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Na gagueira sai o filme, entrevista com Adirley Queirós

Por blogue fora de quadro, com Adirley Queirós, diretor de Preto Sai Branco Fica (Brasília, 2014), em 19/3/2015

Adirley

Fazia poucos dias que o diretor Adirley Queirós havia ganho o prêmio de Melhor Filme no Festival de Brasília com Branco Sai Preto Fica. Nos encontramos onde tudo foi filmado, na Ceilândia, periferia do Distrito Federal, para uma sessão de Cineclube em que o título do dia era Mad Max (1979), amplamente discutido pós-sessão por sua linguagem de filme de ação. Adirley se diz fascinado com essa linguagem. O cineasta que já foi um dia jogador de futebol profissional e hoje é uma das pessoas de maior articulação retórica para falar sobre o lugar do cinema feito na periferia, com as questões próprias do ser periférico, cede uma longa entrevista enquanto sentamos numa mesa de bar, depois de assistir a Mel Gibson em sua saga vingadora. As questões que ele coloca transcendem a Branco Sai Preto Fica e falam de cinema, memória narrativa, cooptação da periferia por grupos como o Fora do Eixo, desobediência civil e a negação dos espaços urbanos. Mas todas essas questões, absolutamente todas, estão dentro do filme. É preciso assistir Adirley e discutir com ele. Mais do que nunca. Eis uma tentativa:

O que tem te chamado atenção em documentários no cinema brasileiro?

Cara, eu gosto muito da cena paraibana, gosto do Ian Abé e de outros caras lá. Acho que eles tão lidando muito com essa ideia de cinema de gênero. Agora, de uma forma geral, tenho gostado de ver mais curta-metragens que longas. Acho que Brasília teve uma safra muito boa este ano (2014) de longas. Gostei muito do filme do Pedroso, o Ela Volta na Quinta, aliás, gostei de todos. Entre os curtas, acho que há uma diferença muito clara entre dois tipos. Existe o curta-metragista que tem filmes muito já fechados, com domínio narrativo muito grande, e tem filmes que são mais livres, não no sentido de livre do afeto, mas livre nas propostas, nas câmeras. E é engraçado que esses mais livres estão vindo de um certo lugar que chamam de centro. Gente como Lincoln Péricles, Renan Rovida, e tem um povo também do Rio de Janeiro, que não está no centro, no sentido de que essas pessoas não pegam os recursos maiores. Mas do que vejo mesmo hoje, aí são mais filmes antigos. Tou revendo muito filme de ação, vejo muito clássicos brasileiros tipo Lúcio Flávio.

Você acabou de fazer um filme que dialoga com a ficção científica. Há a pretensão de fazer um filme de gênero apenas?

Pretendo. Mas acho que, por enquanto, muito mais leio do que vejo filmes. Me empolga muito mais a literatura, às vezes, do que os filmes. Acho que dá pra explorar muito mais pela literatura que por uma referência fílmica. Pretendo fazer um filme 100% de ficção, que embarque totalmente no gênero, sem concessões, sem ficar explicando. Na verdade, esses filmes que eu faço que ficam ali no limite (do gênero) são também resultado de uma limitação orçamentária e uma limitação de edital. Ganho edital de documentário e, às vezes, tenho que tentar convencer as pessoas que o que faço é um documentário, caso contrário elas pedem o dinheiro de volta. O Branco Sai mesmo, se não houvesse a limitação do documentário no edital, eu já iria direto na proposta de narrativa de gênero. Mas ainda com essa proposta de liberdade dos atores, com a memória. A memória de pessoas que têm mais de 40 anos é a memória narrativa de filmes de ação. Porque os filmes que a gente via, e as histórias que ouvíamos eram todas narrativas, as músicas eram narrativas, o rap, clássicos da MPB, Geni. Acho que a memória passa por essa linha narrativa. Quero explorar a memória junto com o gênero. Não necessariamente fazer um filme como o Mad Max, mas explorando esses sistemas nossos.

Você falou de memória narrativa…

Quando falo de memória narrativa é que o que a gente tem de referência pra contar as histórias são referências muito narrativas. A memória sai disso. Tem início, meio, fim, ponto de virada. Quando você propõe uma pessoa a contar a realidade dela, na minha cabeça, a pessoa tem esses paradigmas todos do politicamente correto. Se eu vou abordar um personagem periférico, o que ele tem de construção narrativa periférica são os telejornais, são as narrativas “sociais”. Então esse cara começa a dramatizar, sofrer, a se colocar num lugar de sofrimento e piedade. Se internaliza essa narrativa, como se a pessoa que fosse ouvir aquele personagem necessariamente estivesse em um lugar de classe maior do que ele. Como se necessariamente essa outra pessoa tivesse um poder de juiz. Porque ela vem pra julgar aquele personagem e enquadrá-lo numa narrativa. Mas se a gente propõe a esse narrador periférico que ele apareça dentro de um arquétipo de ficção, essa narrativa dele virá amarrada à ideia de filme de ação e aventura. E aí acho que esse personagem chega num certo ponto, em que não existe uma orientação de corte, e ele tem que responder à própria fruição do pensamento, e aí ele começa a ter gagueira. E isso eu acho massa. Na gagueira sai o filme. Ele se livrou daquele espírito do homem cordial, e passa a atuar a partir de sua memória, e aí ele começa a se emocionar. Acho minha busca é no limite dessas coisas: a narrativa enquanto documentário e a narrativa desse cara ficcional. E aí vem também uma coisa de preparação da equipe pra essas reações, porque ela tem que estar preparada pra gagueira do cara. A nossa busca de cinema é muito por essas narrativas. Até a ideia de ver os filmes passa por isso. Dia desses vimos aquele documentário careta, o Lixo Extraordinário, um filme perverso, reacionário, e aí começamos a discutir como aqueles personagens estão enquadrados nessa leitura do pobre que transforma, mas que conhece seu lugar.

– Nesse momento, Joceline Gomes (aqui a leitura dela dessa mesma conversa), jornalista que mora em Ceilândia, participa da conversa -: A última mensagem do teu filme, projetada na tela, é “a nossa memória fabulamos nós mesmos”. Como que é a fabulação de uma memória periférica, da Ceilândia?

Acho que tem a ver, novamente, com construção de memória. Na minha cabeça, a memória tradicional tende a ser reacionária. Pensando na história de Ceilândia. Essas pessoas que sofreram todo o massacre que aconteceu para que houvesse a construção de Ceilância narram essa memória como se aquele tempo tivesse sido “o tempo bom”. Criamos todo um mecanismo perverso pra afirmar que o passado foi bom, embora o passado tenha sido horrível. Passamos fome, frio, nossos pais morreram de diabetes, hipertensão, assassinados. A gente tem que se livrar daquele tempo. Eu ia praquele baile, o Quarentão. E essa lembrança do Quarentão é narrada hoje pelas pessoas com um tom preconceituoso. E eu também sou preconceituoso. É óbvio que eu tenho internalizado em mim a homofobia, o racismo, o machismo. Isso não sai da gente de uma hora pra outra. Mas produzir um trabalho de cinema que lide com isso é entender que essa contradição está ali colocada. Quando eu ia entrevistar os caras que frequentavam o Quarentão, e que são meus amigos, eles me falavam que odeiam funk, por exemplo. Porque acha que funk é música de ignorante. É exatamente o mesmo preconceito que aquela geração deles sofreu, porque o que eles escutavam era música de preto. Eles refletem esse preconceito porque a memória deles está no passado. E a memória tem uma assepsia, ela vem idealizada, pelos filmes, novelas. Meu medo com isso é a carga preconceituosa que sempre vem junto, que não liberta. Quando eu coloco a Dança do Jumento em Branco Sai Preto Fica, que é um forró esculachado e passo depois pra um funk, é pensando nesse embate de gerações. Eu lembro de um debate em Minas, depois da exibição do filme, em que um pessoal falou que gostava de tudo e tal, mas não via sentido na Dança do Jumento ali. É preciso entender que meu filme não é sobre funk ou black music. É sobre memória coletiva.

Você acredita que o pensamento crítico hoje, seja no Brasil ou lá fora, surge essencialmente da periferia? E é ela, a periferia, que acrescenta agora a discussão do próprio cinema nacional?

Acho que ela acrescenta sim. O pensamento da periferia é fundamental quando nasce da espontaneidade, no sentido da emoção. Não que ele não possa ser racional. Mas se você pensar no próprio Racionais MCs, o que eles são senão a poesia em estado latente? O pensamento ali nasce primeiro no estômago. Só que aí tem um outro problema. Porque o centro racional vai olhar pra gente e vai dizer que o nosso pensamento é intuitivo. Já ouvi muita gente dizendo: “o cinema do Adirley é intuitivo”. Como assim? Ele pode até ser intuitivo, mas não é só isso.

“Intuitivo” é uma palavra bem perigosa.

Muito. Porque é exótico e te diferencia das pessoas. Como se eu, periferia, tivesse intuição, e você não tivesse. Todo mundo tem intuição e tem insight. Tem essa coisa de como as pessoas chegam e se apropriam desse espaço. Acontece muito na periferia hoje chegar grupos de pessoas “racionais” que nos falam assim: “Nós temos que ser educados. Temos que ter bom gosto”. O bom gosto é a desgraça do pensamento.” E o bom gosto na periferia é quase como um pastiche. Porque é querer ser aquilo que não se é. Só que esse pensamento é comprado, e é comprado, por exemplo, pelo Fora do Eixo. Quando o Fora de Eixo chega na periferia, a primeira coisa que ele faz é dizer que vai organizar a parada. “Vamos colocar isso dentro de uma categoria do bom gosto”, eles dizem. E aí acho que existe uma perversidade. Pois o Fora do Eixo é a institucionalização da periferia. Lutamos eternamente por representações políticas. O Lula foi esse símbolo forte de uma representação pela qual a gente lutava. Mas quando esse pensamento político vira instituição, é óbvio que ele vai lutar pela própria instituição. E a periferia reproduz isso, porque vai se tentar se organizar também para atender a esse modelo. Mas o pensamento não pode nunca respeitar a instituição. Por outro lado, também entendo que nossas lutas só conseguem se concretizar na instituição. A pauta racial, feminista e qualquer outra só poderá ser atendida se institucionalizada. E aí, nos perguntamos: nós que fazemos cinema, literatura e música, pra onde vamos então?

É preciso haver mais desobediência civil para questionar essas instituições? E onde está o lugar da desobediência civil na periferia?

Acho que a desobediência civil precisa existir sim. Mas na periferia, ela está encarcerada. A desobediência é espaço de um certo grupo privilegiado, no qual talvez eu me insira hoje. Não sou um homem rico, mas sou um homem que faz cinema. Então, de certa forma, posso chegar por aí e falar umas “besteiras” e posso partir pro embate porque estou ancorado por grupos maiores. Mas o homem comum de periferia não pode nunca fazer isso. Ele não pode ter cabelo grande, porque vai ser mandado embora da firma. Ele não pode ter sequer personalidade. Porque se tem, é desobediente, está fora. E quando a pessoa tende a ser artista na periferia, ela é rapidamente cooptada. Acho que a função do Fora do Eixo é justamente essa, cooptar toda a desobediência civil da periferia e transformar tudo num grande monólito. Vejo eles usurparem a memória da periferia e creio que, futuramente, eles deviam ser processados por isso. Porque o que acontece é isso, se uma mulher ou homem da periferia se expressa artisticamente, logo eles perdem a desobediência porque são cooptados, porque pensam que só podem se expressar em função do Estado. E aí o sarau, o cineclube, tudo isso se torna “educacional”. Existem três situações de desobediência na periferia. Ou o cara é moleque, se revolta contra o sistema, rouba e termina preso. Ou é o artista que será cooptado pelo Estado. Ou é alguém que, mesmo que tenha toda a arte do mundo dentro dele, está preso ao modelo de família de onde ele não pode mais sair. Já no Centro isso não acontece. As pessoas do Centro são formadas para serem desobedientes, pelo menos até um certo momento, até virar poder. Porque pra eles não serve o papel de intermediário do poder, a nós sim. Pra mim, resta o papel de mediação entre centro e periferia, e isso é horrível, é o papel mais mesquinho que existe. Já faço isso em alguns momentos sem perceber e é um perigo. Porque quando sua função é responder a tudo, isso significa que você é um codificador. E codificar é perverso também.

É uma dialética sem fim essa.

Sim, a gente tá fudido. Por isso que vivo dizendo que não quero ser representante de porra nenhuma, porque se for pra ser isso, é melhor largar tudo. Essa coisa de se colocar em lugares de fala diferentes eu experimento muito. Por exemplo, quando vou falar com os jornalistas. A primeira frase que você fala vai ser o ponto de partida de onde todos ali vão te ler. Minha estratégia de entrevista é: a primeira resposta tem que ser a coisa mais tosca possível. Porque os caras vão te ler como um homem bruto e, a partir dessa leitura, eles passam a soltar todos os preconceitos que eles têm. Não me chamam mais pelo nome: é “oi, você”. E começam a ter raiva. Isso é bom pra caramba, porque aí você vê que eles estão também carregados de preconceitos, a única diferença é que eles dominam a gramática. Ou seja, voltando à questão da dialética: não existe solução. Ao mesmo tempo que só existe uma possibilidade de desobediência civil individual, só existe uma possibilidade de evolução de classe coletiva. E aí meu conflito com o marxismo. Acho que somos podados porque o marxismo é careta em termos de cultura. Ele consegue às vezes ser muito mais opressor que a direita nesse sentido. Então não tem essa do cineasta, do artista, do jornalista conseguir resolver essa equação. E se a pessoa for da periferia, aí então é que ela tá realmente fudida, porque precisa responder 24 horas no dia pelos seus atos. A primeira arma que é apontada para a periferia não vem do centro, vem de dentro. No caso do cinema, por exemplo. A gente, pra conseguir fazer cinema, precisa entrar em códigos de grana. O máximo que podemos fazer é se dar ao luxo de sermos diletantes, mas nunca poderemos, de fato, viver do cinema, pois seremos acusados pelos nossos de traição, de ganhar com algo que deveria não depender do dinheiro. Outra coisa, me incomoda no pensamento de periferia é a ignorância em relação aos meios de produção. A gente possui os meios, mas não temos noção clara do potencial desses meios, porque somos educados para que eles reproduzam os filmes dos caras do centro. Exemplo: Filme de celular. Massa, vamos fazer filme com celular. Aí em vez de fazer um filme foda, o cara vai lá e faz um filme careta.

Uma das várias leituras que se pode fazer de Branco Sai Preto Fica tem a ver com a questão de ocupação dos espaços urbanos, do direito à mobilidade dentro da cidade como um novo enfrentamento do capitalismo. Você tem dois personagens centrais que perdem, fisicamente, parte dessa mobilidade. Um fica paraplégico e outro perde uma perna. E isso só acontece porque é a polícia, símbolo da ordem do sistema, que tira essa mobilidade deles, na intenção de transformá-los em pessoas inertes, deles não poderem mais ocupar os espaços que estavam ocupando. Quanto da escolha desses dois personagens não foi pensada para se discutir isso especificamente?

Da mobilidade?

Sim.

Total. Penso que a gente é amputado 24 horas. Quando fiz o filme, pensava também que a própria leitura da câmera sobre o corpo dos caras era também extremamente erótica, tem cena fechada no cara malhando e tal. Partiu dessa ideia que a gente poderia resignificar o corpo da gente, pois ele é constantemente policiado. A gente não pode ser gago, não pode ser gordo, temos que ser sempre formatados com essa ideia de beleza impressa. O homem amputado existe porque a cidade é amputada. O corpo não existe sem a cidade, ele é a cidade. E esses corpos que foram amputados pela polícia era a coisa mais interessante que tínhamos. Porque aquilo foi uma ação criminosa para cortar aquela identidade muito forte que era a black music. A black music era a coisa mais potente que existia nos anos 80, porque era o corpo que mais radicalmente negava o que era Brasília, representada pelo homem branco, pelos filhos de embaixadores que escutavam The Cure. A black music surge no Brasil para negar o parâmetro de consumo do homem do centro. Então ele é inicialmente criminalizado, porque se aquele corpo tem potência, ele é revolução. O Frantz Fanon fala que “a primeira prisão é o sonho”. O homem colonizado só tem liberdade no sonho, e é ali onde ele esvazia tudo. E isso é uma mentira. Não dá pra ficar sonhando.

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