Por Silvio Pedrosa, UniNômade
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No debate que se faz sobre junho de 2013 e seus efeitos, parece ser consenso entre as esquerdas que a agenda anticorrupção seja o cerne do que divide o que havia de ‘esquerda’ e o que havia de ‘direita’ naquele acontecimento. Esse tema mobiliza a tal ponto as paixões que, por vezes, se rende a maniqueísmos e histerias de comentador. Além da própria classificação entre “ser de esquerda” e “ser direita” mais soar como um sintoma do fechamento subjetivo que certo identitarismo ideológico tem produzido nas análises, no que toca à corrupção não me parece, em absoluto, ser correta. Junho de 2013 foi um acontecimento no sentido forte do termo, um “momento de momentos” no qual se rearranjou o tabuleiro do xadrez e o próprio campo dos possíveis da política brasileira, de maneira que é preciso analisar novamente até que ponto o discurso anticorrupção pode ser achatado dentro de dicotomias automáticas.
Definir o rugido da plebe contra a corrupção — um daqueles lugares comuns que articula a indignação política no Brasil desde que temos uma esfera pública minimamente atuante, e tanto mais quanto mais gente se enxerga a si própria como incluída no sistema de tributação e participação (por mais mistificada que seja a participação real) — por meio de uma redução a suas figuras históricas reacionárias é uma operação nominalista. Por meio dela, a crítica dissimula a crise se refugiando na história dos discursos, em busca de um ponto de apoio seguro no oceano do presente. ‘Udenismo’ ou ‘lacerdismo’ são os nomes que podem ser encontrados na história para a captura reacionária e elitista desse rugido dos pobres contra as elites. O rugido, entretanto, é mais feroz do que essa contenção momentânea em moldes discursivos à mão da esquerda.
Que a relação entre junho de 2013 e a indignação contra a corrupção seja complexa já se torna patente a partir de uma única lembrança: a do grito ‘Não tem arrego’. A minha hipótese, sem pesquisa mais aprofundada, é que aquele grito emergiu como novidade em setembro de 2013 durante a ocupação da Câmara dos Vereadores, em meio à greve dos trabalhadores da educação municipal do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o ‘Não tem arrego’ era entoado diante dos policiais que, logo depois, iriam invadir, espancar e expulsar os ocupantes. Depois, o grito seria inteiramente reapropriado por diversos movimentos insurgentes que derivaram daquele momento, tendo se repetido nos anos seguintes em movimentos de professores, ocupações de estudantes e greves de outros trabalhadores em São Paulo, Goiás e outros estados.
O que significa esse grito que já virou até broche para prender na mochila (a minha tem um)? Além de significar uma disposição contundente em resistir à violência e ao arbítrio do consórcio estado-mercado, – esse que explora e controla as instituições educacionais e seus recursos, – “Não tem arrego” explicita também uma postura de intransigência diante de negociatas de gabinetes e políticas de pacificação dos desejos e demandas que vêm atravessando esses espaços de produção social. O ‘arrego’ no Rio de Janeiro, afinal, é como se chama a propina cotidiana e territorializada, o custo da “paz” entre traficantes e policiais nas favelas e periferias. É a medida do valor que amarra o crime do poder e o poder do crime, a base da organização da economia de ilegalidades que define dinamicamente (e violentamente) a fronteira do lícito e do ilícito sempre em função de lucros.
O grito ilumina essa amarração e é a partir dele, tendo surgido nas lutas derivadas de junho de 2013, que podemos abrir uma discussão consistente, abrangente e com possibilidades de comunicação com segmentos mais amplos da sociedade. A corrupção não pode mais ser reduzida a um aspecto secundário do funcionamento de nossa maquinaria social de dominação. ‘Não tem arrego’ ilumina o fato de que a resistência diante da violência policial é um dos momentos nos quais se questiona, imediatamente, que a democracia brasileira tenha por motor um arranjo oligárquico e proprietário, a República. O modo através do qual opera essa articulação entre os saques da riqueza comum e a violência é exposto, dessa maneira, como um aspecto necessário e constitutivo para a reprodução do nosso modelo social de “paz”, território e normalidade.
Uma chacina em uma favela não é estritamente um problema de segurança pública, mas sim uma das expressões da lógica corrupta de nosso aparato de instituições. O super-encarceramento da população pobre e negra também integra essa economia de violências que sobredetermina a questão da segurança. O colonialismo interno que nos governa – essa reelaboração incessante do arcaico no moderno, do privado no público, das violências e racismos nas novas liberdades e mercados, quando os traços coloniais são reconfigurados no que de mais pós-moderno se apresenta (o biopoder que se mantém no capitalismo cognitivo) – permanece como horizonte insuperado para as nossas instituições. Como lembra o filósofo Paulo Arantes, toda colônia é, a rigor, uma colônia penal¹ e, para emendar com Kafka, toda colônia penal é uma máquina de matar.
Junho de 2013 tem muitos significados e continuará a ser nos próximos anos um acontecimento ao qual teremos que retornar – nunca idêntico, sempre recriado – para construir um novo terreno de luta, para o desejo de outros Brasis. O modo como encaramos maquinalmente a indignação contra a corrupção, insistindo em escamotear a corrupção como se reduzisse à mera captura conservadora ou à onipresença inafastável ao capitalismo (ela seria intocavelmente “estrutural”, um modo de naturalizá-lo como insuperável) impede-nos de pensá-la sob a força interpeladora da conjuntura, ao que somos urgentemente convocados. Enquanto a corrupção não significar um traço fundamental do arranjo de poder através do qual o sistema funciona e, portanto, o modo através do qual somos sistematicamente derrotados, continuaremos à espera de milagreiros. Com azar, encontraremos um.
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NOTA
1. Paulo Arantes, “Tempos de exceção” In: Idem, O novo tempo do mundo – e outros estudos sobre a era da emergência, São Paulo, Boitempo, 2014, p. 322.