Democracia

“Habita la rabia”: o 8M em Santiago do Chile

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8 de março de 2023. Estou em Santiago do Chile. Sigo maravilhado pelos dias secos de sol que fazem neste quase-começo de outono. Mais ainda pela forma como as montanhas andinas parecem envolver a cidade num abraço deitado e distante.

Saindo da Plaza de Armas, cuja noite cães, carabineros, prostitutxs e transeuntes ocupam, ando na direção de La Moneda e caio na Gen. O’Higgins – uma arterial imensa que irriga a cidade de veios menores por onde, dias antes, eu ouvia o barulho dos carros, ônibus, peatones, motos e bicicletas motorizadas criarem densos coágulos urbanos.

Ao longo dessa avenida, o comércio ambulante frenético vende de tudo, e disputa os pesos de cada pedestre no grito. Livros descansam sobre tecidos quadriculados, dispostos no chão como pequenos sebos portáteis; maquiagens, roupas, bugigangas, traquitanas, bebidas e comestíveis, fármacos controlados e não controlados, podem ser comprados over the counter por quem quer que passe. Ninguém quer saber. Ninguém se importa. São 5,6 milhões de habitantes, sem contar os cães das ruas, os gatos das praças, os lagartos dos cerros e os papagainhos rasteiros que se encontram num parque homônimo (O’Higgins).

Vejo a Biblioteca Nacional fechando suas portas, e também a entrada do Cerro Santa Lucía – que subi no dia anterior. Paro para perguntar a uma ambulante sobre um mural dos anos 1970. Queria saber se era mesmo Gabriela Mistral quem aparece retratada como uma entidade xamânica entre o passado imemorial, o presente industrial e os outros futuros possíveis. Ela me diz que este mural está aí desde sempre, desde que era ninã, e confirma o rosto de Mistral – que, a exemplo de muitas outras fotos, raramente foi capturada sorrindo.

Enquanto falamos, vejo carabineros – os policiais de Santiago – fechando a Gen. O’Higgins e algumas ruas adjacentes. Digo  gracias, hasta pronto, que todo le pase lindo à vendedora que me falava de Mistral, e ando um pouco mais, no sentido do Museu e do Centro Cultural que ostenta seu nome. Muita gente – principalmente mulheres predominantemente jovens – se acumula embaixo das árvores pelo caminho. São 16h30, fazem 30 graus, e brotam mundaréis de gente oferecendo aguita, aguita helá para aplacar o calor. Todo ambulante tem um ritornelo.

Ouço um rumor indiscernível – vindo da direção do museu do qual me aproximo -, um vozerio de mulheres, uns poucos gritos distintos em meio a um zum-zum-zum de fundo -, tiro uma foto que me soa como um diapasão. No meio-fio, alguém escreveu em roxo: habita la rabia. De súbito, penso no Brasil. Nos grupos de Zap. Na proliferação de fotos e gifs animados de rosas e parabéns que mais cedo meu celular mostrou.

 

E umas poucas centenas de passos à frente, passo por um bloco de algumas dezenas de secundaristas. Uniformizadas de um jeito que me lembra o grupo musical RBD (Rebelde), elas gritam sem parar num vai-e-vem interminável ao longo de uns 500 ou 600 metros da O’Higgins.

No es no. Consigo ouvir sua raiva. Algumas vão com os uniformes decompostos. Outras, com os rostos cobertos com bandanas ora verdes, ora roxas, levando as insígnias dos feminismos latinoamericanos. Outras, ainda, cobrem os rostos com bandanas negras ou se mascaram como luchadoras.

Não têm mais do que 14 ou 16 anos de idade, berram e fumam – tabaco e maconha -, e estão cheias de raiva. Algumas escalam pontos de ônibus. Penduram faixas e bandeiras. Sentam-se sobre as marquises. Absolutamente imóveis, outras preparam a sua marcha.

No museu, muita coisa acontece em paralelo. Enquanto atos culturais se desenvolvem nos vãos-livres, algumas meninas pintam um imenso painel de fundo roxo do lado de fora, e mulheres do colectivo hilos, sob a insígnia sangre de mi sangre, tricotam um imenso emaranhado de fios vermelhos. O que elas fazem me lembram True Rouge (1997) do artista plástico brasileiro Tunga. Mais tarde elas sairiam em marcha, para a rua, com sua imensa colcha levada por inúmeras mãos. Algumas chicas ambulantes gritam com homens ambulantes, que berram sua merchandise: ¡Callate! ¡Es un acto cultural!

Ao longo da O’Higgins vende-se mesmo de tudo. E algo do que se vende dá o tom da marcha: há commodities de manifestações, como camisetas, lenços e ecobags temáticas, mas o que me chama a atenção sãos os chaveiros nas formas (fisicamente eficientes, imagino) de socos-ingleses e punhais.

O que impressiona é que não há qualquer espaço para o romantismo violento que me faz lembrar do que Sérgio Buarque de Hollanda um dia chamou cordialidade – que, se é um traço do Brasil, também poderia ser das relações de gênero que se processam nele.

Nem rosas, nem parabéns coisa nenhuma. Na Gen. O’Higgins, ninguém vende flores, mas commodities, drinks variados, drogas recreativas e artefatos portáteis de autodefesa – de mulheres para mulheres.

No 8M de Santiago, apesar do clima calmo, positivo e divertido – porque há música de todo tipo, discotecagem, arte, painéis, pintura corporal, maquiagem com glitter, tambores etc. -, tudo se passa como se o corpo fosse  finalmente convidado a habitar a raiva.

O 8M assume, então, um tom de luta, de protesto, de ato profundamente corpóreo e material. Campo de provas físico, ele é a afirmação da porrada sem cordialidade nenhuma. E as secundaristas da geração Z – oxalá nos ajudem a salvar-nos da nossa covardia e caretice (embora isso seja tarefa nossa, e apenas nossa) – puxam a fila.

Enquanto isso, as mulheres de coletivos como hilos tecem as tramas transgeracionais e transversais ao longo das quais as lutas se transformam ao passar de uma geração a outra – na esperança, talvez, de que a juventude do presente possa caminhar as trilhas que as gerações anteriores talvez não tenham podido caminhar minimamente, ou até o fim, conforme o seu desejo.

Se exerço o estranho direito de dizer algo do que senti enquanto mulheres de todas as idades e orientações sexuais preparavam seu ato e sua marcha a céu aberto, é apenas por ter circulado junto aos afetos que esses corpos (outrxs do meu, por acaso e por dom) produzem e fazem circular. É isso o que me impele a falar de uma luta que não é minha – como infinitas outras, que tampouco o são -, mas com cujas aberturas e transversais os afetos que definem meu corpo (poder de afetar e ser afetado, dizia o velho Espinosa) pode compor. É isso, e nada mais que isso: no fervilhar dos corpos, ouvir o convite para habitar a raiva.

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