João Souza
O sistema humanitário ruiu em poucos dias, em todo o globo, desde que o Governo Trump decidiu suspender o financiamento para organismos que lideram e executam trabalhos humanitários, inclusive para agencias das Nações Unidas. É esperado que nas próximas semanas ou meses parte dos recursos sejam liberados, ao menos para algumas ações mais urgentes ou mais alinhadas aos planos do atual presidente norte-americano. Mas estamos no terreno do imprevisível.
A suspensão do financiamento significa, por exemplo, que pessoas refugiadas e solicitantes de refugio ficarão sem assistência ou sofrerão com restrições, o que se reflete, na prática, em impactos para a sua sobrevivência. Há milhares de pessoas dependentes de assistência para comer, ter água, banho ou mesmo de ajuda legal para obter documentos em um país de asilo.
Assim como no primeiro mandato de Trump, possivelmente muitas organizações humanitárias, incluindo organizações internacionais e locais, que dependem integral ou parcialmente de financiamento proveniente dos Estados Unidos, vão fechar, restringir suas atividades ou adaptar seus projetos.
O que é interessante e ao mesmo tempo desesperador constatar é que a maioria absoluta dos fundos para organismos humanitários no mundo provêm de um único país. Todo o trabalho de intervenção humanitária (realizado por agencias do sistema de Nações Unidas ou vinculadas, como ACNUR e OIM, e também por organizações internacionais e locais) depende quase que exclusivamente de financiamento norte-americano.
Isso nos faz pensar, primeiro, que, diferente da crítica generalizante que se costuma fazer, inclusive em ambientes universitários e progressistas, Trump e Biden são diferentes. Faz toda diferença se o presidente dos Estados Unidos é Trump ou se é Biden. Que o ex-presidente (e todos os anteriores) merece críticas, quanto a isso não há dúvidas. No entanto, com Trump vemos outros tempos, muito mais sombrios.
Segundo ponto: Antes de acusar os Estados Unidos por seus interesses escusos em se manterem como financiadores únicos das organizações humanitárias (e as críticas ingênuas sobre o humanitarismo como a outra moeda do imperialismo), seria importante se perguntar por que outros países não assumiram e não assumem tal compromisso com a agenda humanitária e de direitos humanos com mais vigor? A falta de compromisso dos países economicamente saudáveis com a pauta humanitária, inclusive aqueles governados por líderes que se apresentam como progressistas, deveriam ser vistos como um problema tão relevante quanto a vitória de Trump. Por consequência, acusar então os Estados Unidos por sua política imperialista, utilizando o humanitarismo como modo de intervenção é algo ingênuo e cínico. É também ignorar completamente a realidade, ao fechar os olhos para o fato de que o financiamento norte-americano tem impactado positivamente a vida de pessoas que necessitam de ajuda. Não é preciso ir a um campo de refugiados, conhecer a Operação Acolhida em Roraima ou visitar um centro de recepção a refugiados no Panamá para constatar isso.
Terceiro ponto: Trump deixou claro que tem um projeto contra os migrantes, o que impactará negativamente também aos refugiados. Para a América do Sul e América Central, esta decisão terá resultados ainda imprevistos, mas certamente ruins. Não apenas pelo efeito direto que o esvaziamento de fundos significa (pensemos nos nicaraguenses, venezuelanos, cubanos e haitianos que buscam refúgio nos países da região), mas porque os governos da região terão que se reposicionar diante de tal mudança e tudo indica que não seguirão para um caminho mais promissor.
Vale ver que, apesar de toda a negligência dos governos em relação às pessoas que cruzaram a América do Sul e Central nos últimos anos (passando por Darien rumo a fronteira Mexico-Estados Unidos), ao menos tal negligência implicava ou significava uma possibilidade para os migrantes. Apesar de tudo, eles cruzaram. Agora, a negligencia não dará lugar a garantias de direitos ou assistência, mas sim à vigilância, repressão e deportação e, ao fim, a mais e mais atos de violação de direitos humanos.
Antes mesmo de sua posse, governos de muitos países já haviam se adiantado para manifestar críticas ou adesões às promessas de Trump em relação aos seus planos para os migrantes. Quando as deportações começaram, pudemos ver dois fatos que anunciam o mundo novo em que entramos. O Presidente da Colômbia, Gustavo Petro, teve que recuar de seu posicionamento e agir para receber os colombianos que foram deportados dos Estados Unidos. O governo norte-americano tampouco mostrou-se amigável ao governo brasileiro e até o momento não respondeu às queixas feitas em reação ao fato de que brasileiros deportados foram entregues em solo nacional algemados. Lembrando que o governo não reclamou da deportação, que foi reconhecida como ato previso em acordo, mas sim do tratamento dado aos deportados. Trump, afinal, impôs ao Brasil e à Colômbia aquilo que havia prometido e deu a palavra final.
Por outro lado, é interessante ver como o Presidente de El Salvador, Nayib Bukele, se mostra como uma tendencia e um ponto fora da curva, muito diferente da linha suicida da ditadura nicaraguense ou venezuelana, que se isolam cada vez mais. Ele pretende um acordo com EUA para que El Salvador seja considerado “país seguro” para receber os migrantes indesejados, sejam salvadorenhos ou de outros países, inclusive suspeitos de serem membros de grupos criminosos. A questão aqui não é apenas o que isso significa em termos de dinheiro para El Salvador, mas, sobretudo, como isso qualifica seu projeto para o país.
Se este acordo se concretiza, como parece muito provável, isso impactará não apenas o sistema de refúgio e direitos humanos em âmbito regional, mas também a política regional dos países em relação aos fluxos migratórios, com crescimento de práticas de encarceramento. El Salvador pode ganhar uma relevância regional muito grande e Bukele é um interessante e perigoso enigma.
Ele não faz nada muito inovador, mas tem uma velocidade inovadora e parece ter um projeto que vislumbra o novo mundo para qual vamos. Costa Rica e Panama já tem Bukele como um modelo e se ambos os países mudam sua política em relação a direitos humanos (que já não são tão garantistas quanto vendem internacionalmente e que, no Panamá, já está sob revisão desde que assumiu o novo Presidente José Raúl Mulino) a América Central será um lugar cada vez mais complexo. Ao mesmo tempo, Bukele se mostra como a face renovada da extrema direita, talvez mais ágil que Trump, embora com menos poder.