dos movimentos revolucionários: os conceitos de “guerra” e de “guerra civil”.

5. “É como uma guerra”, ouvimos dizer em Atenas durante o fim de semana de 11-12 de julho de 2015. Com razão. A população se viu confrontada por uma estratégia de grande escala para a continuação da guerra pelos meios da dívida, que completou a destruição da Grécia e, na mesma tacada, pôs em marcha a autodestruição da “construção europeia”. O objetivo da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional nunca foi a mediação ou a busca de um compromisso, mas a derrota do adversário em campo aberto.

O enunciado “como uma guerra” é uma imagem que precisamos arrumar de uma vez: é uma guerra. A reversibilidade entre guerra e economia está na própria base do capitalismo. E já faz um bom tempo que Carl Schmitt revelou a hipocrisia “pacifista” do liberalismo, ao sublinhar a continuidade entre a economia e a guerra: a economia persegue os objetivos da guerra por outros meios (o racionamento do crédito, o embargo sobre as matérias primas, a desvalorização da moeda estrangeira).

Dois oficiais superiores da força aérea chinesa, Qiao Liang e Wang Xiangsui, definem as ofensivas financeiras como “guerras sem sangue”, tão cruéis e eficazes quanto as “guerras sangrentas”: uma violência a frio. O resultado da globalização, eles explicam, “ao reduzir o espaço do campo de batalha em sentido estrito, tudo, o mundo inteiro se tornou um campo de batalha em sentido amplo”. A ampliação da guerra e a multiplicação de seus nomes terminam por estabelecer uma linha contínua entre guerra, economia e política. A verdade é que, desde o princípio, o liberalismo foi uma filosofia de guerra total.

(O Papa Francisco parece pregar no deserto quando declara, com uma lucidez que falta aos políticos, aos especialistas de todos os tipos e até aos críticos mais duros contra o capitalismo: “Quando falo de guerra, falo de guerra verdadeira, não da guerra de religião, mas de uma guerra mundial  em mil pedaços (…) É a guerra pelos interesses, pelo dinheiro, pelos recursos naturais, pela dominação sobre os povos.”)

6. Durante aquele mesmo ano de 2015, alguns meses depois da derrota da “esquerda radical” grega, o presidente francês declarou na tarde de 13 de novembro que a França estava “em guerra” e promulgou um estado de emergência. A lei o autorizava, e autorizava a suspensão das “liberdades democráticas”, a fim de conferir poderes “extraordinários” à administração da segurança pública, conforme uma lei aprovada em 1955, tempos da guerra colonial da Argélia. Aplicada em 1984 na colônia da Nova Caledônia e, depois, como resposta aos “motins da periferia” de Paris em 2005, o estado de emergência repõe no centro da cena a guerra colonial e pós-colonial.

O que aconteceu em Paris numa noite ruim de novembro é o dia a dia nas cidades do Oriente Médio. É o mesmo horror que leva milhões de refugiados a desaguar na Europa. Dessa maneira, eles expõem a mais velha das tecnologias colonialistas de regulação dos movimentos migratórios, por meio de seu prolongamento “apocalíptico” nas “guerras infinitas” lançadas pelo fundamentalista cristão George Bush e seu estado-maior de neocons. A guerra neocolonial não ocorre mais simplesmente nas “periferias” do mundo. Ela atravessa de todas as maneiras possíveis o “centro”, ao adotar as figuras do “inimigo interno islamista”, dos imigrantes, dos refugiados, dos migrantes. E não ficam de fora os deserdados de sempre: os pobres e os trabalhadores empobrecidos, os precários, os desempregados de longa duração e os “endocolonizados” das duas margens do Atlântico…

7. O “pacto de estabilidade” (o estado de emergência “financeira” na Grécia) e o “pacto de segurança” (o estado de emergência “política” na França) são duas faces da mesma moeda. Desestruturando e reestruturando continuamente a economia mundo, os fluxos de crédito e os fluxos de guerra são, em conjunto com os Estados que os integram, a condição de existência, de produção e de reprodução do capitalismo contemporâneo.

A moeda e a guerra constituem a polícia militar do mercado mundial, chamado ainda de “governance” da economia mundo. Na Europa, ela se encarna no estado de emergência financeira que reduz à nada os direitos do trabalho e os direitos sociais (saúde, educação, moradia etc.), enquanto o estado de emergência antiterrorista suspende direitos “democráticos” já exangues.

8. A nossa primeira tese será que a guerra, a moeda e o Estado são forças constitutivas ou constituintes, quer dizer, ontológicas, do capitalismo. A crítica da economia política é insuficiente na medida em que a economia não substitui a guerra, mas a continua por outros meios, e que passam necessariamente pelo Estado: a regulação da moeda e o monopólio legítimo da força para a guerra interna e externa. Para elaborar a genealogia e reconstruir o “desenvolvimento” do capitalismo, nós devemos sempre abordar e articular juntas a crítica da economia política, a crítica da guerra e a crítica do Estado.

A acumulação e o monopólio dos títulos de propriedade pelo Capital e a acumulação e monopólio da força pelo Estado se alimentam entre si. Sem o exercício da guerra no exterior, e sem o exercício da guerra civil pelo Estado no interior das fronteiras, jamais o capital poderia ter se constituído. E vice-versa: sem a captura da valorização da riqueza operada pelo capital, jamais o Estado teria podido exercer as suas funções administrativa, jurídica, de governamentalidade, nem organizar os exércitos com um poder cada vez maior. A expropriação dos meios de produção e a apropriação dos meios de exercício da força são condições para a formação do Capital e da constituição do Estado, que se desenvolvem em paralelo. A proletarização militar acompanha a proletarização industrial.

9. Mas de qual “guerra” se trata? O conceito de “guerra civil mundial”, desenvolvido quase ao mesmo tempo por Carl Schmitt e Hannah Arendt, no começo dos anos 1960, e que se firmou depois do fim da Guerra Fria, seria a sua forma mais apropriada? As categorias de “guerra infinita”, de “guerra justa” e de “guerra contra o terrorismo” corresponderiam aos novos conflitos da mundialização? Seria possível retomar o sintagma “a” guerra, sem imediatamente assumir o ponto de vista do Estado?

A história do capitalismo é, desde a origem, atravessada e constituída por uma multiplicidade de guerras: guerra de classe(s), de raça(s), de sexo(s) [1], guerras de subjetividade(se), guerras de civilização (escrita no singular, como se escreve História com letra maiúscula). As “guerras” e não a guerra, essa é a nossa segunda tese. As “guerras” como fundamento da ordem interior e da ordem exterior, como princípio de organização da sociedade. As guerras, não somente de classe, como também militares, sexuais, raciais, estão integradas de um modo tão constitutivo à definição do Capital que seria preciso reescrever Das Kapital de cabo a rabo, para levar em conta as dinâmicas dela no que de mais real há no seu funcionamento. No interior de todas as transformações maiores do capitalismo, não encontraremos a “destruição criativa” de Schumpeter, trazida pela inovação empreendedora, mas sempre o empreendimento das guerras civis.

10. Desde 1492, o Ano 1 do Capital, a formação de capital se desdobra através dessa multiplicidade de guerras nas duas margens do Atlântico. A colonização interna (Europa) e a colonização externa (Américas) são paralelas, se reforçam mutuamente e juntas definem a economia mundo. Essa dupla colonização define o que Marx chamou de acumulação primitiva. Demarcando uma diferença, senão em relação a Marx, pelo menos a certo marxismo dominante por um longo período, nós não restringimos o conceito de acumulação primitiva a uma simples fase do desenvolvimento do capital, destinada a ser superada pelo “modo de produção específico” do capitalismo e no interior dele.

Se considerarmos que a acumulação primitiva consiste numa condição de existência que acompanha sem cessar o desenvolvimento do capital, de modo que ela se conserva em todas as formas de expropriação como uma acumulação continuada, então as guerras de classe, de raça, de sexo, de subjetividade não têm fim. A conjunção das últimas — e claramente aquelas contra os pobres e as mulheres durante a colonização interna da Europa, bem como as guerras contra os povos “primeiros” na colonização externa, inteiramente desdobradas pela acumulação primitiva — precede e possibilita a “luta de classes” nos séculos 19 e 20, ao projetá-las todas numa guerra comum contra a pacificação produtiva. A pacificação obtida por todos os meios (“sangrentos” e “sem sangue”) é o propósito da guerra do capital enquanto “relação social”.

11. “Ao concentrar-se exclusivamente sobre a relação entre capitalismo e industrialismo, Marx termina por não prestar atenção à estreita ligação que esses dois fenômenos mantêm com o militarismo”. A guerra e a corrida armamentista são condições ao mesmo tempo do desenvolvimento econômico e da inovação tecnológica e científica, desde o surgimento do capitalismo. Cada etapa do desenvolvimento do capital inventa o seu próprio “keynesianismo de guerra”. Essa tese de Giovanni Arrighi comete uma única falta ao limitar-se à guerra entre Estados (que seria a guerra) e não “prestar atenção à estreita ligação” que o Capital, a tecnologia e a ciência mantêm com “as” guerras civis. Um coronel do exército francês resume as funções explicitamente econômicas da guerra: “Nós somos produtores como os outros.” Ele revela assim um dos aspectos mais inquietantes do conceito de produção e de trabalho, aspecto que os economistas, os sindicatos e os marxistas doutrinários têm o cuidado de não tematizar.

12. A força estratégica de desestruturação/reestruturação da economia mundo é, desde a acumulação primitiva, o Capital na forma mais desterritorializada, a saber, a forma do Capital financeiro (que pode ser definido dessa maneira, antes mesmo de ter recebido as credenciais de validação balzaquiana). Foucault critica a concepção marxiana do Capital porque jamais houve “o” capitalismo, porém sempre “um conjunto político-institucional”, historicamente qualificado (e este argumento estava destinado a prosperar).

Ainda que Marx nunca tenha usado efetivamente o conceito de capitalismo, é preciso manter a distinção entre ele e “o” capital, porque a sua lógica, aquela do Capital financeiro (D-D’), é (sempre historicamente) a mais operante. O que recebe o nome de “crise financeira” a exibe em funcionamento até o extremo de suas performances pós-críticas mais “inovadoras”. A multiplicidade de formas estatais e de organizações transnacionais de poder e a pluralidade dos arranjos político-institucionais definindo a variedade de “capitalismos” nacionais estão violentamente centralizadas, subordinadas e comandadas pelo Capital financeiro mundializado, segundo a sua finalidade de “crescimento”. A multiplicidade de formações de poder se curva, mais ou menos docilmente (mais para mais do que menos), à lógica da propriedade mais abstrata, aquela dos credores. “O” capital, com sua lógica (D-D´) de reconfiguração planetária do espaço pela aceleração constante do tempo, é uma categoria histórica, uma “abstração real” diria Marx, mas que produz os efeitos mais reais de privatização universal da Terra dos “humanos” e dos “não-humanos”, e da privação dos “comuns” do mundo.

(Pense-se aqui na tomada de terras, que é tanto consequência direta da “crise alimentícia” de 2007-08 e uma das estratégias de saída da crise da “pior crise financeira da Global History). É dessa maneira que nós empregamos o conceito “histórico-transcendental” de Capital, ao associá-lo (com minúscula o mais frequentemente possível) à colonização sistemática do mundo de que ele é agente a longo prazo.

13. Por que o desenvolvimento do capitalismo não se concentrou em cidades que lhe serviram por bastante tempo de vetores, mas no Estado? Porque somente o Estado, ao longo dos séculos 16, 17 e 18, foi capaz de realizar a expropriação/apropriação da multiplicidade de máquinas de guerra da época feudal (voltada às guerras “privadas”), para centralizá-las e institucionalizá-las dentro de uma máquina de guerra convertida em exército com o monopólio legítimo do uso da força pública. A divisão do trabalho não opera simplesmente na esfera da produção, mas também na especialização da guerra e da profissão de soldado. Se a centralização e o exercício da força num “exército regular” é obra do Estado, eles são também a condição da acumulação das “riquezas” pelas nações “civilizadas e opulentas” em detrimento das nações pobres (Adam Smith) — que, na verdade, não são de modo algum nações, mas waste lands (Locke, em Wasteland).

14. A constituição do Estado em “megamáquina” de poder será, então, baseada sobre a captura dos meios de exercício da força, sobre a sua centralização e institucionalização. Porém, a partir dos anos 1870, e especialmente em decorrência da influência da brutal aceleração imposta pela “guerra total”, o Capital não se contenta mais de manter uma relação de aliança com o Estado e a sua máquina de guerra. Ele começa a se apropriar diretamente da máquina de guerra, ao integrá-la aos seus instrumentos de polarização. A construção dessa nova máquina de guerra capitalista irá assim integrar o Estado, a sua soberania (política e militar) e o conjunto de suas funções “administrativas”, ao transformá-las profundamente sob a direção do Capital financeiro. A partir da Primeira Guerra mundial, o modelo de organização científica do trabalho e o modelo militar de organização e condução da guerra penetram em profundidade no funcionamento político do Estado, reconfigurando a divisão liberal de poderes sob a hegemonia do Poder Executivo, ao passo que a política — agora não mais do Estado, mas do Capital — se impõe na organização, na condução e nas finalidades da guerra.

Com o neoliberalismo, esse processo de captura da máquina de guerra e do Estado está plenamente realizado na axiomática do Capitalismo Mundial Integrado (CMI). É assim que nós colocamos o CMI de Félix Guattari a serviço da nossa terceira tese: o Capitalismo Mundial Integrado é a axiomática da máquina de guerra do Capital que foi capaz de submeter a desterritorialização militar do Estado à desterritorialização superior do Capital. A máquina de produção não se distingue mais da máquina de guerra que integra a esfera civil e a militar, a paz e a guerra, dentro do processo único de um continuum de poder isomórfico em todas as suas formas de valorização.

15.  Na longa duração da relação entre capital e guerra, a eclosão da “guerra econômica” entre imperialismos no fim do século 19 vai constituir uma virada, um processo de transformação irreversível da guerra e da economia, do Estado e da sociedade. O capital financeiro transmite a ausência de limites (de sua valorização) à guerra, ao fazer da última igualmente uma potência sem limites (guerra total). A conjunção da ausência de limites do fluxo de guerra e da ausência de limites do fluxo do capital financeiro na Primeira Guerra mundial alargará novamente os limites tanto da produção como da guerra, ao provocar o surgimento do espectro aterrorizante da produção sem limites pela guerra sem limites. Deve-se às duas guerras mundiais o fato de pela primeira vez ter se realizado a subordinação “total” (ou “subsunção real”) da sociedade e de suas “forças produtivas” à economia de guerra, através da organização e da planificação da produção, do trabalho e da técnica, da ciência e do consumo, numa escala até então desconhecida. A implicação do conjunto da população na “produção” foi acompanhada pela constituição de processos de subjetivação de massa mediante a gestão de técnicas de comunicação e de fabricação da opinião. Da instituição sem precedentes de programas de pesquisa direcionados à “destruição”, emergirão as descobertas científicas e tecnológicas que, redirecionadas à fabricação de meios de produção de bens, vão constituir as novas gerações do capital constante. Todo esse processo escapa ao operaísmo (e ao pós-operaísmo), no curto-circuito que o levou a localizar nos anos 1960-70 o Grande Divisor do Capital, um momento crítico da autoafirmação do operaísmo na fábrica (é preciso ainda esperar a chegada do pós-fordismo, para se chegar à “fábrica difusa”).

16. A origem do welfare não deve ser sondada unicamente do lado da lógica de seguridade oposta aos riscos do “trabalho” e da “vida” (conforme certa escola foucaultiana que se submeteu à influência dos patrões), mas além disso, e sobretudo, na lógica da guerra. O warfare antecipou largamente e preparou o welfare. Desde os anos 1930, um e outro se tornaram indiscerníveis. A enorme militarização da guerra total, que conscreveu o operário internacionalista em 60 milhões de soldados nacionalistas, vai ser “democraticamente” reterritorializada pelo welfare e em cima dele. A conversão da economia de guerra em economia liberal, a conversão da ciência e tecnologia voltada para a morte em meios de produção de “bens”, e a conversão subjetiva da população militarizada em “trabalhadores” podem se realizar graças ao enorme dispositivo de intervenção estatal de que participam ativamente as “empresas” (corporate capitalism). O warfare continua por outros meios a sua lógica, no interior do welfare. O próprio Keynes tinha reconhecido que a política da demanda efetiva não possuía outro modelo de realização que não fosse o regime de guerra.

17. Inserida em 1951 em seu “Superação da metafísica” (a superação em questão tinha sido pensada durante a Segunda Guerra mundial), um desenvolvimento teórico de Heidegger define precisamente o que os conceitos de “guerra” e de “paz” se tornam  depois das duas guerras totais:

‘Guerra’ e ‘paz’, tendo perdido a essência própria delas, se definem em sua própria errância, e se tornam irreconhecíveis, nenhuma diferença mais aparece entre elas, que desaparece no processo em que o fazer produz sempre mais factibilidade. A pergunta sobre quando se fará finalmente a paz não encontra mais resposta. Mas não porque a duração da guerra seja imprevisível, mas porque a própria pergunta já não se dirige a nada, dado que a guerra já não é algo que possa concluir-se na paz. A guerra se tornou uma espécie de usura do ente, que continua durante a paz. […] Essa longa guerra, em sua duração, não se dirige lentamente para um tipo tradicional de paz, mas sim para uma situação em que os caracteres que constituem a guerra não são mais esperados como tal e o que constitui a paz perdeu qualquer sentido ou conteúdo.

Essa passagem receberá uma reescritura no fim de Mil Platôs (Deleuze e Guattari, 1980) para indicar como a “capitalização” técnico-científica — que se reporta ao que nós chamamos de “complexo militar-industrial científico-universitário — vai engendrar “uma nova concepção da segurança enquanto guerra materializada, enquanto insegurança organizada ou catástrofe programada, distribuída, molecularizada.”

18. A Guerra Fria foi uma socialização e uma capitalização intensivas da subsunção real da sociedade e da população na economia da guerra da primeira metade do século 20. Ela constitui uma passagem fundamental para a formação da máquina de guerra do Capital, que não se apropria do Estado e da guerra sem concomitantemente subordinar o “saber” e o seu processo. A Guerra Fria vai ampliar o forno de produção de inovações tecnológicas e científicas que fora aceso pelas guerras totais. Praticamente todas as tecnologias contemporâneas, especialmente a cibernética, como também as tecnologias computacionais e informáticas são, direta ou indiretamente, frutos da guerra total que foi retotalizada pela Guerra Fria. O que Marx chama de “General Intellect” nasceu (dentro) da “produção pela produção” de guerras totais, antes de ser reorganizado pelas Operations Research (OR) da Guerra Fria, em ferramentas (P&D) de comando e controle da economia mundo. É apontando para esse outro deslocamento maior em relação ao operaísmo e ao pós-operaísmo que a história guerreira do Capital nos compele. A ordem do trabalho (“Arbeit macht frei!”) estabelecida pelas guerras totais se transforma em ordem liberal-democrática do pleno emprego, como instrumento de regulação social do “operário-massa” e de todo o seu ambiente doméstico.

19. 1968 se coloca sob o signo da reemergência política das guerras de classe, de raça, de sexo e de subjetividade, o que a “classe operária” não consegue mais subordinar aos seus “interesses” e a suas formas de organização (Partidos-sindicatos). Se é nos Estados Unidos que a luta operária “alcança o seu desenvolvimento no nível absoluto mais elevado” (Tronti, em Marx em Detroit), é também aí que ela foi derrotada no ocaso das grandes greves do pós-guerra. A destruição da “ordem do trabalho” resultante das guerras totais (e continuada pela Guerra Fria enquanto “ordem da classe assalariada”) não será simplesmente o objetivo de uma nova classe operária que redescobriu a sua autonomia política, ela será igualmente o fato da multiplicidade de todas essas guerras que, um pouco contemporaneamente, se inflamaram a partir de experiências singulares de “grupos sujeito”, para exprimir modalidades comuns de ruptura subjetiva. As guerras de descolonização e de todas as minorias raciais, das mulheres, dos estudantes, dos homossexuais, dos alternativos e dos antinucleares definiram novas práticas de luta, de organização e, especialmente no curso dos anos 1960-70, deslegitimaram o conjunto dos “poderes-saberes” do capitalismo da Guerra Fria.

Não não apenas lemos a história do capital através da guerra, mas também a guerra através de 1968, o que é necessário para a passagem teórica e política da guerra às “guerras”.

20. A guerra e a estratégia ocupam um lugar central na teoria e na prática revolucionárias do século 19 e da primeira metade do século 20. Lênin, Mao e o general Giap conscientemente comentaram Da guerra, de Clausewitz. O pensamento de 68 se absteve de problematizar a guerra, à exceção notável de Foucault e de Deleuze-Guattari. Eles não apenas propuseram inverter a célebre fórmula de Clausewitz (“a guerra é a continuação da política por outros meios”), ao analisar as modalidades segundo o que a “política” pode ser apreendida como uma guerra continuada por outros meios; como também transformaram radicalmente os conceitos de guerra e de política. A problematização da guerra que eles fazem está estreitamente vinculada às mutações do capitalismo e das lutas que se lhe opuseram ao longo do dito pós-guerra, até cristalizar na estranha revolução de 1968: a “microfísica” do poder avançada por Foucault é uma atualização crítica da “guerra civil generalizada”; enquanto a “micropolítica” de Deleuze e Guattari lhe é indissociável, colada ao conceito de “máquina de guerra” (a sua construção teórica não acontece sem contar com o percurso militante de um dos dois). Se isolarmos a análise das relações de poder da guerra civil generalizada, como faz a recepção crítica foucaultiana, a teoria da governamentalidade não será nada mais do que uma versão da “governance” neoliberal. Se, por outro lado, nós separarmos a micropolítica da máquina de guerra, como faz a recepção crítica deleuziana (que igualmente se empenhou em estetizar a máquina de guerra), não sobrará nada a não ser “minorias” impotentes diante do Capital, que por sua vez mantém a iniciativa.

21. Siliconados pelas novas tecnologias, de onde tiram o seu poder de fogo, os militares vão misturar a máquina técnica na máquina de guerra. As consequências políticas disso são temíveis. Os EUA planejaram e conduziram a guerra no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003), a partir do princípio “Clausewitz out, computador in” (a mesma operação é estranhamente repetida pelos proponentes de um capitalismo cognitivo que dissolve a realidade pervasiva das guerras em computadores e “algoritmos” que, antes de qualquer coisa, surgiram nas guerras e nelas contribuíram). Crendo dissipar a “névoa” e a incerteza da guerra pela acumulação nada menos do que primitiva da informação, os estrategistas da guerra hipertecnológica, numerizada e “pesquisocêntrica” rapidamente se desiludiram: a vitória tão rapidamente conquistada logo se tornou numa derrocada político-militar, desencadeando a seguir in situ o desastre do Oriente Médio. Em vez de salvar o mundo livre, trouxe para ele os seus valores num estranho remake do filme Dr. Strangelove. A máquina técnica não explica nada por si e não pode fazer grande coisa sem mobilizar todas as outras “máquinas”. A sua eficácia e sua própria existência dependem da máquina social e da máquina de guerra que vão na maioria das vezes moldar o avatar técnico, segundo um modelo de sociedade fundado sobre as divisões, as dominações, as explorações (correr mais rápido, lavar mais branco, para retomar o título do belo livro de Kristin Ross).

22. Se a queda do muro de Berlim emitiu a certidão de óbito de uma múmia, de que 1968 já havia cancelado inclusive a pré-história comunista, e se, em consequência, aquela queda precisa ser assumida como um não-evento (isso que se diz de maneira melancólica com a tese do Fim da História), o fiasco sangrento das primeiras guerras pós-comunistas conduzidas pela máquina de guerra imperial, de maneira diversa, fez história. E o fez, inclusive, em razão do debate que abriu entre os militares, onde se vê a aurora de um novo paradigma da guerra. Antítese das guerras industriais do século 20, o novo paradigma é definido como uma “guerra no interior da população”. Este conceito que, no texto, inspira um improvável “humanismo militar”, nós o tornamos nosso ao fazê-lo retornar a seu sentido na origem e no terreno real de guerras do capital, e ao reinscrever a “guerra no interior da população” no plural das nossas guerras. A população é o campo de batalha dentro do que se exercem as operações contrainsurrecionais de todos os gêneros, que são simultaneamente, e de um jeito indiscernível, militares e não-militares, porque é assim que elas são portadoras da nova identidade de “guerras sangrentas” e “guerras sem sangue”. No fordismo, o Estado não garante apenas a territorialização estatal do Capital, como também da guerra. Daí resulta que a mundialização não liberará mais o capital das garras do Estado sem igualmente liberar a guerra, cuja continuidade em relação à economia se eleva a uma potência superior, integrada no plano do capital. A guerra desterritorializada não é de modo algum a guerra inter-estatal, mas uma sequência ininterrupta de guerras múltiplas contra as populações, pondo definitivamente a “governamentalidade” ao lado da “governance”, numa empresa comum de negação das guerras civis globais. As divisões que projetam as guerras no interior da população, a ponto de se tornarem o conteúdo real da biopolítica, é isso o que governa e que permite governar. Uma governamentalidade biopolítica da guerra como distribuição diferencial da precariedade e da norma da “vida cotidiana”. Exatamente o contrário da Grande Narrativa do nascimento liberal da biopolítica, como exposto num curso famoso do Collège de France, na fratura dos anos 1970 e 1980.

23. Escandindo as divisões, acentuando as polarizações de todas as sociedades capitalistas, a economia da dívida transforma a “guerra civil mundial” (Schmitt, Arendt) num emaranhado de guerras civis: guerras de classe, guerras neocoloniais contra as minorias, guerras contra as mulheres, guerras de subjetividade. A matriz dessas guerras civis é a guerra colonial. Esta última nunca foi uma guerra entre Estados, mas, essencialmente, uma guerra dentro e contra a população, onde as distinções entre paz e guerra, entre combatentes e não-combatentes, entre a economia, a política e as forças armadas nunca ocorreram. A guerra colonial dentro e contra as populações é o modelo de guerra que o Capital financeiro desencadeou a partir dos anos 1970, em nome de um neoliberalismo de combate. A sua guerra será ao mesmo tempo fractal e transversal: fractal, porque produz indefinidamente a própria invariância por meio da constante mudança de escala (sua “irregularidade” e as “quebras” que ela introduz são exercidas em diversas escalas da realidade); e transversal, porque ela se desdobra simultaneamente no nível macropolítico (ao jogar com todos os pares de grandes oposições: classes sociais, brancos e não-brancos, homens e mulheres…) e micropolítico (pela engenharia molecular que privilegia as mais altas interações). Ela pode assim conjugar os níveis civis e militares dentro dos vários Sul e Nortes globais (ou quase). A sua primeira característica é, portanto, ser menos uma guerra sem distinções do que uma guerra irregular.

A máquina de guerra do capital que, no começo dos anos 1970, definitivamente integrou Estado, guerra, ciência e tecnologia enuncia claramente a estratégia da mundialização contemporânea: precipitar o fim da história bem curta do reformismo do capital — Full Employment in a Free Society, segundo o título do livre manifesto de Lord Beveridge em 1944 — ao se preocupar em toda parte e por todos os meios com as condições reais da relação de forças que o tinham imposto. Uma criatividade infernal será desdobrada pelo Projeto político neoliberal para fazer parecer que o “mercado” esteja dotado de qualidades sobre-humanas de processamento de informações: o mercado como o ciborgue derradeiro.

24. A escalada de consistência dos neofascismos, a partir da “crise” financeira de 2008, constitui uma virada no interior da trajetória das guerras no interior da população. As suas dimensões simultaneamente fractais e transversais assumem uma nova e temível eficácia de divisão e de polarização. Os novos fascismos colocam à prova todos os recursos da “máquina de guerra”, pois se esta não se identifica mais necessariamente com o estado, ela também pode escapar do controle do Capital. Então, a máquina de guerra do Capital governa por meio de uma diferenciação “inclusiva” de propriedade e riqueza, mas as novas máquinas de guerra fascistas funcionam por exclusão, a partir da identidade de raça, de sexo e de nacionalidade. As duas lógicas parecem incompatíveis. Na realidade, elas convergem inexoravelmente (conforme a “preferência nacional”), à medida que o estado de emergência econômica e política se instala no tempo coercitivo do global flow.

Se a máquina capitalista continua a desconfiar dos novos fascismos, isso não se dá em razão de seus princípios democráticos (o Capital é ontologicamente antidemocrático!) ou do império da lei, mas sim porque, como o nazismo, o pós-fascismo pode galgar uma “autonomia” em relação à máquina de guerra do Capital e escapar de seu controle. Não é exatamente isto que chega junto com os fascismos islamistas? Formados, armados, financiados pelos EUA, eles voltaram as suas armas contra a superpotência e os aliados que os tinham instrumentalizado. Do Ocidente às terras do Califado e de volta, os neonazis de todas as obediências encarnam a subjetivação suicidária do “modo de destruição” capitalista. Essa é também a cena final para o retorno do recalcado da colonização: os jihadistas 2.0 assombram as metrópoles ocidentais como o seu inimigo mais interno. A endocolonização se torna assim um modo para a conjugação generalizada da violência “tópica” e da dominação mais intensiva do capitalismo sobre as populações. Quanto ao processo de convergência ou divergência entre as máquinas de guerra capitalista e neofascista, ele dependerá de como vão evoluir as guerras civis em curso, e dos perigos que um eventual processo revolucionário pode colocar para a propriedade privada, e mais em geral para o poder do Capital.

25. Evitando a redução do Capital e do capitalismo a um mero sistema ou a uma estrutura, e a redução da economia à história de ciclos que se encerram sobre si próprios; as guerras de classe, de raça, de sexo, de subjetividade denegam igualmente à ciência e à tecnologia toda pretensão de autonomia, toda via régia na direção da “complexidade” ou de uma emancipação forjada pela concepção progressista (e hoje aceleracionista) da marcha da História. As guerras injetam continuamente relações estratégicas abertas à indeterminação do conflito, à incerteza do combate tornando, o que torna inoperante qualquer mecanismo de autorregulação (de mercado) ou regulação por feedback (“sistemas homem-máquinas” abrindo a sua “complexidade” ao futuro). A “abertura” estratégica da guerra é radicalmente diversa em relação à abertura sistêmica da cibernética, e não é por nada que esta tenha nascido daquela. O capital não é estrutura, nem sistema, ele é “máquina”, e máquina de guerra em que a economia, a política, a tecnologia, o Estado, as mídias etc, não passam de articulações formadas por relações estratégicas. Na definição marxista/marxiana do General Intellect, a máquina de guerra que integra dentro de seu funcionamento a ciência, a tecnologia e a comunicação é curiosamente negligenciada em prol de um pouco crível “comunismo do capital”.

26. O capital não é um modo de produção sem ser ao mesmo tempo um modo de destruição. A acumulação infinita que alarga continuamente os seus limites para os recriar de novo é ao mesmo tempo uma destruição ampliada ilimitada. Os ganhos de produtividade e os ganhos de destrutividade progridem lado a lado. Eles se manifestam na guerra generalizada que os cientistas preferem chamar Antropoceno, em vez de Capitaloceno, ainda quando, à toda evidência, a destruição dos nossos ambientes não tenha começado com o “homem” e suas necessidades crescentes, mas com o Capital. A “crise ecológica” não é resultado de uma modernidade e de um humanidade cegas para os efeitos negativos do desenvolvimento tecnológico, mas o “fruto da vontade” de certos homens em exercer a dominação absoluta sobre outros homens, a partir de uma estratégia geopolítica mundial de exploração sem limites de todos os recursos humanos e não-humanos.

O capitalismo não é somente a civilização mais mortífera da história da humanidade, aquela que nos introduziu “a vergonha de ser um homem”; mas também é a civilização em que o trabalho, a ciência e a técnica criaram — ainda outro privilégio (absoluto) da história da humanidade — a possibilidade de aniquilação (absoluta) de todas as espécies e do planeta que as abriga. Enquanto isso, a “complexidade” (do salvamento) da “natureza” ainda promete a perspectiva de lucros faceiros, em se combinam a tecnutopia da geoengenharia e a realidade dos novos mercados do “direito de poluir”. À confluência de uma e outra, o Capitaloceno não manda o capitalismo à Lua (ele já voltou de lá), ele completa a mercantilização global do planeta, ao fazer valer os seus direitos sobre a — bem nomeada — troposfera.

27. A lógica do Capital é logística para uma valorização infinita. Ela implica a acumulação de um poder que não é simplesmente econômico, pela simples razão que se complica com os poderes e saberes estratégicos a respeito da força e da fraqueza das classes em luta, Às quais ele se aplica e com as quais não deixa de explicar-se. Foucault assinalou que os marxistas puseram a próopria atenção sobre o conceito de “classe” em detrimento do de “luta”. Desse modo, o saber sobre a estratégia foi esvaziado em prol de uma empresa alternativa de pacificação (Tronti propõe a sua versão mais épica). Mas quem é forte e quem é fraco? De que maneira os fortes se tornaram fracos, por que os fracos se tornaram fortes? Como fortalecer a si próprio e enfraquecer o outro para dominá-lo e explorá-lo? Nós nos propomos de seguir e reinventar a pista anticapitalista do nietzschismo francês.

28. O Capital saiu vencedor das guerras totais e do confronto com a revolução mundial de que 1968 é para nós a cifra. Desde então, ele não cessa de pular de vitória em vitória aperfeiçoando o seu motor de refrigeração. Onde se verifica que a primeira função do poder é negar a existência das guerras civis e apagar inclusive a memória delas (a pacificação é uma política de terra arrasada). Walter Benjamin está aí para nos lembrar que a reativação da memória das vitórias e das derrotas, com o que os vencedores construíram a sua dominação, não pode vir senão dos “vencidos”. Problema: os vencidos de 68 jogaram fora a água das guerras civis junto com o velho bebê leninista, no final do “outono quente”, enfim selado pela falência da dialética do “partido da autonomia”. Entrando nos “anos do inverno de nosso descontentamento” sobre a corda bamba de uma segunda Guerra Fria para assegurar o triunfo do “povo do capitalismo” (“People´s Capitalism – This IS America!”), o Fim da História vai assumir o controle sem parar ante uma guerra do Golfo que “n’a pas eu lieu”. Com exceção, aqui, de uma constelação de novas guerras, de máquinas revolucionárias ou militantes mutantes (Chiapas, Birmingham, Seattle, Washington, Gênova…) e de novas derrotas. As novas gerações que escrevem declinam: “povo que falta!”, na insônia com que sonham os processos destituintes, mas infelizmente reservados aos seus amigos.

29. Papo reto para nos dirigirmos aos nossos inimigos. Porque este livro não tem outro objeto que não entender, sob a economia e a sua “democracia”, por trás das revoluções tecnológicas e da “intelectualidade de massa” do General Intellect, o “rugido” das guerras reais em curso, em toda a sua multiplicidade. Uma multiplicidade que não é algo para ser feito, mas desfeito e refeito, a fim de recarregar de novos possíveis as “massas ou fluxos” que são duplamente sujeitos: do lado das relações de poder enquanto sujeitos para a guerra, e/ou do lado das relações estratégicas que são suscetíveis de alçá-los ao posto de sujeitos das guerras, com “suas mutações, seus quanta de desterritorialização, suas conexões, suas precipitações”. Em suma, seria o caso de depreender lições do que nos apareceu como o fracasso do pensamento de 68, de que somos herdeiros, até o ponto da nossa incapacidade de pensar, para então construir uma máquina de guerra coletiva à altura da guerra civil desencadeada em nome do neoliberalismo e do primado absoluto da economia como política exclusiva do capital. Tudo se passa como se 68 não tivesse conseguido pensar até o fim, nem tanto a sua derrota (existem, desde os Nouveaux Philosophes, os profissionais disso), mas a ordem guerreira de razões que foi capaz de quebrar com a sua insistência na forma de uma destruição continuada, transposta ao infinitivo presente das lutas de “resistência”.

30. Não é o caso, sobretudo não é o caso de parar com a resistência. Mas com o “teoricismo” comprazido de um discurso estrategicamente impotente diante do que chega. E a isso nós chegamos. Porque se os dispositivos de poder são constituintes em detrimento das relações estratégicas e das guerras que conduzem até eles, não há nada que se lhe possa contrapor senão fenômenos de “resistência”. Com o sucesso que nós já conhecemos. Graecia docet.

30 de julho de 2016

Éric Alliez e Maurizio Lazzarato

 

Post-scriptum: Este livro se situa sob o signo de um (impossível) “mestre em política” — ou, mais exatamente, do adágio althusseriano forjado no canto de um materialismo histórico em que nós nos reconhecemos: “Se você quiser conhecer uma questão, faça-a história”. 1968, desvio máximo em relação às leis do althusserismo (e de tudo o que elas representam), será o diagrama de fuga para um segundo volume, que nós chamamos provisoriamente Capital e guerras. Nele, nos propomos retomar o exame da estranha revolução de 68 e seus desdobramentos, a partir do que a história da contrarrevolução contém dentro de si muitas outras: toda uma multiplicidade de contrarrevoluções na forma de restaurações. Elas serão analisadas do ponto de vista de uma prática teórica politicamente “sobredeterminada” pelas realidades guerreiras do presente. É dentro desse espírito que arriscamos uma “leitura de sintomas” do Novo Espírito do Capitalismo (cujo maná desaba do céu das “críticas artísticas” made in 68), do Aceleracionismo (a versão ao mesmo tempo mais up-to-date e regressiva do pós-operaísmo) e do Realismo Especulativo (recusamos incluí-lo em nossa leitura do Antropoceno).

Notas

[1] – Usamos de maneira intercambiável “guerra contra as mulheres”, “guerra de sexos” e “guerra de gênero”. Sem entrar num debate que atravessa o feminismo, os conceitos de “mulher”, “sexo” e “gênero” (assim como os de “raça”), não remetem a algum essencialismo, mas à construção política da heterossexualidade e do patriarcado como norma social de controle da procriação, da sexualidade e da reprodução da população, de que a família nuclear é o fundamento. É uma guerra verdadeira e continuada que é dirigida contra as mulheres para submetê-las a esses processos de assujeitamento, de dominação e de exploração.

 

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