Por Raúl Sánchez Cedillo, no Diagonal Periódico, 22/6 | Trad. UniNômade
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imagem: Renato Gattuso, 1972.
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Conhecemos a história: o modelo da pura autonomia do(s) político(s) referendado em Vista Alegre se fundamentava, no plano prático, na delegação de plenos poderes ao estado-maior da máquina de guerra midiático-eleitoral. No plano teórico, num populismo laclau-mouffiano exclusivo e excludente de outras narrativas para a transformação, seja de esquerda, seja de radicalidade democrática quinzemaísta.
A constatação do teto eleitoral atingido por este primeiro Podemos durante 2015 levou a uma crise de solvência dessa primeira hipótese. Nessa crise, não podemos exagerar o papel que teve a potência composta e agregadora dos municipalismos e o seu êxito eleitoral. Deve-se levar em conta também a incompatibilidade entre as pretensões centralizadoras do errejonismo [1] e uma cúpula madrilenha, e a realidade policêntrica e poliárquica formada por Galícia, Andaluzia, Astúrias, Catalunha, Navarra e País Basco.
Depois do 20D [2], e com quase um milhão de votos desperdiçados da coligação Esquerda Unida (IU) – Unidade Popular (UP) como um problema inocultável, não tinha outro jeito senão agitar a coqueleteira gramsciana para sondar novas combinações da hipótese nacional-popular. Sim, no final das contas, as disputas estratégicas dentro do que foi a corrente Claro que Podemos, e entre esta e o garzonismo [3], se dão ao redor de variações e rearranjos, interpretações e atualizações de certo Gramsci e, sobretudo, de certo Togliatti [4].
A admiração de Laclau por Togliatti é manifesta e pode ser lida preto no branco em A razão populista. A chave está na interpretação togliattiana do PCI como o “partido da nação”. É irônico que tenha sido um anticomunista confesso como Matteo Renzi [5] quem, passados 25 anos da eutanásia do PCI, tenha conseguido explorar aquela expressão com relativo sucesso, pretendendo ser uma adaptação da temática gramsciana do nacional-popular à realpolitik.
Nesta janela de oportunidade, tiveram bastante tempo para intervir Manolo Monereo e a sua interpretação da noção gramsciana de “partido orgânico”. Essa noção é imprecisa e se refere sempre ao “partido orgânico” da burguesia, que subentende os fragmentos e “frações, cada um dos quais assume o nome de Partido e de Partido Independente” (Gramsci). O bom trabalho de Monereo lhe permitiu influenciar decisivamente no esquema teórico e na passagem prática ao que vinha sendo chamando de “confluência”.
A primeira operação realizada é de simetria: se a oligarquia tem um partido orgânico, nós também. E quem somos nós? As esquerdas do estado espanhol, claro. Ou, com voo retórico, “os trabalhadores e trabalhadoras: o nacional-popular, em médio ou longo prazo, exigirá um protagonismo de classe”.
A segunda operação é de projeção: o partido orgânico o é para a revolução democrático-nacional.
As condições reais — logo, não as ideais — serão as que determinem função, sentido e valor ao projeto de “partido orgânico”. Monereo apela a cidadãos e movimentos sociais como parte constituinte do partido orgânico. Esta é outra torção da noção gramsciana, que desliga precisamente o partido orgânico do partido eleitoral. Apesar disso, haja ou não governo de mudança depois do 26J, depois dos anos de eleitoralismo puro, de mais do que um crescente governismo na vida pública por parte dos partidos da mudança, — em contraste com o elogio do agonismo no esquema de Laclau e Mouffe, — custa crer que, cerimônias à parte, o projeto do partido orgânico possa se traduzir em algo mais do que uma esquerda — nova e finalmente — unida. Uma espécie de consumação postecipada do velho projeto anguitiano [6].
Se aceitarmos esse lugar comum gramsciano, somente cabe considerar válida a ideia de partido orgânico se ele equivaler ao projeto de assembleia(s) constituinte(s) da cidadania para a mudança. E esta coloca como condição a dissolução no processo dos partidos e aparelhos existentes. Do contrário, voltaremos a repetir o post festum, pestum.
Raúl Sánchez Cedillo, ensaísta e tradutor, participa da Universidad Nómada, em Madrid.
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Notas da tradução:
[1] – Iñigo Errejón, membro da cúpula de Podemos desde a fundação, considerado o “estrategista” do partido, promoveu a linha majoritária centralizadora e hegemonista, adotada oficialmente no congresso do partido de outubro de 2014, em Vista Alegre. Em sua tese sobre a chegada ao poder do evismo na Bolívia, assumiu o arcabouço teórico do cientista político argentino Ernesto Laclau, que por sua vez se propõe a atualizar a discussão de Gramsci sobre populismo e hegemonia para um cenário pós-luta de classes.
[2] – 20D ou 20 de dezembro de 2015, data das eleições gerais espanholas em que o Podemos ficou em terceiro lugar e nenhuma força política conseguiu formar um acordo de maioria para compor o governo no regime parlamentarista espanhol, o que levou a um período de interregno até a convocação das eleições de 26/6/2016, quando se espera o impasse seja dissolvido com um novo resultado. Para uma leitura quinzemaísta da arrancada podemita na reta final daquela campanha, ou “remontada”, ver Foi o 15M que salvou o Podemos.
[3] – Alberto Garzón, dirigente e militante da IU e PCE.
[4] – Palmiro Togliatti, dirigente do Partido Comunista Italiano (PCI), líder tradicional do partido entre 1927 e 1969, maior representante da linha nacional-popular no segundo pós-guerra, quando o PCI hegemonizava a esquerda italiana.
[5] – Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano, do Partido Democrático (PD), herdeiro histórico do PCI. Renzi é um dos vetores “à esquerda” de aplicação das medidas de austeridade combinadas com a troica.
[6] – Julio Anguita González, esquerdista da IU, de que foi coordenador-geral, além de secretário-geral do velho PCE. Julio ficou conhecido na política espanhola pela linha pragmática e cívica, voltada contra a corrupção.