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O retorno do poder constituinte

Por Ricardo Gomes

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A gestão neoliberal contemporânea articula duas formas majoritárias de poder. Por um lado, a gestão da sociedade feita pelas polícias, que se desdobra na transformação constante das pessoas em policiais. Todos policiando todos, numa misto de paranoia violenta e paternalismo emburrecedor. De outro lado, a gestão cool, limpinha, racional. Esta, aparentemente está acima da outra, mas uma implica e deseja a outra. Há entre elas uma troca e sustentação necessárias, que marcam todos os corpos. Às vezes uma das duas, por erro de avaliação ou por uma estratégia elaborada, tenta tomar a frente da outra.

Foi o que aconteceu ontem, principalmente em São Paulo, onde a vertente policial excedeu sua própria legitimidade em ser a violência excessiva dita “necessária”. Esta legitimidade não vem do povo, não emana do desejo da sociedade, e sim dos poderes constituídos, uma legitimidade desde o começo pura violência. Fez isso quando violentou membros notórios dos poderes constituídos: a imprensa. Mas não nos enganemos, mesmo que a imprensa conservadora fique inicialmente contra a PM, isto será passageiro, será um pequeno ajuste para que a violência funcional da PM possa ser mais uma vez apontada para o alvo de sempre, a população e seus desejos insurgentes.

A manifestação de ontem é fruto de um movimento relativamente longo. Outras já haviam sido feitas pelo mesmo movimento, inclusive uma no início do ano, quando conseguiu barrar o aumento da passagem. Nesta, porém, ficou claro que não se trata de uma manifestação com uma demanda única, não é “só” o aumento do preço da passagem. Rapidamente ela tomou a forma de uma revolta popular pela retomada da cidade, negando a gestão do tipo “cidade-empresa” e afirmando outra forma de viver coletivamente.

Nesse sentido, dentro dos movimentos, não pode prevalecer a obscuridade fetichista e falsa de certa horizontalidade imposta. Há quem diga ser horizontal e ficar criando regra do que pode ou não pode. Certas coisas ou são decididas pela multidão ou ninguém decide e seguimos o ritmo da forma mais proveitosa. Por exemplo, na caso das bandeiras de partido. Se nenhum partido tentar tiranizar os protestos não há pq negar o uso de bandeiras por quem está colaborando.

A violência constituinte exercida pela população é uma das bases da política, anterior a toda e qualquer formalização; é ela quem permite avanços e/ou retrocessos. Quando os poderes constituídos perdem isso de vista, ela, a violência, sempre latente nas democracias neoliberais, aparece, tanto como lembrança do processo político constituinte, quanto como forma atual e concreta para renovar este processo, fazer ele funcionar mais uma vez. Às vezes não há outra forma, quando a participação popular é vetada alguma faísca deve ser criada, algum caminho que possibilite mais uma vez a que cidade seja das pessoas.

Por fim, deve-se levar em consideração que possivelmente as manifestações sejam frutos da história recente, das articulações progressistas, de certos avanços que atravessaram o estado em um passado próximo, e das respostas e retrocessos em relação aos avanços — numa espécie de amadurecimento político, onde estas manifestações estão inseridas, contra as novas formas de exploração da vida, e, claro, segundo o desejo de querer mais, de responder criativamente às novas formas de exploração, com outros direitos, atrás de outras muitas conquistas.

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