Democracia

O dia seguinte e um pouco além da eleição

 

por Altamir Tojal

Uma das perguntas que estão postas com a eleição de 2022 é o que restou na política do Brasil além dos populismos lulista e bolsonarista. E se restou algo ou mesmo nada, a pergunta seguinte é sobre a possibilidade de mobilização e fortalecimento de forças democráticas no país. As que se juntaram à campanha de Lula, engolfadas na dinâmica da polarização, serão capazes de se impor, influenciar ou ao menos neutralizar o possível prolongamento do duelo populista? Fora isso, algo de novo se anuncia?

Nos últimos momentos antes da votação do primeiro turno, um pouco de esperança democrática pode estar na resiliência de Simone Tebet e Ciro Gomes, que se mantiveram como candidatos apesar do ataque implacável das duas forças eleitorais majoritárias. E, claro, alguma expectativa positiva também pode restar na perseverança dos eleitores que sustentam a voz da minoria apesar da chantagem do medo e dos constrangimentos que foram impostos ao direito de escolha. Nunca tanta gente com voz foi mobilizada para calar quem pensa diferente, como na campanha para eleger Lula no primeiro turno, levando ao paroxismo a tática de interditar alternativas e impor hegemonia, dessa vez apoiada na aversão a Bolsonaro, que tinha sido eleito graças à aversão a Lula.

Sementes democráticas

O fato de que uma parte da sociedade, mesmo pequena, diga que não aceita Bolsonaro e tampouco aceita Lula, que confirme que prefere outra coisa, é reconfortante para os amigos da democracia. Essa manifestação da minoria tem valor na dinâmica política. Mesmo que os papéis de Simone e Ciro venham a ser diluídos, a resistência de valentes eleitores aos populismos sinaliza que existem sementes democráticas na sociedade que não foram infertilizadas pela brutalidade do bolsonarismo, pelo cinismo do lulismo e pelo oportunismo das elites que controlam a política partidária e das que dominam a economia do país sejam quais forem as cores ideológicas dos governantes eleitos.

Não se pode garantir quando as sementes irão germinar. Mas o simples fato de existirem poderá limitar de alguma forma a autonomia do lulismo – se confirmada a vitória prevista nas pesquisas – para repetir erros graves e cometer outros novos ou reciclados. Significa que não será tão fácil, como na campanha eleitoral, conter a crítica ao programa e ou à ausência de programa do lulismo. A chantagem do ‘Lula ou a barbárie’ não vai funcionar para sempre, interditando a oposição a abusos e crimes como os que foram cometidos pelo lulismo no passado, não somente a corrupção, mas também, os equívocos do nacional-desenvolvimentismo, a manipulação da proteção social, a sabotagem às instituições democráticas e a continuada investida contra as liberdades de imprensa e de expressão. Tudo isso foi incorporado e é repetido pelo bolsonarismo juntamente com a prática massiva da disseminação de fake news e da destruição de reputações como armas políticas.

A possibilidade de sobrevivência da crítica e da oposição democrática ao lulismo também tem a potência de dificultar o fortalecimento da nova direita global no Brasil após a prevista derrota de Bolsonaro. Quanto mais o lulismo puder ser desestimulado a repetir erros mais trabalho vai ter a direita radical para se recompor aqui. Bolsonaro chegou à presidência, fez um governo desastroso e terá sido derrotado com humilhação, por um adversário que estava na lona há muito pouco tempo e por uma esquerda desmoralizada. O fracasso do governo Bolsonaro viabilizou a blitz de Lula desde a prisão até agora, próximo de chegar ao poder novamente. O caráter destruidor e patético de Bolsonaro foi, portanto, uma catástrofe para o país e também um desserviço para a própria direita, que provavelmente vai ter de arranjar outro representante no país.

A vitória da fascista Georgia Meloni na Itália pode ser inspiradora para a estratégia da extrema direita no Brasil. Lá a fila andou. Matteo Salvini desidratado e Silvio Berlusconi desmoralizado deixaram espaço para a nova líder. Não se deve imaginar que os estrategistas da direita aqui não estejam pensando coisa parecida. A provável derrota de Bolsonaro ocorrerá no momento em que os dois maiores expoentes do populismo de direita no mundo estão em dificuldade: Donald Trump tendo de prestar contas às instituições americanas de sua tentativa de golpe de estado e Vladimir Putin enfrentando a resistência dos ucranianos e o repúdio interno à sua guerra. Aproveitar a vulnerabilidade da democracia europeia e explorar aqui que possíveis equívocos enfraqueçam o lulismo são seguramente duas das frentes da nova direita global. O Brasil é importante demais para que insistam no bolsonarismo ruinoso e enfraquecido.

Mobilização Social

Do lado do lulismo, o que se descortina caso a vitória se confirme é o risco de outro ciclo de oportunidades para a esquerda comprometida com a repetição do mesmo. Os setores do centro democrático que aderiram à campanha lulista arrastados pelo medo ou animados pelo oportunismo dificilmente terão o espaço e o mesmo tratamento vip num futuro governo como os que estão sendo dados pelo lulismo durante a campanha. Mesmo que Geraldo Alckmin e outros aliados tenham papéis relevantes no começo, a história do lulismo no poder e o padrão da liderança populista não sustentam profecias de alianças consistentes e duradoras, a exemplo do que ocorreu com a hoje reconvertida Marina Silva, enquanto no campo do bolsonarismo e o exemplo maior é o do ex-juiz Sérgio Moro.

Processos políticos se estendem para além de campanhas e eleições. Por mais que o lulismo tenha tido sucesso até agora em reinventar o passado anulando os processos da Operação Lava-Jato os efeitos dos escândalos podem voltar a assombrar o seu novo governo. Apesar do parentesco do bolsonarismo com a onda da extrema direita no planeta não será apagada a memória de que a chegada de Bolsonaro ao poder foi consequência da aversão ao lulismo. Também não será esquecido que a sobrevida no governo do mesmo Bolsonaro foi apoiada pelo lulismo interessado em tê-lo como antagonista como candidato à reeleição.

Ainda estarão presentes no provável futuro governo Lula as consequências das práticas políticas que levaram nos últimos anos ao enfraquecimento da presidência da república como instituição com a transferência de poderes para o congresso nacional, principalmente na competência orçamentária. E um dos efeitos mais perversos do lulismo no poder – a domesticação e a consequente redução da capacidade de mobilização dos movimentos sociais para além das campanhas eleitorais – dificultará a reconquista do espaço perdido para o congresso e também a defesa frente aos contra-ataques da extrema direita.

Retomando a pergunta inicial a respeito de uma novidade política no Brasil, cabe observar se as sementes que resistiram ao veneno da polarização nessa campanha eleitoral poderão recompor alguma capacidade de mobilização diante do desafio de enfrentar a convergência e a circularidade dos populismos de esquerda e direita. Estará necessariamente nessa agenda de lutas o fortalecimento da democracia e a conquista de garantia de renda e proteção social como direitos sociais, superando o regime assistencialista reprodutor da injustiça, da desigualdade e do atraso.

Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2022

 

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