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Isso não é normal

Por George Caffentzis, em Commonware, fevereiro de 2017 | Trad. UniNômade

Trump - Obama

Numa das manifestações que ocorreram nas últimas semanas, na última em torno da casa do senador Schumer, no Brooklyn, depois do usual “Fora Trump”, se ouviu um novo grito com que não posso concordar: “Isso não é normal!” Uma novidade, mas não deixa de ser desconcertante. Por que deveríamos reivindicar a volta da política “normal” de Obama e Clinton? O “capitalismo normal” seria o nosso horizonte neste momento que, até agora, foi tão bem sucedido em travar a agenda de Trump? E depois, a linha de ação de Trump está realmente fora da normalidade da classe política dominante? É preciso enfrentar essas questões, pois nos colocam a situação problemática da luta de classe nos Estados Unidos, e isso em vários níveis.

O grito “Isso não é normal” condena a defesa ostensiva de Trump de um programa imperialista, como aparece em seu bordão America first. Essa condenação é apropriada, mas imaginar que o imperialismo seja qualquer coisa de “anormal” na política americana é no mínimo perturbador. Anormal seria apenas o reconhecimento ostensivo do que já faziam os outros presidentes, mudando apenas o pretexto: defender os direitos humanos. Mas colocando de lado o canto de galo trumpista, o resto está em perfeita sintonia com a tendência histórica do capital. Sem dúvida, o capitalismo se encontra diante de uma queda da taxa de lucro no nível internacional, numa fase marcada por crescimento lento, estagnação, e mesmo de recessão, no caso de algumas economias nacionais. Nessa situação, para dar uma sacudida na copa da árvore outonal capitalista e derrotar as lutas proletárias, são necessárias algumas medidas drásticas, e é para cumprir essa tarefa que Trump entra em campo com a sua promessa hipnótica de uma América em busca do poder mundial incondicionado. Com oportunismo, a sua agenda política combina as duas faces do capitalismo contemporâneo: a neoliberal e a imperialista, frequentemente desenhadas como antagonistas, porém na realidade emparelhadas, como fica evidente na escolha de magnatas e generais para ocupar os cargos do governo Trump, por exemplo, com a nomeação do Secretário de Estado Rex Tillerson, executivo ligado há muito tempo à ExxonMobil (a mais multinacional das empresas americanas).

Longe de ser anormal, Trump prolonga a antiga e honrada tradição capitalista do “neoliberalismo dos mísseis”, voltada a abater os muros protecionistas mediante a força militar. Também o fascismo nos anos ’30 reconheceu que os mercados “livres” não eram suficientes para garantir a lucratividade e o comércio sem fronteiras. As próprias áreas controladas pelos nazistas exigiam formidáveis instrumentos de repressão para assegurar o lucro. Mesmo as fanfarronices de Trump são típicas de nosso tempo, quando políticos identificam o seu papel em estimular os animal spirits de um capitalismo que vacila (para dizê-lo com Keynes, “uma urgência espontânea em agir, em vez de ficar parado”) e em mobilizar parte da classe operária oferecendo-lhe uma perspectiva racista.

Ainda assim, quando examinamos os documentos concretos, encontramos uma continuidade profunda entre os governos de Obama e Trump (como também havia entre as de Carter e Reagan, na virada aos anos ’80), que precisa ser reconhecida, uma vez que baixemos o volume do ambiente estrepitoso que circunda a eleição de Trump.

  • Imigração. A deportação de imigrantes sem papéis durante o período Obama chegou a mais de duas milhões e meio de pessoas. Essa cifra é semelhante ao número estimado que Trump quer ver deportado.
  • Guerra. As forças armadas dos  Estados Unidos estão neste exato momento abertamente envolvidas em guerras civis no Afeganistão, Iêmen, Síria, Iraque, Líbia e Somália, em todos os casos como decorrência de decisões políticas de Obama. Trump está invocando uma “guerra de civilizações” (tirando o pó da figura retórica de Samuel Huntington), porém, no frigir dos ovos, contra a mesma lista de países de maioria muçulmana.
  • Drones. A herança militar de Obama do assassinato mediante drones, com todas as implicações éticas que comporta. Como escreveu Micah Zenko no New York Times, “Obama autorizou 506 operações que mataram 3.040 terroristas e 391 civis”, de longe o mais amplo uso de drones na história bélica. Trump, seguindo Obama, já reivindicou um uso generalizado dos drones. A massiva venda de armas à Árabia Saudita, durante o governo Obama, no momento em que ela estava bombardeando o Iêmen, e o silêncio de todos os democratas, durante a campanha eleitoral, quanto ao plano do Pentágono de renovar o seu inteiro arsenal nuclear, ao custo estimado de um trilhão de dólares, indicam mais uma vez como a distância entre Obama e Trump, no que tange ao uso da força militar, seja menor do que parece.
  • Regulação capitalista da economia. Obama explicitamente reconheceu que o capital tem o mesmo poder do que o estado, por meio do patrocínio que prestou ao Trans-Pacific Partnership (TPP) e ao Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) e à criação de fundos do Estado-investidor, para resolver eventuais controvérsias. Trump eliminou esses quadros protocolares e levou o governo a negociar diretamente com o capital. Porém, o seu programa “todo poder ao capital!” não é mais audaz do que a substância dos acordos de livre comércio propostos por Obama, que já davam um poder absoluto ao capital internacional, permitindo às empresas bloquear toda e qualquer iniciativa, em qualquer nível estatal, que esteja voltada a “regular o livre comércio”, quer dizer, a podar a taxa de lucro, assim como o poder de forçar os culpados a pagar os devidos e pesados ressarcimentos pelas crises.
  • Homicídios de negros pela polícia. Diante do assassinato de Michael Brown em Ferguson, Obama disse que não há “nenhuma simpatia por aqueles que destroem a sua própria comunidade”. Trump contrapõe Black Lives Matter ao Blue Lives Matter [NT. referência ao uniforme azul da polícia].
  • Investimento em infraestrutura pelo governo. A administração Obama idealizou o American Recovery e o Reinvestiment Act de 2009, prevendo um financiamento de mais de 800 bilhões em infraestrutura. Trump está “prometendo” outro trilhão de dólares para a mesma destinação.

Em todos esses temas, a diferença está na abordagem retórica, sutil e de baixo perfil no caso de Obama, estrambótica e beligerante de Trump, pois ambos os governos convergem para resultados semelhantes, senão idênticos. Notam-se aspectos na política de Trump que justificam a sua etiqueta como “anormal”, como o seu posicionamento misógino, o apoio a grupos de supramacistas brancos, a sua instigação à violência racista, tudo isso que, há tempos, já fora rejeitado como politicamente inaceitável. Dito isto, Trump está jogando em nossas costas o tratamento que o governo americano outrora reservava às pessoas noutros países — como no Iraque ou Afeganistão, para começar a conversa –, onde pessoas foram torturadas, encarceradas, sequestradas e metidas em voos de “devolução”, separadas de suas famílias em raids de deportação, colocadas em prisões que não têm mais fronteiras. Chamar de “anormal” o comportamento de Trump não acabaria nivelando como normalidade o imenso sofrimento e degradação provocados por essas práticas que vêm de antes?

Uma resposta de classe “anormal”?

Nos agrada pensar que, se existe qualquer coisa de “anormal” no fenômeno Trump, esteja no fato que muitos trabalhadores brancos votaram nele. Mas também aqui colocamos os pés em águas turvas. Claramente, muito do apoio de Trump vem da profunda tendência histórica entre os trabalhadores brancos resumida no slogan do “salário da brancura.” É também verdadeiro, porém, que o voto foi em parte uma resposta contingente à economia política neoliberal do governo Obama, que empobreceu os trabalhadores brancos e ao mesmo tempo produziu, além da contínua queda dos salários, desemprego e despejos. Esses fatores econômicos não podem ser ignorados na vitória de Trump. A perda de poder aquisitivo, a ansiedade ante o futuro, uma vida à beira do desastre, todas essas são características comuns da condição proletária nos dias de hoje. Essa condição foi descrita numa recente pesquisa, em que se perguntou a um grande conjunto de pessoas se, no advento de uma emergência, poderiam arcar com uma despesa de 400 dólares que fosse absolutamente necessária. A surpresa foi que 63% disseram ‘não’. Isso é o “normal”. Além disso, embora a imprensa tenha insistido muito sobre a questão do e-mail vazado de Hillary Clinton, mais importante para o resultado das eleições foi o anúncio, poucas semanas antes, do aumento vertical dos prêmios para as políticas de proteção do Obamacare. Sem negar que o racismo tenha sido um fator na vitória de Trump, não foi o único — mesmo porque muitos proletários que votaram Trump em 2016 haviam votado Obama em 2012.

No entanto, é extraordinário que, em tempos de dificuldade econômica e genuíno desespero, trabalhadores brancos votem por um bilionário. A vitória de Trump revela uma profunda crise no âmago da classe operária branca, que parece não conseguir mobilizar-se a não ser por meio de uma guerra racial. Trump promete uma brutal guerra imperialista. Não é um “protecionista de velha escola” que quer retrair o comércio para os Estados Unidos continentais nem um expoente antiglobalização, visto que a sua riqueza pessoal se encontra dispersa por todo o mundo. A sua agenda consiste em tornar o “Capital americano primeiro” num sistema capitalista que beira o colapso dos lucros, mediante a abolição das regulamentações (ambientais, trabalhistas, de proteção à saúde, dos tratados internacionais, dos direitos humanos), provendo-o de uma infraestrutura financiada pelo estado, impondo termos favoráveis ao comércio por meio de acordos bilaterais e o porrete da força militar. Trump quer impulsionar através do Estado os principais ramos da produção capitalista, retomar a produção manufatureira através da imposição da tarifas seletivas às empresas que invistam os seus capitais fora dos Estados Unidos, reivindicar incessantemente o extrativismo (por meio do financiamento e das facilitações normativas, como vimos em Standing Rock), apoiar a especulação financeira, pretende que o governo federal dê curso livre aos empreendedores imobiliários. Essas por sinal são passagens comuns das políticas econômicas dos últimos governos, ainda que expressas retoricamente de modo diferente.

Como abertamente declarou na televisão nacional em 2011, referindo-se ao petróleo iraquiano: “Nos velhos tempos se sabia que quando havia uma guerra, o butim pertencia aos vencedores. Vencida a guerra, o tomam para si.” Desde então, isso foi repetido muitas vezes. Mas aquele era o objetivo principal do governo Bush. A guerra do Iraque tinha por objetivo privatizar as reservas de petróleo imediatamente depois da queda de Saddam Hussein e escancarar a constituição, de maneira a possibilitar a entrega do petróleo às grandes empresas petrolíferas globais. Obama se deu conta que a privatização das reservas de petróleo não aconteceria com a brevidade desejada e começou a trazer as tropas de volta. Trump parece empenhado em reverter esse movimento, comportando-se com os modos costumeiros dos nacionalistas patriarcais em períodos de crise da taxa de lucro, como o que hoje estamos experimentando.

 

George Caffentzis é filósofo político americano de tendência autonomista, fundador do coletivo Midnight Notes, professor da Universidade de Southern Maine. Lançou, em 2013, o livro In Letters of Blood and Fire: Work, Machines, and the Crisis of Capitalism, sem tradução ao português.

 

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