Por Bruno Cava, UniNômade
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Crítica da série do Netflix: O mecanismo (2018)
Ao concluir de um só golpe a primeira temporada, faço comentários em primeiríssima chacoalhada. Antes de qualquer coisa, é uma mistura poderosa de obra de tese e paródia, ao mobilizar o nosso passado recente, que tanto nos envolve e remexe. Ao longo dos oito episódios saltam aos olhos vários problemas de composição, escolhas ruins e condicionamentos do formato Netflix. Não falo só do narrador em off supérfluo, como também de uma instância de narração cinematográfica que não consegue negociar bem as variações de perspectiva, entre câmeras subjetivas, planos-sequência, closes, tempos do realismo da ação e do psicológico, e sem falar nos frequentes blecautes de dramaturgia, iluminação e sonoplastia.
Apesar disso, se podem apontar alguns pontos fortes, a começar pelo deslocamento da questão da corrupção para a do mecanismo. Na série, a corrupção não é confinada numa questão entre as outras (haveria a questão da corrupção, da saúde, da educação…) Uma questão que, a seguir, caberia ser tratada como problema moral ou moralista. Ao contrário, a corrupção é comparada ao câncer, uma doença em geral disparada por razões ambientais e que se alastra molecularmente, com efeitos catastróficos sobre o corpo. Diagnosticado com transtorno bipolar, Ruffo (Selton Mello) vai passear no limiar da loucura, exatamente onde consegue tocar a loucura do próprio sistema, a sua demência constitutiva. A conexão entre a condição mental do protagonista e o autismo da filha, fissurada pelo conjunto de Mandelbrot, leva-os ao clímax revelador da primeira temporada: a lógica fractal da corrupção sistêmica.
A corrupção se espalha nos níveis micro e macro, como uma ressonância que afeta o todo. Não é caso de esquerda ou direita e termina por contaminar todas as demais questões, como um processo multiplicador. Todos são engolfados pelo mecanismo, como uma panóplia de elementos móveis uns em relação aos outros, diferentes pares cinemáticos (uniões de contato, acoplamentos, acúmulos, redundâncias) cujo propósito é mover o conjunto.
Afinal, você quer ou não um encanamento, quer ou não a refinaria, quer ou não um governo com políticas sociais? Para além da ideia de custo Brasil ou do rouba mas faz, tem-se aí um maquinário para além das vontades subjetivas ou indivíduos específicos, que é o que resolve os problemas e põe o país para funcionar. A série compõe com os dois filmes Tropa de Elite um mesmo universo dentro do que o cineasta-justiceiro traça a sua crítica dos falsos problemas, em busca de termos melhores.
No filme de 2008, era o aspecto territorial e situado da rede de relações de poder: o consumidor é arrastado para o sistema, os militantes são acusados de uma ideologia inútil, e cada espectador é alvejado na cena final. No segundo Tropa de Elite, a lente abre a angular e os planos são escandidos para revelar a articulação política, as várias ligações entre as economias de ilegalidades, os órgãos de segurança pública e os políticos. Na cena final daquele filme premiado em Berlim, a câmera sobrevoa a Esplanada dos Ministérios em Brasília até ultrapassar o Palácio do Planalto, não se satisfazendo em simplesmente desmascarar os comandantes. Nessa sequência, Mecanismo é o terceiro momento, ao evoluir a investigação para entretecer micro e macro e aprofundar os enlaces até o nível do cotidiano, da normalidade de uma corrupção que media relações das mais prosaicas às mais macropolíticas.
A primeira temporada termina num impasse que remonta à filosofia antiga. Se o sistema funciona maquinalmente pela força impessoal de uma corrupção pervasiva, como escapar dele, com que linhas de fuga, e como situar a própria instância crítica? O diagnóstico crítico de um poder que se espraia por todo lado como Mecanismo não dissimula o reconhecimento da própria inutilidade da crítica? Não seria o resultado inevitável dessa constatação a sublimação das forças de resistência a um elemento da paisagem, tão inofensivo quanto integrado ao próprio metabolismo do monstro? É esse, precisamente, o impasse a que chega Ruffo. Se a realidade é governada por um destino micrológico, por uma malha multinível de operadores, intermediários e financiadores de todas as escalas, de que adianta perseguir a sua desmontagem e superação? Teria o protagonista sido paralisado pela própria revelação?
Outra personagem, Verena (Caroline Abras), responde dizendo que é isso que eles fazem: seguir adiante sem calcular consequências, a heroína que subjetivou a hybris e simplesmente não se importa em ser consumida no processo. Sua volúpia de liberdade coincide com o destino a que se entrega.
Mas ainda é pouco como explicação do agenciamento que criou as condições para que a Lava Jato pudesse golpear a casta político-empresarial. É aqui, no plano ético das linhas, que a série bate no teto. Nessa primeira temporada, a investigação não chega às condições, até a Mecanosfera de afetos e acontecimentos que impeliram o Brasil em seu transe de 2013-16.
Não chega em Junho de 2013, sem o que o bloco de poder, seus próceres, Magos e Richelieus, não teria rachado a ponto de permitir um ataque tão eficaz. Não roça sequer a composição da subjetividade que, em primeiro lugar, é extorquida fractalmente, em todos os vários encadeamentos e compenetrações. Daí os vários mocinhos dessa história jamais aparecerem como peças de uma agenciamento maior que é o avesso do mecanismo, tendo que ser reduzidos a motivações e perfis pessoais: a vingança de Ruffo, a vaidade de Rigo/Moro, o senso de dever de Dimas/Deltan, o orgulho profissional de Vander e por aí vai.
O antagonismo se resolve na psicologia e a série trai o seu diagnóstico quando se pergunta pela inversão de perspectiva do próprio mecanismo. O desejo termina achatado ao plano do subjetivo e do objetal e isso atrofia o conflito no novelesco e no melodramático. Fecunda em deslocar o problema com a introdução da explicação mecanicista ou organicista, a série patina no mesmo lugar em fazer a passagem aos agenciamentos desejantes, isto é, em dar o passo ao maquinismo que mobiliza o mecanismo antes de qualquer outra coisa.
Nesse sentido, e aí está o meu principal descontentamento, a série termina deixando a política em segundo lugar, pois sem desejo ela não passa de narração que desenha caminhos de salvação e de perdição. Ir além de esquerda e direita, além das ideologias, também não pode significar ir aquém delas. Tomara que a próxima temporada explore outras linhas de composição, além de solucionar os vários gargalos técnicos que estão pesando no conjunto.
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