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Maré: cinco anos sem Mateus

Por Rociclei Silva, UniNômade

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O tempo passou e eu não senti. De agosto a novembro, foram quatro meses intensos indo à Maré todos os sábados para participar do curso de comunicação organizado pelo Jornal O Cidadão. A cada sábado um mundo novo se abria para mim. Conversando com os moradores, andando por suas ruas e becos, mundos, vidas, culturas se revelavam para mim. Em todo canto há um conto, uma história a ser contada. Assim fui descobrindo a Maré por dentro, vendo seus conflitos, contradições, mas também sua força e sua potência. Entre tantas histórias contadas, uma eu tinha profundo interesse: a história de Mateus. Mateus Rodrigues, de apenas oito anos, assassinado em 2008 na Baixa do Sapateiro, favela da Maré, na porta da sua casa quando saia para comprar pão. O menino foi morto por um tiro de fuzil disparado por um policial militar.

É sábado, sete de dezembro, lá estou eu indo novamente para Maré, mas desta vez para participar da festa de 14 anos do Jornal O Cidadão e da conclusão do curso de comunicação comunitária. Antes da festa, um ato pelos cinco anos sem Mateus. Mateus não foi à única criança vitima da violência nas favelas, mas é preciso lutar para que outros Mateus não venha a cair. Além disso, o caso Mateus não pode ser esquecido. Foi isso que nos motivou a organizar o ato.

Eram duas da tarde e eu chegava a Maré. Comecei a subir o morro do Timbau. Ruas cheias, crianças correndo, churrasquinho, cerveja, pagode e funk. São formas de libertação que aliviam o peso e as dores do corpo e da alma após uma semana de exploração. A favela transborda alegria e descontração. No Ceasme me encontro com o pessoal do jornal e saímos juntos em direção à Baixa do Sapateiro, para irmos ao ato. Em menos de 10 minutos chegávamos ao local, um pequeno largo com uma arvore no centro, onde já estava o pessoal do movimento Favela Não se Cala panfletando e distribuindo cartazes com participação ativa das crianças. Já havia passado várias vezes por aquele local e não sabia que ali teria sido o cenário da triste história de Mateus.

A música chamava a atenção dos moradores, que timidamente começaram a mostrar o rosto, se posicionando na porta de suas casas ou nas janelas. Os olhares atentos e interessados demonstravam o apoio ao ato, mas o medo os silenciava. Mesmo sem estar de corpo presente, o tráfico se impõe e aterroriza. Falar muitas vezes pode custar a vida. Incrível, mas o poder do tráfico fazia as pessoas esconderem suas identidades. Naquele momento, uma integrante do movimento Favela Não se Cala já entrevistava a mãe do Mateus. Já estávamos há uns vinte minutos no local, quando iniciaram as falas com ativistas, jornalistas, simpatizantes e professores do pré-vestibular se revezando no microfone. As falas abordavam desmilitarização da PM, UPP, direitos humanos, racismo, entre outros temas.

Durante as falas optei por circular entre as pessoas e observar os moradores e percebi que havia forte rejeição às máquinas fotográficas e filmadoras, e decidi guardar meu equipamento e tentar a aproximação. Deu certo, consegui arrancar algumas palavras dos moradores, que demonstraram solidariedade à família do Mateus e apoio ao ato. Por um instante, voltei os olhos para o beco onde reside a família do Mateus e percebi que a vizinha da família, sentada a porta de sua casa, chorava. Aproximei-me e perguntei se poderíamos conversar. Ela concordou desde que eu não tirasse foto e nem filmasse. Suas primeiras palavras foram: ”choro porque Mateus era uma criança muito boa que morreu de forma muito violenta. Nossa vida aqui não tem valor”. Em seguida completou: “A vida aqui é muito difícil moço. Se a gente não se ajudar fica mais difícil ainda sobreviver. A gente dá as mãos para unir forças e superar o sofrimento”. Enquanto conversávamos, uma senhora de olhar sereno e sorriso simpático se aproximou e foi descrevendo Mateus nos mínimos detalhes, assim como seu assassinato. Aquela senhora de voz suave era dona Maria das Graças, avó do Mateus. Conversamos por um tempo até que ela chamou uma de suas filhas e me apresentou. Era Gracilene, mãe do Mateus, que apertou minha mão, esboçou um sorriso e perguntou: “O senhor quer gravar também?”. Respondi que não e falei que não estava ali para falar da sua dor. Gracilene respondeu: “Querido, a minha dor nunca vai passar. Aprendi a viver com ela. A dor da morte do Mateus vai me acompanhar até o resto de minha vida”. Conversamos por um tempo na porta da sua casa, local onde Mateus morreu. De repente, somos surpreendidos por um gesto de carinho e solidariedade de dona Maria das Graças que aparece com uma jarra de café para as pessoas que estavam no ato. Mesmo com toda dificuldade da família, ela pensou em todos que ali estavam e demonstrou o amor que existe nas favelas.

Enquanto conversava com Gracilene, cerca de 10 crianças brincavam e cantavam na frente da casa. Sete eram irmãos do Mateus. Pés descalços, não havia nenhum brinquedo. Mas quem disse que isso era obstáculo para eles. Sorridentes e alegres se divertiam. Enquanto brincavam, Gracilene pegou o microfone e agradeceu o ato. Neste momento, as crianças pediram o microfone e cantaram uma música evangélica em homenagem a Mateus. Momento sublime, aquelas crianças passavam por cima da pobreza, da miséria e da dor e homenageavam o irmão no mesmo local onde ele caiu morto. Que exemplo de força e superação. Pequenos grandes guerreiros a quem me curvei e abracei todos. O ato praticamente chegava ao fim de forma mágica e encantadora nas suaves vozes dos irmãos do Mateus.

O ato chegou ao fim e estávamos caminhando pelas ruas da Baixa do Sapateiro retornando ao Morro do Timbau. Depois de todo o vivido, não havia como deixar de refletir naquele exato momento. Pensei comigo: quando se vive mergulhado numa incomensurável miséria, pobreza, e violência, toda e qualquer forma de sabotagem é legitima. É na sabotagem que o pobre escapa, afirma a vida e promove a autovalorização.

A toda sabotagem, a Casa Grande responde com um comando na tentativa de dobrar a senzala. Mas se o senhor trata a favela como senzala, o pobre tem a favela como quilombo, isto é, resistência. A favela nasceu das mãos do pobre, tornando-se território de autoprodução de espaços urbanos de luta e persistência dos pobres. No quilombo metropolitano, o pobre não se curva ao senhor, mesmo que o capitão do mato esteja fardado e com balas no pente, e cria sua música, sua linguagem, sua dança e sua comunicação. Se antes os escravos dependiam da casa grande para se alimentar, agora é a Casa Grande que vai ao quilombo se alimentar de sua produção. É insistindo em sua adversidade que o pobre renova e inova todos os dias. A sabotagem é sua condição de existência.

Como bem disse Mandela ”O corpo humano tem uma enorme capacidade de se adaptar às circunstâncias difíceis. Descobri que se pode suportar o insuportável, quando se é capaz de manter o espírito, mesmo quando o corpo te põe à prova.” O que vejo em toda favela é o pobre suportando o insuportável na força e persistência da vida.

No fim da tarde, estávamos de volta ao Morro do Timbau, no Ceasme, para comemorarmos com muita festa os 14 anos do Jornal O Cidadão da Maré. 14 anos de luta fazendo comunicação com e para a favela. Comunicação que dá voz a favela. Comunicação que é favela por ela mesma. E como desabafou Gizele Martins (jornalista, ativista e moradora da Maré): da grande mídia não podemos esperar nada, pois a grande mídia celebra Mandela, mas é contra as cotas. Celebra Mandela, mas apoia as incursões da PM na favela. Celebra Mandela, mas acha que bandido bom é bandido morto. Celebra Mandela, mas celebra a detenção dos jovens funkeiros no shopping em Vitória. Celebra Mandela, mas apoia a revista nos ônibus que partem dos subúrbios pra zona sul e a PM na praia pra “evitar arrastões”. Celebra Mandela, mas é a favor da redução da maioridade penal. Celebra Mandela, mas acha que o feriado de dia da Consciência Negra é uma besteira, que devíamos ter uma “consciência humana”. Celebra Mandela, mas acha que não existe racismo no Brasil. E eu digo: celebra Mandela e ignora os milhões de Mateus que caem mortos nas favelas de todo Brasil.

É senhor de engenho, teu chicote pode fazer a favela chorar, sofrer e deixar marcas no corpo e na alma, mas nunca fará a favela se dobrar e cair de joelhos diante de ti. E se a dor ainda castiga o coração, também renova as forças para lutar pela vida. E enquanto houver vida haverá luta. Mateus vive em cada coração.

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