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Um cinema para descolonizar o vitimismo humanitário

Por Miguel Mellino e Giuseppe Orlandini, no Decolonizing Knowledge, 1/3/2016 | Trad. Bruno Cava, UniNômade

fuocomare

Resenha de Fogo no mar (dir. Gianfranco Rosi, Itália, 2016)

A representação das imigrações no cinema italiano continua bastante problemática. O último exemplo dessa longa história de “repetições sem diferenças”, para parafrasear uma conhecida expressão de Deleuze, é o filme Fogo no mar, do diretor Gianfranco Rosi, que venceu o Urso de Ouro e o prêmio do júri da Anistia Internacional, no festival de Berlim. Não é por acaso que tenha vencido justamente em Berlim, dada a ordem do discurso com caráter de emergência que vem sendo imposta à dita “crise dos refugiados”, que continua a dominar a conjuntura política europeia. O filme-documentário de Rosi foi recebido positivamente não somente por boa parte da opinião pública sensível à questão, como também em âmbitos mais ou menos especializados da pesquisa teórica e prática sobre o fenômeno das migrações. Mas parece realmente difícil ver a narrativa de Fogo no mar como diferente do festival de vitimologia, de bons sentimentos e paternalismos humanitários, com que desde os anos 80 o cinema italiano codifica a experiência do imigrante e a relação entre a sociedade italiana e esse fenômeno.

Humanitarismo e cinema implicado

Digamos de uma vez que o filme de Rosi (construído como olhar documentarista sobre o seu próprio objeto) nos parece em perfeita sintonia com o regime discursivo institucional pelo qual se tentou remodelar, pelo menos num primeiro momento, do verão passado em diante, a gestão europeia e italiana das imigrações. Trata-se de uma nova enunciação do discurso humanitário, que apareceu como resposta de governo quer à imponente série de naufrágios de imigrantes “ilegalizados” no Mediterrâneo, quer à “crise” da gestão das políticas imigratórias da União Europeia, desencadeada no próprio território europeu devido ao movimento de milhões de “requerentes de asilo” que estão em fuga da Síria e de outras zonas de guerra. Está claro, contudo, que essa nova construção humanitária da crise deve ser ainda considerada como um elemento totalmente interno e necessário ao funcionamento do regime europeu de controle (militar, policial e carcerário) das fronteiras e das migrações. Sabemos que, desde os anos 90, o discurso humanitário (nas suas múltiplas traduções no business do acolhimento) e o arame farpado (em todas as suas dimensões materiais e simbólicas) fazem parte de um único e mesmo dispositivo de governo das imigrações, a mão esquerda e a mão direita do Estado, para dizê-lo com Bourdieu.

O grau zero desse novo momento humanitário pode ser bem representado pelo conhecido plano de Angela Merkel, apresentado no último verão, na sequência da grande repercussão midiática da foto de Aylan, o menino sírio morto afogado, e da abertura momentânea da Alemanha e de outros países europeus aos pedidos de asilo por parte de imigrantes em fuga, bem como à proposta de revisão, ainda que efêmera, da Convenção de Dublin. A partir desse momento, o regime de representação institucional/midiático cada vez mais ficou marcado pelo que podemos chamar de “discurso do resgate”, ou seja, a codificação dos imigrantes cada vez mais como “refugiados” (favorecendo assim uma ulterior estigmatização dos imigrantes econômicos, que estão inteiramente excluídos dessa classificação), sobretudo enquanto vítimas ou corpos a ser salvos, ajudados, protegidos porque sofredores e necessitados da nossa compaixão, visando à sua re-humanização. Neste ponto, é preciso ressaltar que esse discurso salvacionista começou a emborcar no arco de tempo que vai do massacre de 13 de novembro de 2015 na boate Bataclan, em Paris, aos misteriosos fatos da noite de ano novo em Colônia, na Alemanha, seguidos da codificação racista em ambos os casos, produzida pelas mídias e posteriormente reforçada pelos posicionamentos oficiais assumidos por muitos governos europeus. Daí por diante, assistimos cada vez mais à construção do imigrante-refugiado como inimigo público e sujeito perigoso, desta vez na roupagem do predador do welfare, do cidadão “binacional”, potencialmente desleal, do potencial estuprador ou terrorista islâmico, do estrangeiro culturalmente inassimilável.

A representação da experiência imigratória de Fogo no mar nos parece uma engrenagem interna a esse processo de significação, ou seja, uma produção de sentido somente enquanto fragmento do discurso humanitário. As suas estruturas do sentir implicam capacidades interpeladoras (de mobilizações subjetivas) que, por sinal, afundam raízes num persistente inconsciente colonial europeu. Pensa-se aqui na codificação dos desembarques proposta pelo filme, cuja colocação em cena parece inteiramente interna à lógica vitimizante e dessubjetivante da atual razão humanitária de governo, que está fundada no sofrimento e na compaixão. No clima de uma humanidade piegas, de bons sentimentos nauseantes e de uma virginal simplicidade provinciana, a partir do que se constrói a Lampedusa do filme, os imigrantes aparecem como “humanos” e os lampedusanos como pessoas boas e simples, para não dizer inofensivas — temos aqui em mente a cena do jogo de futebol entre imigrantes internos a um presumido Centro di Identificazione, — sobretudo porque são vítimas desamparadas de formas “inenarráveis” de violência. Desse ponto de vista, o filme se compraz num gozo necropolítico, quase mórbido, do imigrante-vítima-objeto-cadáver, — na maior parte dos casos, rigorosamente negros — que amiúde está radicado num certo tipo de imaginário (midiático-cultural-político) coletivo, concentrado sobre um novo delírio maniqueísta. De um lado, a consciência moral, os “emancipadores” (aqueles em condições de conduzir ativamente o resgate), de outro lado, os novos escravos, os “submersos” a ser representados (sujeitos-assujeitados já na sala de espera da história).

É particularmente grotesca — porque impregnada de uma infantilização paroquial e colonial — a cena em que a câmera pede aos imigrantes que contem suas histórias e cantem ao som de rap as violências sofridas, enquadrando-os no lugar de enunciação. Aqui, não somente se ativa o habitual dispositivo narrativo-pastoral (e racista) do tipo: “venham contar o seu sofrimento, Eu o difundirei e serei a voz e consciência de vocês”, mas o próprio relato subtraído dos imigrantes não serve para outra coisa senão reforçar um dos principais enunciados da ordem do discurso humanitário: a violência nos é “narrada” como qualquer coisa de distante e separada de nós (da Europa e de sua responsabilidade), como tendo a ver somente com lugares distantes, a Líbia, o Sudão, a Síria, a África como um todo, o ISIS, ou seja, com nomes que terminam por aparecer como os “únicos” significantes maus do filme, e que a seguir se inscrevem naquele imaginário orientalista e colonial que sempre conota esses territórios como escuros, incivilizados, afligidos por violências endêmicas e “tribais”. Como o discurso humanitário de nossos dias, o filme constrói os “refugiados” enquanto produtos de uma catástrofe natural, como o resultado de um processo totalmente externo ao sujeito enunciante (europeu). Tentemos ser claros aqui: não que o canto da própria exploração ou miséria seja, por si próprio, privado de força ou autonomia subjetiva, não, a história dos sujeitos oprimidos (escravos, índios, proletários, negros, favelados etc) nos diz exatamente o contrário. O problema aqui é o enquadramento que atribui uma significação paternalista à tomada de palavra pelo imigrante, do que não resulta noutra coisa que não na domesticação de qualquer instinto rebelde. E pouco importa o recorte documental do filme, ou seja, que os imigrantes, o que eles fazem e dizem, assim como os desembarques representem o registro de situações reais, porque em todo caso o que está em jogo é uma determinada representação subjetiva.

Por isso, não nos parece exagero definir Fogo no mar como outra representação implicada do fenômeno imigratório: a sua subjetividade — a “posição do sujeito enunciante” — não é muito diversa daquele do Ministério do Interior, da Marinha de Guerra e das instituições de acolhimento, que aliás recebem o agradecimento pela colaboração nos letreiros finais do filme.  Documentar a relação de Lampedusa com os imigrantes a partir da presumida humanidade dos funcionários do Estado ao enfrentar os “desembarques” e a “emergência” criada pelas políticas imigratórias europeias parece aqui não somente como ainda outra variação do nacionalismo metodológico na representação das migrações, como também, acima de tudo, uma estratégia discursiva assaz discutível num momento em que está cada vez mais claro que o sistema de acolhimento não passa de um gigantesco negócio humanitário, cuja finalidade é a exploração desavergonhada dos imigrantes e a produção de força de trabalho servil (basta ver medidas como o constrangimento ao pagamento de serviços e tíquetes sanitários pelos “refugiados”, o confisco de seus bens, a remoção dos benefícios etc). Para dizer diretamente: cremos que o ponto não esteja na maior ou menor humanidade dos socorristas, mas na desumanidade das instituições que eles representam, alicerces do atual regime de controle, ilegalização e exploração das migrações.

Lampedusa entre a banalidade do bem e a “brava gente italiana”

O panorama não muda se atentarmos para o olhar que o filme nos oferece sobre Lampedusa. A representação dos lampedusanos é construída entre a moldura discursiva de uma banalidade do bem já vista. Também aqui, pouco importa se os personagens do filme sejam os verdadeiros habitantes da ilha, recrutados pelas forças da ordem, que estejam falando de si e da sua vida cotidiana. Cada personagem do filme — as duas crianças, a dona de casa rigorosamente orientalizada ou sicilianizada, o médico, os policiais, os trabalhadores, os pescadores, os apresentadores do programa da rádio — toca a sua vida cotidiana fazendo o bem, mostrando a sua contribuição humilde e bondosa ao bem comum numa comunidade local codificada como alguma coisa de muito próximo daquilo que Rousseau havia idealizado como o bom selvagem. O olhar folclorizante-exotizante do filme segue sem pestanejar, atuando como um espelho para certo tipo de gozo nacional-identitário que é imprimido a uma autorrepresentação regionalista ou localista, como uma forma de vida boa em si, simples e, sobretudo, genuína (sintomática, nesse sentido, a cena em que é mostrada a mãe da criança protagonista enquanto cozinha a massa com frutos do mar).

Nesse contexto, se torna particularmente repulsivo o discurso-sermão do médico da ilha sobre o sofrimento dos imigrantes, as suas necessidades e o seu empenho por eles. Mais uma vez, como o restante dos personagens, o que aqui conta não é a sua maior ou menor sinceridade, já que o que chega a nós não é a realidade áspera de todos os dias vivida em primeira pessoa (que pode ser também de grande valor e dignidade), mas a codificação discursiva dessa realidade produzida pela narrativa em questão — não o médico real, portanto, mas sim o médico de Fogo no mar. Interessa-nos assim não tanto a realidade que o filme mostra, mas o modo como a representa; não Lampedusa, mas a Lampedusa de Rosi. Claro, o que dizemos, então, não se refere à vida real dos personagens, mas à “política da representação” que o filme constrói para nos transmitir a experiência.

A política da representação, no filme, concede demais ao imaginário nacional-colonial da “brava gente italiana”. A narrativa de Rosi é, de fato, despida de contradições (de maldades, de ambivalências). Não há, por exemplo, qualquer traço de racismo popular ou institucional, como se esses fenômenos não fizessem parte da vida cotidiana da ilha. A coisa toda até poderia ter um lado de verdade, mas é caso de nos perguntarmos: qual o sentido afinal dessa autorrepresentação? Ou melhor: existiria ainda necessidade de produzir esse tipo de narrativa pastoral e conciliadora numa sociedade em que não somente as violências e as agressões racistas estão na ordem do dia, como também, ao mesmo tempo, consiste num grande esforço conseguir que as sociedades europeias reconheçam o racismo – enquanto herança do próprio passado colonial – como um dispositivo constitutivo, para dizê-lo aqui com Foucault, do próprio processo de produção da nação e de sua população?

Talvez o objetivo do filme fosse narrar a ilha de um ponto de vista diverso daquele do regime de representação midiático dominante, concentrado em retratar Lampedusa como “ilha-prisão a céu aberto”, como teatro de um entrechoque racista permanente entre habitantes insulares e imigrantes. Contudo, nos parece que contrapor-lhe a imagem de uma ilha da fantasia, como sua “via de mão única”, para retomar uma expressão de W. Benjamin, a fim de desmontar aquela representação demonizante, fazer isso não apenas acaba se enclausurando no interior dos códigos da própria simplificação maniqueísta, mas termina por tornar grotescos e inverossímeis os fragmentos de representação que parecem mais críveis e certamente desejáveis. Como ensina o trabalho de Edward Said, as representações de mão única terminam sempre por orientalizar-essencializar os objetos de seu próprio discurso. Se o objetivo era narrar a vida na ilha a partir de diversas histórias ou pontos de vista (como o filme parece propor), para dar credibilidade, complexidade e heterogeneidade à narrativa, esses diversos pontos de vista deveriam entrar em colisão-contradição entre eles; se de outra feita são relatadas diversas situações que, na realidade, relatam a mesma coisa, não se ganha de fato nada em termos de complexidade ou veracidade, recaindo apenas numa caricatura: os bons-excelentes, os ruins-péssimos.

A construção humanitária e a incrustação colonial se desdobram também através de uma espécie de empatia paradoxal e hierárquica. A piedade que o médico e o próprio documentário como um todo suscitam permanece confinada num bom-mocismo vertical e auto-absolutório: não há traço de responsabilidade, como se o sentimento de misericórdia descesse direto dos céus (como o espírito santo) e não há sequer o menor sinal de um envolvimento comum entre os sujeitos. Isto se exprime inclusive na falta de relação entre a narrativa sobre os lampedusanos e os imigrantes. Não há nenhuma presença mútua das respectivas representações, nem alguma referência ao conjunto de relações e efeitos ambivalentes e gerais que o fluxo dos desembarques traz à tona, nada que não seja novamente por meio do framing compassivo (quando na rádio chega a notícia da enésima tragédia no mar e a dona de casa manifesta dor). Alguma coisa que aparece inclusive na escolha de um tipo de montagem alternada, como se estivéssemos diante de um diálogo mudo entre dois sujeitos-assujeitados pelo filme.

Provavelmente, isso tudo define uma precisa vontade do autor, que se realiza na alegoria do olho vago diagnosticado na criança. É claro que tal escolha narrativa visa a estimular uma identificação afetiva com o outro, o reconhecimento dele. No entanto, o filme representa os imigrantes como meros corpos sobre o que se deve intervir com humanidade e clemência e sem levar em conta alguns dos dispositivos de desumanização e exploração que os sujeitos vivem, além de rechear de bons sentimentos o próprio ego, terminando por repercutir a preguiça (a má fé, diria Sartre) do olhar do diretor, do cinema italiano e dos júris internacionais em relação ao tema das migrações. Uma preguiça interessada e (pós-)colonial.

Um cinema contra a subjetividade migrante

Fogo no mar, então, não faz outra coisa que não seja confirmar alguma coisa já sabida: no momento de escolher como representar no cinema os imigrantes, na Itália a primeira opção é sempre o relato paternal e vitimizante. É assim que outras realidades (se assim se quiser chamá-las) constitutivas da experiência e da subjetividade imigrante na Itália — as fugas e revoltas nos centros de acolhimento, insurgências espontâneas como as de Rosarno e Castel Volturno, participações em “greves sociais”, lutas contra a exploração das corporativas do setor da logística, recusas a que se tirem as impressões digitais, ou que se facilite a própria deportação quando decidida pelas autoridades, resistências ao racismo institucional e popular, produção de espaços sociais de mestiçagem — se mantêm principalmente: ou fora do olhar cinematográfico italiano ou narradas em chave salvacionista e por meio de uma escolha estética “realista” bastante ingênua.

Não que uma estética realista ou documental seja em si mesma simplificadora ou banalizante. Longe disso e filmes como os dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne (A promessaRosettaO silêncio de Lorna), de J. Audiard (O profeta, DheepanO refúgio), de A. Kechiche (A esquiva), de F. Akin (A esposa turca) ou de Kassovitz de O ódio, apenas para citar alguns, nos provam o contrário. O problema é que, com frequência, o cinema sobre as imigrações na Itália é narrado com um realismo despido de ambições estético-formais, o que termina por essencializar o fenômeno a posteriori, no que o degrada a um gênero menor (de mera crônica), doravante despojado totalmente de originalidade, manietado, e saturado de retórica. O filme se passa e nada acontece de novo. Sente-se hoje cada vez mais a necessidade de narrativas cinematográficas que saibam restituir os fenômenos das migrações e do racismo a toda a sua complexidade e ambivalência. Chega de relatos humanitários de mão única, úteis somente às boas consciências do narrador e da audiência. Faltam sobretudo aqueles que tenham a coragem de evitar toda e qualquer ambição pedagógica (para estar novamente no velho Bourdieu crítico do sistema acadêmico), toda e qualquer distribuição de “pílulas moralistas e educativas”. De filme sobre as migrações para-ser-assistido-nas-escolas, por assim dizer, francamente, não aguentamos mais.

A incapacidade de produzir narrativas mais politicamente incorretas, a ponto de romper (em vez de reforçar ou celebrar) os mesmos clichês que atravessam o imaginário nacional-colonial sobre esses assuntos, parece sintomática de todos os limites, quer seja da situação do antirracismo na Itália, quer dos seus modos de pensar a relação entre o eu e os outros. Talvez um bom começo para interrogá-los e ir além desses limites seja começar a pensar um cinema sobre as imigrações que esteja em condições de assumir como ponto de partida a necessidade de uma descolonização do próprio olhar, quer dizer, a problematização constante seja das próprias concepções-projeções sobre o objeto da representação, seja da própria relação com ele. Também aqui como alhures, não existe por conseguinte uma “questão imigrante” a ser representada, mas somente uma “questão nacional” com a qual acertar as contas.

 

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