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NAS REDES E NAS RUAS, PELA DEMOCRACIA JÁ, CONTRA O GOLPE QUE ESTÁ  EM CURSO

A luta contra o racismo está na frente da mobilização social contra os efeitos políticos e econômicos da pandemia e do fascismo porque é uma luta pela vida e pela fraternidade. Precisamos manifestar, desde já, e fazê-lo de maneira pacífica, plural e potente.

Texto coletivo Multinômade 08062020

 

Junho de 2020 – Junho de 2013 

Por uma coincidência carregada de simbolismos potentes, o monopólio FAKE das manifestações FAKE das milícias presidenciais foi quebrado em junho. Como em 2013,  uma série de manifestações pela democracia começaram em maio, em Porto Alegre, e depois na Avenida Paulista, em junho, passaram para outro patamar. As manifestações do dia 7 de junho de 2020 foram consistentes, espalhadas de norte a sul e com um forte potencial para crescer. Quem precisou respeitar o confinamento estava nas janelas, batendo panelas e aplaudindo os manifestantes.

Como pautamos desde o início da crise, estamos em pleno paradoxo da democracia: como defender e proteger a vida esvaziando as ruas? Em um primeiro momento, dissemos que a multiplicação da solidariedade popular e a mobilização por uma renda de base emergencial eram o terreno de luta capaz de enfrentar o paradoxo. Mas o grande sacrifício que os mais pobres fizeram foi criminosamente quebrado pelo poder executivo. Por um lado, fizeram da “marcha do caixão” um lúgubre hino à nação. Pelo outro, asfixiaram economicamente os estados e passaram a ameaçar os governadores. Hoje estamos economicamente esgotados, sem que o contágio tenha sido devidamente controlado: os mais pobres (e os negros) pagam o maior preço econômico (desemprego e perda de renda) e o maior preço sanitário (a maior parte das vitimas letais). O sacrifício do confinamento é desperdiçado em nome da política de morte de Bolsonaro.

Como já dissemos, em maio, os jovens e os torcedores antifascistas em Porto Alegre e em São Paulo decidiram enfrentar o impasse: não somente “multiplicar a solidariedade para esvaziar as ruas”, mas também “encher as ruas para continuar defendendo a vida”. Isso significa defender a democracia. Quando começou a pipocar também no Rio de Janeiro, Curitiba e Manaus esse início de movimento se conectou com a eclosão do levante multiétnico e antirracista estadunidense e no dia 7 de junho as mobilizações pela democracia, contra Bolsonaro e contra o racismo, se ampliaram e se multiplicaram pelo Brasil. Os jovens que foram às ruas no Brasil resolveram o enigma como o fizeram as multidões americanas: para os pobres e para os negros, para as mães dos meninos João, Pedro e Miguel (uma lista infinita de anjos diariamente sacrificados no altar da corrupção policial) o confinamento nunca foi total, sempre tiveram que expor seus corpos nas ruas. Hoje eles sabem muito bem que a fuga para frente miliciana de Bolsonaro é tão grave quanto “o joelho no pescoço” que matou George Floyd. Assim, a luta pela democracia apresenta-se como atividade essencial para a vida. A democracia é o pulmão da multidão, assim como a multidão é o oxigênio da democracia. A luta pela vida (democracia) é confrontada e se faz tão ou mais urgente quanto à luta pela sobrevivência (contra o vírus). Por isso, o levante democrático americano tem em seu cerne a luta contra o racismo que é, por definição, uma luta biopolítica, uma política dos corpos.

Como as democracias morrem 

A divulgação da fita da reunião ministerial do dia 22 de abril confirmou: não é só o clã Bolsonaro que quer impor seu eugenismo (“que viva o mais forte!”), mas o próprio governo: a começar por Guedes e os presidentes dos bancos públicos que mandaram para a morte as pequenas empresas, geradoras de mais de 50% dos empregos. Nessa mesma reunião, os generais ministros baixavam docilmente a cabeça diante da afirmação antipatriótica dos interesses de um chefe de clã que chamava suas milícias a se armar. Os mesmos generais nada falaram e nada fizeram diante das medidas de Bolsonaro contra o rastreamento de armas e munições pelo Exercito. Pouco depois, o secretário de comunicação assumiria como referência o mote que ainda está na entrada do campo de extermínio de Auschwitz: “O trabalho liberta”.

Desde a vitória do Brexit no Reino Unido e de Trump nos EUA, muitas análises foram produzidas sobre o declínio e até a morte das democracias. No Brasil, desde que Bolsonaro mostrou que pretende marchar para cima dos cadáveres para tomar o controle das diferentes instituições da já frágil democracia brasileira, esse debate passou a ser pautado pela multiplicação de ameaças e arroubos autoritários protagonizados todos os santos dias. No lugar do suposto papel “moderador” da dita “ala militar” do governo, vários generais ministros – entre os quais aquele que está transformando um ministério constitucionalmente dedicado à vida (“saúde”) em um quartel de gestão logística dos cadáveres – apareceram nas manifestações onde Bolsonaro ameaça e tenta intimidar todo o mundo. Sem contar as ameaças morais e físicas dos manifestantes FAKE aos membros e até famílias de várias instituições (do STF, do Congresso, da imprensa etc.), o clã presidencial fala abertamente de “ruptura institucional”, o ministro da segurança institucional soltou nota – com assenso do Ministro da Defesa – sobre as “consequências” imprevisíveis de eventual decisão judicial.

A ameaça que essa “ruptura” aconteça paira no ar e pode (até deve) ser uma das leituras dos possíveis desdobramentos da crise. Ela está por trás de uma campanha de desmobilização das manifestações que, nessa visão, se transformariam no pretexto para o (auto)golpe: os que analisam o governo Bolsonaro nesses termos, o encaixam numa forma tradicional de “golpismo” militar, algo que a América Latina conhece muito bem. Nos parece que essa leitura é parcialmente errada e incorre em mais dois erros de avaliação política. O governo e a coalizão política que sustenta Bolsonaro são – mesmo que de tipo novo – fascistas e não militares. A direção política das “guerras culturais” não vem da ala militar ou de um projeto de “ordem” e defesa de algo (as instituições constituídas) que seria ameaçado por forças subversivas. Não há nenhum “caos” na sociedade que justifique – mesmo que instrumentalmente – uma intervenção “ordenadora”. O caos é o próprio governo, como a reunião ministerial do dia 22 de abril explicitou aos olhos do mundo e a tragédia da pandemia confirma, inclusive com consequências econômicas ainda mais dramáticas que no resto do mundo.

As forças subversivas que ameaçam a ordem e fomentam o caos (mesmo na pandemia), hoje, são desencadeadas pelo próprio clã que ocupa o governo e por seus aliados: o episódio da saída do Ministro da Justiça, Sergio Moro, é representativo de um projeto geral de captura e redução de todas as instituições para que se transformem em elos de interesses  privados de uma facção que não tem nenhum compromisso além de sua própria reprodução, nem sequer com as dimensões supostamente racionais ou nacionais de uma lógica “militar”. A deriva de Bolsonaro não é pinochetista (apesar do deslumbramento de seu ministro da economia com essa figura), mas chavista. Nesse sentido, mesmo que possa ter momentos golpistas em função do andar da carruagem (como foi o caso na Venezuela), o plano e a prática é a de esvaziar / capturar as instituições aos poucos, tornando-as abertamente milicianas. A ruptura do clã Bolsonaro com figuras tão diferentes como o Bebbiano, o governador de São Paulo, aquele do Rio, a deputada Joice Hasselmann, ou o Major Olímpio, deve ser analisada nesse sentido. O fascismo bolsonarista funciona exatamente como cópia espelhada do sectarismo dos grupos estalinistas, eliminando (por enquanto politicamente) todas e todos aqueles que não mostrarem obediência e docilidade a interesses que são privados, do próprio clã. Isso não exclui, claro, negociações corporativas (com grupos de empresários neo-escravagistas, setores das forças armadas e das polícias militares) ou simplesmente corruptas (com o tal “centrão”).

Isso significa que o tal de “golpe” já está em curso e consiste em ocupar as instituições que der e intimidar as outras, até tomar conta delas também, exatamente como fez o Chavez que destruiu o Estado e a economia da Venezuela: o segurança pessoal, primeiro, a enfermeira pessoal, depois, acabaram nomeados como diretores do tesouro nacional. Ramagem na PF, o filho na Embaixada em Washington, o Weintraub na educação já mostram o que vem por aí. A saída do Moro mostra muito bem que Guedes não tem nenhuma estabilidade, a não ser uma subserviência total, como se deu, por exemplo, com a matança de pequenas e microempresas que não receberam nenhuma ajuda. Os operadores do mercado financeiro, na Faria Lima, que acham graça dos arroubos presidenciais terão que lidar com consequências inesperadas. Não estamos precisando evitar um futuro chileno (pinochetista) para o Brasil, mas tendo que lutar, desde já, contra sua venezualização. Oras, sabemos que o resultado na Venezuela foi a destruição literal de um país onde a única opção se tornou emigrar.

É um erro político pensar que se trate de “evitar” o golpe e dizer que não é o momento de manifestar. Também é um erro político dizer que, para manter o confinamento é preciso esperar para manifestar. Precisamos lutar, desde já, contra o golpe em andamento e para continuar defendendo a vida. A questão é outra e diz respeito às formas de luta: precisamos lutar de forma pacifica e não violenta (com os cuidados contra o vírus).

Como as democracias resistem: a democracia nas Américas!

A defesa das instituições democráticas é hoje um campo de luta e mobilização que deve juntar todas e todos, como foi a luta contra o fascismo nos anos 1930 e 1940. O que está acontecendo nos Estados Unidos é um contra-ataque e ele é potentíssimo porque não se limita nem à comunidade negra, nem ao espectro político da centro-esquerda, embora sejam as lutas dos negros e a centro-esquerda que constituem as referências. É a mobilização multiétnica que conseguiu ao mesmo tempo transformar a justa revolta inicial em constituição de uma nova pauta que inclui amplos setores sociais. É uma virada constitutiva da defesa da vida (na pandemia) em mobilização da vida (que refunda a democracia).

A defesa da democracia representativa não significa nem abdicar à conhecida declaração de Churchill (“por pior que seja, ninguém inventou algo melhor que a democracia representativa”), nem ter que aceitar a monopólio (hobbesiano) da lógica soberana do medo: homo homini lupus. O fascismo de novo tipo de Trump e Bolsonaro está usando os limites da democracia representativa e até as falhas da democracia direta que as redes sociais constituíram durante as revoluções árabes.

Se aceitarmos essas definições, os impasses da resistência atual à venezualização do Brasil seriam – como são – sem solução. Esses impasses são pelo menos dois: (1) o que até agora sustenta a chantagem bolsonarista é o temor que as instituições têm com relação à realidade do comportamento do braço “armado” dessa soberania; (2) a ladeira abaixo rumo ao abismo na qual nos encontramos é fruto, por um lado, do fechamento da brecha democrática de Junho de 2013 (para colocar nos estádios de luxo a base social bolsonarista) e, pelo outro, da destruição de toda saída institucional do esgotamento do lulismo e isso por meio da polarização (inflacionando o tema do golpe) cujas consequências estão, atualmente, na frente de todo o mundo. Ainda hoje, o lulismo trabalha contra a unificação dos 70% porque continua apostando na polarização monopolista com o fascismo: Lula não pensa nem o país, nem a democracia, pensa apenas em si mesmo.

O que faz que a democracia seja melhor que qualquer outro sistema é que, para ser tal, ela nunca pode se fechar em seus próprios fundamentos, ou seja, ao momento constituinte: o que precisamos hoje, no Brasil, como nos Estados Unidos, ou na Europa e Ásia, é da reabertura desse momento. Nas ruas antifascistas do Brasil, o momento constituinte começa a aparecer assim como aparece nas ruas dos Estados Unidos. O uso demagógico que o chavismo fez desse tema não elimina em nada sua centralidade, apenas nos alerta para as ambiguidades de certa esquerda (que não por acaso gosta do Bolsonaro quando se chama Maduro). Nos alerta também para a clareza de que, como escreveu Rosa Luxemburgo, logo antes de ser assassinada, o momento constituinte não abole a democracia representativa, mas a torna mais viva e efetiva.

Fraternidade: potência da luta antirracista

Em março de 2020, diante da ameaça da pandemia, os mais diversos governos do planeta escolheram suspender a economia para proteger a vida. Não é um acaso que os 16 dias (até o 10 de junho) de levante democrático antirracista tenham acontecido em um dos países mais golpeados pelo vírus e pelo negacionismo fascista, com várias milícias armadas se manifestando contra o lockdown: a revolta americana é uma revolta da vida, uma vida que afirma sua fraternidade e faz da mobilização democrática a única verdadeira atividade essencial.

Depois de dois dias de um tumulto espontâneo como resposta à violência racista, durante a qual foi decretado o fechamento da delegacia de polícia de Minneapolis, as manifestações se propagaram e se auto-organizaram. A potência do movimento organiza sua não-violência. O que incomoda os suprematistas escravagistas brancos, Trump em primeiro lugar, não é o enfrentamento, mas a confraternização entre os jovens que jogam seus corpos na luta e as multidões, inclusive os policiais ou até soldados da guarda nacional que se ajoelham, abraçam e até dançam com os manifestantes. Claro, esses episódios são minoritários e não paramos de ver imagens da brutalidade policial. Mas essa confraternização é bastante difusa. Em Minneapolis, a própria Câmara Municipal chegou a votar a desestruturação (defund) do departamento de polícia.

Nas lutas americanas são as/os jovens brancas/os fazendo o que a longa história das lutas dos negros contra a escravidão ensinou: jogar seus corpos na luta, se jogar na frente dos amigos/as negros/as, oferecendo seus corpos como escudo. Dezenas de milhares de pessoas deitadas na ponte de Portland, performando a posição na qual George Floyd foi covardemente assassinado.

Ao passo que, nos Estados Unidos, generais da reserva (e até o chefe de estado-maior das forças armadas) criticaram duramente Trump e reconheceram que a vida da Constituição está nas ruas, no Brasil os generais da reserva baixam a cabeça diante dos arroubos milicianos de Bolsonaro e dizem que não são golpistas “se ninguém esticar a corda”. Pior, no Brasil, a violência policial é vergonhosa, racista e corrupta e diz respeito a uma guerra aberta do estado contra seus cidadãos mais vulneráveis.

É fascinante observar que um movimento de potência semelhante floresceu em muitas cidades brasileiras nos últimos dias. Em protesto no Recife (05/06) por justiça e contra o racismo após o falecimento de Miguel Otávio Santana da Silva (criança de 5 anos de idade que caiu do 9º andar enquanto estava sob a guarda da primeira-dama da cidade de Tamandaré (PE), patroa de sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata), manifestantes repetiram a cena de Portland e deitaram-se no chão, performando, dessa vez, a posição do menino Miguel após a queda, repetindo as palavras de ordem que surgiram nas manifestações americanas: VIDAS NEGRAS IMPORTAM! Em todo o Brasil, precisamos manifestar o luto pelos mortos, fazer das manifestações por ‘Democracia já’ um espaço de humanidade e de não-violência.

A não-violência é muito mais difícil, mas é muito mais potente – e é dessa potência que eles têm medo…

A luta contra o racismo está na frente da mobilização social contra os efeitos políticos e econômicos da pandemia e do fascismo porque é uma luta pela vida e pela fraternidade. Precisamos manifestar, desde já, e fazê-lo de maneira pacífica, plural e potente.

 

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