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Me chame pelo meu outro nome

Por Paul Preciado | Trad. Inaê Diana Ashokasundari Shravya

Contudo me ocorre, não tão frequente quanto antes, me deparar com alguém que se obstina em se referir a mim com um pro-nome feminino, ou que se nega a me chamar pelo meu único nome, esse outro nome que agora é meu. Posso então rebater retoricamente seu enunciado, apresentar provas institucionais (mostrar meu novo documento de identidade, como um convertido do século XV mostrava seu certificado de pureza sanguínea) ou até mesmo acentuar minha performance da masculinidade: deixar de me barbear durante dois dias, usar as botas mais grossas, a calça mais larga, evitar carregar uma bolsa na mão, posso até cuspir ao caminho na rua ou deixar de sorrir (a masculinidade requer às vezes esse conjunto estúpido de coreografias corporais), mas nenhuma dessas práticas basta para provar a verdade do gênero, pela boa e simples razão que a verdade do gênero (como a pureza de sangue no século XV) não existe fora deste conjunto de convenções sociais intersubjetivas. O gênero não é uma propriedade psíquica ou física do sujeito nem uma identidade natural, é uma relação de poder submetida a um constante processo coletivo de sujeição – ao mesmo tempo de suporte e de controle, de subjetivação e de submetimento.

Durante os dois ou três primeiros anos da transição, a masculinidade de um homem trans trava por um fio. Um fio que vai de mão em mão, que qualquer um pode atar ou romper. Cada pessoa, cada instituição, num momento dado pode atar esse fio ou cortá-lo. Um aperto de mãos, um olhar, um nome ou um pronome pronunciados, um documento, uma assinatura, a aceitação de abrir uma conta bancária, a aceitação de uma carteira de motorista, uma confidência feita, um braço passado sobre o ombro, uma pergunta, um modo de oferecer um cigarro ou um copo. . . o fio se tece ou se desfaz. Em menos de um segundo. Esse fio social é o que nos assujeita e nos subjetiva, o que nos constitui ou nos destitui como sujeitos políticos.

Se a decisão de iniciar um processo de redesignação de gênero é individual e aparentemente voluntária, o processo de transição é radicalmente coletivo e aberto a constantes validações ou censuras. A intensidade da dor que se sente quando uma pessoa se depara com alguém que se refere a ela com outro pronome, ou que se negue a lhe chamar pelo único nome que agora tem é diretamente proporcional à força com a qual esse pequeno gesto vem a repetir uma cadeia histórica de violências e exclusões. Esse enunciado insignificante vem a restituir uma hierarquia normativa entre os que têm direito a um (pro-)nome e os que não. Quem (fingindo que sabe sobre nosso sexo mais do que nós mesmos) se nega a nos chamar por nosso novo nome, ou a declinar em masculino ou feminino nossa presença na língua, não antepõe, contrariamente ao que usualmente se afirma, a biologia ao social – frequentemente, quem o faz sabe pouco ou nada de nossa anatomia-, senão que a prioridade de uma ficção social normativa sobre uma ficção social em vias de instituição. Para dizê-lo nos termos do antropólogo Philippe Descola, nos processos de reconhecimento de gênero e sexual, não há uma luta entre a natureza e a cultura, senão entre dois ou mais registros culturais da diferença sexual: um normativo e outro dissidente.

Cada dia, enquanto caminho no meio dessa rede inaudita de fios friáveis, digo a mim que fazer uma transição de gênero é talvez o processo político experimental mais belo que um humano de princípios do terceiro milênio pode viver. Mas também um dos mais arriscados, comparável talvez à imigração, à “reinserção” depois de sair da prisão, à volta ao trabalho depois de que te diagnosticaram com AIDS ou câncer, a ser mãe ou pai ou filho ou filha ou filhe adotivo, a passar de ser atriz pornô a ser professora de ginástica, a ter sido diagnosticado esquizofrênico ou borderline e tentar voltar a fazer isso que alguns chamam, sem saber do que falam, vida normal.

Em cada processo de transição se leva a cabo uma re-escritura completa do contrato social no qual a existência política de um corpo pode ser afirmada ou negada. Como para um migrante, o êxito da viagem da transição depende da generosidade com a qual outros te acolhem e te seguram, sem pensar constantemente “eis um estrangeiro” ou “você é na realidade uma mulher”, senão olhando sua singularidade como corpo vulnerável em busca de outro lugar no qual a vida possa arraigar. E de passagem, descobrindo contigo o espaço novo da realidade social que se abre com tua existência. Como um migrante, uma pessoa em transição elabora pouco a pouco uma cartografia de sobrevivência que distingue espaços transitáveis ou intransitáveis, lugares nos quais pode existir ou nos quais se vê constantemente contestada, até se constituir com êxito (não sempre) uma rede de sujeição que permita dar existência material à ficção política de seu gênero.

No domínio do humano, sugeria Derrida em seu último seminário A Besta e o soberano, não há soberania natural. O que aprendemos da transição (da migração, da reinserção…) é que a soberania de qualquer sujeito político (não só do trans, ou do migrante, ou do sujeito não-branco…) não vem dada de antemão senão que se faz e se desfaz constantemente através de um amplo suporte social e institucional: se a qualquer um de vocês lhes fosse retirado o documento de identidade, o passaporte, a certeza de poder se apresentar no colégio como o pai de seus filhos, a possibilidade de ir visitar um médico de rotina, ou de ir à piscina, se não se aceitasse lhe chamar por seu nome ou utilizar um pronome determinado para se referir a você, se lhe fosse retirada a saudação, o afeto, o abraço… sua existência pessoal, sexual e política se veria corroída ou até mesmo destituída. Dessa existência que você imagina como autenticamente sua, não restaria coisa alguma,

O que caracteriza a nossa ontologia é um radical princípio de indeterminação: a necessidade de estar sujeita a um constante processo de construção e desconstrução social. Nossa soberania não está feita de anatomia, senão de um andaime de ficção, algum tipo de exoesqueleto social que nos mantém vivos: não há nada de “real” num nome, ou num adjetivo, ou num documento de identificação que diz alemão ou francês, espanhol ou sírio. O nome é fumaça, dizia Goethe, e entretanto respiramos graças a esse sopro de fumaça compartilhado, Por isso, por favor, nos chamem pelo nosso (outro) nome.

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