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Lobo de Wall Street: o corpo tóxico das finanças

Por Christian Marazzi, entrevista por Gigi Roggero, para Commonware, em 12/3/14 | Trad. UniNômade Brasil

O efeito maior do final está no fato que, no conjunto da obra, nós nos identificamos com Di Caprio e não, com certeza, com a vida cinza e triste do “justo”, o policial do FBI.

O economista suíço Christian Marazzi fala do último filme de Scorsese, analisando a financeirização da vida para além da lógica que a reduz à superestrutura/especulação, mas como o modo de funcionamento da vampirização capitalista hoje.  Marazzi tem um livro traduzido ao português: O lugar das meias (Record, 2007, uma resenha aqui). A entrevista foi realizada por Gigi Roggero e publicada pelos companheiros italianos do coletivo Commonware.

WallStreet

Comecemos com uma afirmação: é difícil imaginar O lobo de Wall Street sem a Occupy Wall Street. Além das dificuldades e impasses, os movimentos globais na crise indicaram em larga medida e claramente o inimigo: o capitalismo financeiro.

Estou de acordo e, além disso, penso no impacto que a Occupy teve sobre economistas muito importantes como Stiglitz que, não fosse o impacto intelectual, cultural e político de um movimento como a Occupy, não teria se firmado em análises sobre a desigualdade.

Isto significa inserir alguns elementos que habitualmente aparecem negligenciados nas análises dos movimentos. Porque, se nos concentrarmos apenas na expectativa de vida e duração desses movimentos, ficaremos decepcionados, confusos e enfastiados, com o fato que infelizmente duram pouco tempo, e perante a enormidade de objetivos que se colocam. Porém, provavelmente, a eficácia desses movimentos esteja, na verdade, na sua reverberação em linguagens diversas. Portanto, é justo usar o filme para recordar a Occupy Wall Street e nela enxergar a origem de uma crítica radical do capitalismo financeiro, sobre o que tantas vezes nós falamos e que, neste ponto, reaparece de modo potentíssimo no cinema por um dos maiores diretores dos últimos 30 anos.

Faz dois anos, num encontro de Commonware, que você analisou a financeirização em termos de um descolamento do dinheiro em relação a qualquer referente substancial. Do momento em que o dinheiro se liberou da substância, a fim de destruir a classe operária, o capital não teve mais trégua, construindo um sistema monetário que se dobrou sobre si próprio, e que arrisca implodir em sua própria autorreferencialidade. Parece-nos uma boa chave para ver o filme, o que pensa disso?

Tem um fio vermelho que os nossos encontros, discussões e análises vêm recuperando: a interpretação da financeirização a partir de sua origem, ou seja, da declaração de inconversibilidade do dólar em ouro, em 1971, o que sinalizou a virada em direção à dessubstancialização. Isto não significa, somente, relegar o equivalente geral e o universal à mera função de porto seguro (como seria o ouro), mas significa, propriamente, a dessubstancialização. Isto é, significa politicamente um ataque direto e frontal à classe operária fordista. É o primeiro aspecto que nos leva à virada neoliberal, na origem da financeirização verdadeira e própria, na segunda metade dos anos 1970, com a vitória do teórico Milton Friedman contra o pensamento e as políticas keynesianas. Com isso, abre-se uma fase em que a dessubstancialização caminha lado a lado com a sempre maior autorreferencialidade dos processos de criação de liquidez e expansão das finanças, no sentido que as finanças se referem a si mesmas e, por isso, se autonomizam em relação ao mundo do trabalho e da produção. Aí dentro, no mundo pós-classe operária fordista, todos nós vimos crescer e desenvolver-se a multidão: uma classe líquida, dispersa, segmentada, múltipla. Mas com um grande problema, que é como dar-lhe corpo.

A multidão toma corpo nos movimentos desde a revolta de Seattle (1999), mas as finanças intencionam sempre destruir o corpo da multidão. Interessante, no filme de Scorsese, é o raciocínio sobre a autorreferencialidade quando traz à baila o corpo das finanças. Tê-lo elaborado a partir da droga, da cocaína, do sexo, não foi uma escolha cinematográfica gratuita. Por um lado, corresponde exatamente àquele mundo, é uma fotografia fiel. Eu vivi os primeiros anos da década de 1980 em contato com a City de Londres [NT: pequena área que é o centro financeiro da cidade e do país], e era assim do começo ao fim, e depois a coisa degenerou ainda mais nos Estados Unidos. Por outro lado, é uma maneira de situar o problema do corpo, diante da forma que as finanças e a financeirização põem a questão.

A cocaína corresponde perfeitamente ao mundo das finanças, exatamente porque transforma o corpo da multidão — neste caso, dos investidores e pequenos investidores — em corpo individual. A droga arruína a relação entre multidão e corpo, reduz à individualidade o corpo da multidão. A cocaína é uma droga covarde, porque trai de maneira autorreferencial — isto é, com referência a si próprio e basta — o que, em vez disso, seria a dimensão coletiva da multidão. É uma coisa muito importante, que explica a insanidade que se aninha nesse mundo, a insanidade de pensar de poder viver numa dimensão tipicamente individual e autorreferencial, no que as finanças negam o problema do comum. As finanças são o comum ruim: nos fala da potência da multidão, mas segundo uma prática de todo autorreferencial.

Podemos dizer que é o comum drogado…

Exatamente. Resta um comum, e é por isso que nos interessa estudá-la, certamente não para apostar com o dinheiro dos pequenos investidores. Então, aí se aninha uma dimensão do comum completamente arruinada. É um comum ruim, porque nega o corpo na dimensão coletiva. Nesse sentido, a droga é perfeitamente funcional a esta derrocada perversa.

Você tocou num ponto central. Seguindo a sua interpretação e a de Scorsese, podemos dizer que as substâncias tomaram o lugar da substância. O capitalismo financeiro descrito no filme é, de fato, o triunfo do excesso (feito exatamente de sexo desenfreado e substâncias estupefacientes, em que se esfumam continuamente os limites entre lícito e ilícito, legalidade e ilegalidade). Podemos ver nesse excesso a folia como a outra face — obscura e inquietante — do excedente da cooperação social?

É certo que nesta história o excesso não foi exagerado! É uma história absolutamente verdadeira, uma das muitas que povoam e habitam o mundo das finanças. É uma história de excessos, desejos, de ardores por dinheiro e riqueza, baseada na vampirização da multidão. A multidão está do outro lado da linha dos telefonemas realizados pelos empregados de Bedford. É preciso imaginar esses pequenos poupadores que se deixam fazer de trouxas pelos pilantras, porque eles sentem a necessidade de um efeito riqueza, para depois ser inescrupulosamente enganados. Mas a multidão existe aí dentro, nos aparelhos de telefone usados 24 horas para angariar dinheiro para investir e fermentar os títulos de ações tóxicas. Ao mesmo tempo, existe o trabalho do excedente que é totalmente referido ao interesse privado, à propriedade privada, ao furto do dinheiro alheio. Esse mesmo excedente, eu posso imaginá-lo somente nos momentos mais belos e quentes das ocupações das praças dos últimos anos. É um excedente feito de corpos multíplices, que se veem e se falam.

Que saem da solidão do comum drogado…

Sim, é exatamente um excedente oposto e simétrico. É Spinoza contra Hobbes, o “estar juntos” bem contra o “estar juntos” mal, porque te destrói, provoca sofrimento, te vicia. Muito importante, na parte final do filme, é a traição. É algo recorrente na história das finanças, inclusive nas relações de intimidade e paixão que se criam nesse mundo: aqueles embusteiros, suas secretárias e amigos, no momento quando a casa cai, e cada um se acha numa sessão do tribunal ou com o FBI nos calcanhares, eles não hesitam em trair os melhores amigos. Cada um tenta salvar a si próprio, não se coloca nem mesmo o problema de como poderiam salvar também os outros. A traição é recorrente e muito frequente no mundo das finanças.

Podemos dizer que a traição é consubstancial às finanças.

Absolutamente sim. Recentemente, o diretor do Credit suisse foi novamente pego com a boca na botija pelas autoridades fiscais dos Estados Unidos, por ter ajudado ou promovido a evasão de grandes contribuintes e ricos americanos. A primeira coisa que ele fez foi denunciar os colaboradores mais próximos. Denunciou-os candidamente, quando todos sabiam que eles iam aos Estados Unidos às custas do banco para fazer o que os diretores e superiores mandavam-nos fazer. Na literatura, já no romance de Bret Easton Ellis, Abaixo de zero, estava configurada perfeitamente essa ética negativa que venta no mundo das finanças e lhe é funcional. Porque tem de ser assim, não existe outro jeito para que as finanças funcionem.

Isto nos leva a raciocinar sobre uma questão: existe uma ética da multidão que não seja a negativa das finanças? O que é uma ética do comum? Acredito que não sejam perguntas privadas de fundamento. Como fazer viver uma vida sem trair o coletivo? É uma pergunta que coloco, a que não tenho resposta, senão o fato que devemos buscar essa linha de conduta, este comportamento, essa ética de uma violência não-financeira.

Outro tema que surge de O lobo de Wall Street é a implosão da classe média. Dela vem o protagonista, bem interpretado por Leonardo Di Caprio: na frente do bloco de mobilidade social, a única via parece ser a rapinagem organizada dos salários dos membros, sobretudo, da classe média. Como lhe explica o primeiro corretor que o introduz à Wall Street, o problema é como tirar o dinheiro da carteira dos outros e colocar na sua. O sonho americano vira pesadelo, como acontece amiúde nos filmes de Scorsese. Nesse caso, a riqueza para todos prometida pelo “comunismo do capital” se torna a riqueza do 1% contra os 99%…

A classe média é evidentemente o alvo. O filme narra a história de como a classe média é vampirizada pela financeirização e novos modos de produzir riqueza que sustentam a financeirização. A classe média existe como miragem, como um conjunto de valores (de mobilidade social, de crescimento da riqueza etc) sobre o nada, sobre areia movediça. A única maneira de conceitualizar a classe média, hoje, é falando sobre o nada, sobre o vazio absoluto, e como este ex nihilo é produtivo de comportamentos. As finanças se nutrem de liquidez criada do nada e produzem uma tal polarização que torna impossível o que, no passado, era a base constitutiva da classe média, isto é, a redistribuição. As finanças sugam as poupanças, cancelam-nas, ou melhor, redistribui-as exclusivamente para o vértice da pirâmide social. É isto que explica a multiplicação de novos ricos em relação à sociedade fordista, quando obviamente havia ricos, mas em número mais contido. E é isto que explica o aumento de novas formas de pobreza.

Em seu interior, entre os dois polos, existe uma classe média que se parece com o tubo estreito de uma clepsidra. O estrangulamento da classe média nos remete de volta ao nó da redistribuição. Como se pode conceber uma redistribuição a partir das cinzas da classe média? Estou convencido que a renda de cidadania se mantém como um tema central, isto é, uma renda que introduz a cidadania, sem que esta possa depender de uma inserção estável em processos de trabalho assalariado e mobilidade, que estão historicamente na origem da classe média. A classe média, neste ponto, aparece em uma forma anulada pelas finanças.

Um aspecto que nos parece problemático na narrativa de Scorsese é o risco de um retorno à dialética entre economia real e economia financeira, ali onde o próprio filme pressupõe seu final. É particularmente a figura do policial que parece encarnar o mito da gente honesta que trabalha e pega o metrô, contra os sonhos dos peões de Wall Street. O que pensa sobre isso?

Para respeitar a história, acredito que Di Caprio não fique na prisão por mais de dois anos. Temos que levar em conta, também, que a prisão para esse gênero de criminosos é como um club méditerranée, além do mais, trata-se de um ritual de passagem publicitária para o circuito das estrelas, inclusive o universitário. Todos os grandes delinquentes se tornaram conferencistas aureamente bem pagos para contar como funciona o mundo.

Porém, a mim parece que o efeito maior do final esteja no fato que, no conjunto da obra, nós nos identificamos com Di Caprio e não, com certeza, com a vida cinza e triste do “justo”, o policial do FBI. Isto é importante, porque nos diz que as finanças estão dentro de nós. Ou melhor: esses mesmos valores, também em sua mesquinhez e vulgaridade, em certo sentido são transversais. Não se pode separar o bom do mau, isto é, a economia boa (a “real”, “produtiva”) da economia má (as finanças, “improdutiva”), porque isso não se pode fazer sequer dentro de nós, porquanto possamos manter um olhar crítico e negativo.

Na realidade, é Di Caprio quem vence e não o policial do FBI. Isto nos remete à impossibilidade e à invalidez, também do ponto de vista teórico e analítico, de reproduzir a separação e dicotomia entre economia boa e economia má. Não existe nenhuma possibilidade de retornar ao fordismo, como economia supostamente boa quando não havia crises financeiras, e em que as finanças eram residuais e marginais em relação à centralidade da grande indústria, como oposição a uma economia degradada pelas finanças, que agora se tornaram determinantes. Mas este é o capitalismo: o capitalismo financeiro é o capitalismo, se chama assim porque as finanças repõem uma modalidade de produção de lucros que não podiam mais ser criados, marxianamente, segundo a modalidade da teoria do valor-trabalho [do fordismo]. As finanças são a modalidade de produção dos lucros numa economia em que se tornou central o general intellect. Este é o capitalismo: buscar destilar as finanças para premiar a economia real não está nem no céu nem na terra.

Então, a mim parece interessante que o espectador sinta essa identificação com o protagonista que, embora alguns considerem muito perigosa, seja o próprio limite do filme de Scorsese. Sentir essa identificação com a vida desbragada do personagem, por todas as trepadas e cheiradas, não te identifica decerto com homem bom do FBI. Aqui está a força do filme, porque implícita ou indiretamente nos diz que este é o capitalismo em que estamos.

Podemos dizer, portanto, que as finanças se encarnam nos corpos enquanto corpos individualizados?

Exatamente, é assim. E um modo de lutar contra as finanças é perseguir uma corporeidade multitudinária, que nos leve a “estar bem” com os outros nas praças, nos bairros, nas ocupações. Não quero dizer que esta seja a solução, mas é sobre esse terreno que nós construímos outra corporeidade, o pressuposto de um pensamento crítico que se encarne nos processos reais.

 

Tradutor: Bruno Cava

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