UniNômade

O binário da ordem

Por Marcelo Castañeda, doutor em ciências sociais

Provocação inicial à 2ª Mesa do QUEREMOS, “Fazer multidão: devir instituição”, 14/11, na Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro)

Queremos-multidão

O desenvolvimento capitalista no quadro do lulismo gerou processos ambivalentes, processos de subjetivação que favoreceram mais lutas, tendências, práticas de autonomia que desembocaram no levante da multidão em junho de 2013. Por outro lado, em termos institucionais, não houve qualquer inovação digna de nota, fora o duro aparato repressivo que se intensificou com a coordenação do governo federal encabeçado pelo PT, outrora partido-movimento que se transformou em um partido da ordem. Parece que o modelo lulista está em uma crise geral, inclusive eleitoralmente (apesar da vitória, com maior incidência no sul-sudeste e centro-oeste, logo ali nas terras em que manda Kátia Abreu, aliada de primeira hora de Dilma). Nesse quadro de crise do lulismo, o governo não propicia qualquer abertura e se fecha cada vez mais usando como justificativa uma ideologia binária (nós podemos, eles não podem, sejam eles quem forem).

Demonstrando um “devir instituição”, o governo federal reeleito, depois de fabricar um binarismo vazio no período eleitoral, quer responder à esta lacuna e acena com duas propostas que tentam capturar ou dar conta de um “fazer multidão” que continua latente: de um lado, uma reforma política, que é uma tentativa de impor uma pauta unitária de contra-hegemonia capitaneada pelo partido com ênfase no sistema eleitoral (como se a questão fosse de melhorar a representação); de outro, a participação social, que estende a rede burocrática já existente para os conselhos (como se a participação se desse por um decreto e como se a maioria dos conselhos não fosse tão somente consultivo).

Se o levante da multidão pode ser visto como um sintoma da crise de representação que se reflete em um modelo de cidade antidemocrático em termos de moradia, transporte e urbanismo, torna-se importante destacar que o modelo lulista pactua com esse modelo, sendo que o Rio de Janeiro é um laboratório evidente disso. De certa forma, a crise de representação é também uma crise da gestão da cidade e o governo federal optou por uma linha de controle social, pacificação e criminalização para gerir essa crise que pode ser vista no apoio ao governo estadual fluminense.

No entanto, me interessa o seguinte: haveria outras estratégias “menores”, que não passem pela integração partidária-burocrática, ou seja, instituições do comum que pudessem forçar outras institucionalizações possíveis e impossíveis (como era impossível a redução dos R$ 0,20 em junho do ano passado)? Que táticas conseguem atravessar a cultura, a mídia, o direito à cidade neste momento?

Indo além, quais são as perspectivas de um almejado campo de lutas no sentido de fazer multidão, considerando diferentes tensões que perpassam o contexto brasileiro em suas diversas localidades?

Algumas dessas tensões me parecem destacadas: a concentração midiática; os conflitos no campo e na cidade decorrente de megabarragens, megaempreendimentos e megaeventos que se encaixam em um neodesenvolvimentismo; o genocídio indígena e dos pretos e pobres; a guerra às drogas; a catástrofe ecológica que fica cada vez mais evidente; o racismo, o machismo e a homofobia; a mobilidade urbana caótica nas metrópoles.

Enfim, aproveitando um dos fundadores do PT, o saudoso Éder Sader: quais são as possibilidades de que processos autônomos de lutas e sociabilidades não sejam capturados pela institucionalização? Existiriam sedimentos autônomos que mantêm sua potência frente a esse processo de captura que é incessante e poderoso?

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