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Julio Cortázar e a última jogada de Podemos

Por Guillermo Zapata, no eldiario, 25/1/16 | Trad. Sandra Arencón Béltran

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Todas as citações do texto são de Cortázar. Do preâmbulo e as “instruções para dar corda no relógio”. Por que se formos falar, no fundo, do tempo, quem melhor do que Julio?

Iniciativa

“Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar.”

O contexto está saturado de sinais, há demasiado ruído. Há uma brecha atrapalhando a orientação. Todos os dias há noticias, fofocas, propostas, desmentidos, passeios. Não há uma leitura binária das coisas, que é o sistema de sinais do bipartidarismo, duas caras da mesma coisa. Há evidência de que pelo menos quatro grandes forças políticas batalham ao mesmo tempo pelo sentido. Há, aliás, forças territoriais com agenda própria. Há, além disso, e nos importam, apostas municipais com processo próprio. Hoje, a luta política não é por quem tenha razão ou razões, mas por quem tenha a capacidade de definir o campo dos outros. Define o espaço do restante quem conseguir abrir um novo espaço. Em consequência, não há como vencer politicamente nesse cenário sem desafio. A política hoje é mover-se.

Telas

“Dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo.”

Os meios de comunicação não são, ainda hoje, capazes de produzir um sentido coerente. Isto quer dizer que não são capazes de designar lugares como fizeram até agora. O motivo é que não estão, empresarial e politicamente, concordando entre si. O motivo é que não há um plano comum.O motivo é que estão viciados na mesma narrativa. Não podem tampouco ignorar o que está acontecendo. Antena 3 tem que demonstrar tanto uma campanha contra as forças da mudança quanto a sua própria narrativa irônica dela. As telas, porém, identificam também os ataques. Quem é atacado é forte, quem não é, fraco. Atacam-se o Podemos e o PP e com isso se revela a fraqueza do PSOE e do Ciudadanos. Ambos compartilham uma narrativa que não funciona; eles se parecem mais do que se poderia imaginar a priori. Ambos têm o sentido de estado. E o estado já não é um elemento forte, como sabem o PP e o Podemos.

Pablo Iglesias é acusado de ser excessivamente midiático. Como se o midiático não fosse já parte indissolúvel da própria materialidade da política. Como se o performativo não fosse a própria forma da política. Sempre que o Podemos intervém, ele leva em conta o signo, a narrativa, a forma. A forma é conteúdo mais do que o próprio conteúdo, o que vamos fazer dele. Podemos tem que intervir aí onde o nomeiam. Tenta-se definir nos meios de comunicação o que o Podemos é. Não intervir aí seria deixar que nomeiem você, quer dizer, que paralisem você.

Desafio

“Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio com outros relógios.”

Blefar significa tencionar que o seu adversário não aceite uma aposta que, do contrário, faria você perder. Um desafio, a seu passo, significa sempre a possibilidade de que o seu adversário aceite a aposta e que isso não leve diretamente à vitória ou derrota, mas a um novo jogo. A proposta que Podemos lança também não é uma chantagem, mas um desafio.

Desafiar é obrigar o outro a sair do lugar onde está, porque se não sair esse lugar não mais existirá enquanto tal. Um desafio é algo que obriga, insisto, o outro a mover-se. Não necessariamente a mover-se na direção que o desafio coloca, mas numa direção que esteja à altura do desafio. Temos visto nesses dias movimentos em forma de desafio, um por ação (Podemos), outro por omissão (PP), e duas paralisias (PSOE e Ciudadanos). O PSOE chama o desafio de chantagem para fingir que não existe e assim voltar à casinha. O Ciudadanos aponta o desafio como uma forma de velha política para seguir aparecendo como um árbitro neutro, numa situação que não tem nada de neutra. Como tudo em política, a chamada à neutralidade entre as partes é uma maneira de salientar e separar as partes. Chamar-se de neutro não é o mesmo que sê-lo.

Monstro

“Quer mais alguma coisa? Aperte-lhe o pulso, deixe-o correr em liberdade, imite-o sôfrego.”

Desde o 15M, a política é monstruosa. Há várias formas do monstruoso. Uma é aquela que une partes dispersas gerando uma figura nova, uma quimera que aparece para uns como milagre e para outros como horror. Outra forma do monstruoso é a da concreção material de um medo abstrato. A entrada dos deputados do Podemos no congresso (como, antes, dos vereadores e vereadoras das “prefeituras da mudança”) foi uma primeira expressão dessa monstruosidade. Os 69 deputados abstratos viraram concretos, materializaram-se.

Alça-se o desafio desse ensinamento do dia do congresso dos deputados: a representação arranca as negociações do âmbito da retórica e baixa-as à terra. Qualquer pacto com Podemos é um pacto com isto que você vê aqui. Não é uma linha vermelha, não é uma abstração, somos estas pessoas, nós falamos assim, temos essas trajetórias. Isso também torna material qualquer outra das alianças monstruosas. Vendo Pablo Iglesias como vice-presidente revela também a concreção material de um governo de grande coalizão. De repente, novas eleições se vislumbram como uma saída para voltar à abstração e à retórica. O problema não é a ausência de uma cultura de pactos, mas assumir de uma vez (ou não) que a mudança é material, e não simbólica, e que não há marcha ré nos processos sociais que têm levado o Podemos e as confluências ao parlamento. O que passa não fica. E essa é a forma mais horrível do monstro para um poder que hoje não sabe mais como lançar uma linha própria. O recuo de Ciudadanos de uma força com todo o dinamismo das forças econômicas a uma força “de estado, responsável, centrista” define bem esse processo.

Carreiras

“Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio.”

O desafio político que o Podemos coloca não nasceu de uma consulta a suas bases. Podemos dota-se de uma direção que constrói a tática a partir de uma estratégia definida desde o congresso  partidário de Vista Alegre, em outubro de 2014. Contudo, é preciso avaliar alguns elementos importantes. Em primeiro lugar, foi definida a estratégia da máquina eleitoral, mas não a estratégia da máquina parlamentar. Em segundo lugar, o desafio (por sua própria condição de desafio e não de blefe) poderia se tornar antes estratégico do que tático, se o resto das forças interpeladas o aceitar. Ao mesmo tempo, é absolutamente impossível desenhar um desafio desse tipo acompanhado de uma discussão coletiva. A discussão coletiva impossibilita esse tipo de ações que precisa de surpresa e antecipação. Simultaneamente, a proposta consegue ampliar o campo de vontade e participação de círculos, simpatizantes etc, uma vez que abre um campo político que não é simplesmente reativo, mas afirmativo. O tamanho da pergunta para as forças da mudança democrática não é pequena: como construir organizações, com seus processos de liderança e suas estruturas de direção, que sejam abertas, democráticas, plurais? Que papel tem a imensa maioria que sustentam os processos sociais produtores de transformações na relação de forças do poder institucional, no próprio jogo interno desse poder? Esta não é uma mera pergunta ética, mas efetiva. Porque uma vez formado qualquer governo que venha a formar-se, esse “fora” é que vai determinar o destino do mesmo. Não é uma pergunta apenas para o Podemos, como também para todos os processos organizadores de mudança, estamos todos atravessados por essa pergunta. Não deixemos de no-la fazer.

Cinismo

“O medo enferruja as rodas, tudo o que se poderia alcançar e foi esquecido vai corroer as velas do relógio.”

Há na proposta de Podemos e na recepção dela, em sua interpretação pelas mídias, um importante componente de cinismo, de desconfiança ante as próprias instituições, reduzidas a um mero jogo de poder entre forças. Fomos habituando-nos (a Catalunha é um exemplo mais forte) ao fato que as eleições não passam de um momento de acumulação de forças para um momento posterior, no qual os partidos usam essa força e a interpretam para compor governos.

Assim, coloca-se com tranquilidade que o PP não proponha Rajoy como presidente, ou que o PSOE o faça com o próprio Sánchez ou, inclusive, que uma terceira pessoa seja escolhida por outras forças para a presidência, sem sequer ter concorrido nas eleições. O mais interessante de tudo isso é que se trata de um fenômeno que começamos a interiorizar a partir da cidadania. Ninguém exige um referendo para empossar possíveis presidentes que não tenhamos votado.

Não há na proposta do Podemos o menor lampejo de cooperação entre as forças. Isso não implica que a proposta seja desonesta, mas sim que não há nela o mais ínfimo afã por tecer uma cumplicidade com o PSOE. Para esclarecer: não exijo essa cumplicidade nem essa cooperação. Só chamo a atenção para o seguinte: quando se mostram as democracias acostumadas a pactuar, se esquece que são países cujos modelos constitucionais não estão em crise. Não são países onde a luta escapa do mais do mesmo, travada entre modelos distintos. A proposta do Podemos revela a dimensão instituinte das forças sociais de mudança e convida os velhos atores do Régimen de 78 a deixá-lo para trás. Esse é, talvez, o elemento fundamental, faz-se necessário antes um passo ainda não dado para que, efetivamente, possa haver cooperação.

Afetos

“Um outro tempo começa, as árvores perdem as folhas, os barcos voam, como um leque o tempo se enche de si próprio.”

Mas o caso é que há também na proposta de Podemos um tanto de tecer ou retecer afetos. Procurando uma solução consensual com suas alianças plurinacionais e também reconhecendo o papel da Izquierda Unida-Unidad Popular (IU-UP), como uma força social e política que não pode ser desdenhada, não só por sua força eleitoral (um milhão de votos, não esqueçamos), mas também porque esse passo, esse fechamento com o Régimen de 78, do qual aquela tomava parte, já foi realizado. IU-UP tem condições de ser uma força política que abra um novo momento político (de novo, não é blefar, mas lançar um desafio) e nessa abertura as possibilidades de uma cooperação, até pouco tempo muito incerta, aconteçam.

É provável que o único fator subsistente para completar o mapa de afetos que possa romper com esse cinismo institucional, funcional às forças do 78, seja iniciar uma caminhada para tecer o tempo novo e os afetos com a própria cidadania. Talvez, tenhamos que discutir juntos sobre essa “jogada”, sobre esse possível novo governo, sobre um possível fechamento. Talvez, tenhamos que voltar a nos encontrar e trocar ideias sobre o projeto de país. Não para tirar grandes conclusões: mas para seguir juntos.

Guilhermo Zapata, escritor e apresentador de TV, é vereador em Madrid pela plataforma municipalista Ahora Madrid, desde 2015.

tradutora:

Sandra Arencón Béltran é pesquisadora, co-organizadora do livro Podemos e Syriza (AnnaBlume, 2015), e participa da rede Universidade Nômade.

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