Elisio Macamo[1]
Há, do lado ocidental, duas figuras interessantes: John Mearsheimer e Jeffrey Sachs. Os dois são americanos, criticam a política externa do seu país e responsabilizam-na pela guerra da Ucrânia. Não são os únicos americanos (nem ocidentais) que defendem este posicionamento. Estes dois são interessantes por causa da qualidade dos seus argumentos e também porque são figuras públicas de destaque nacional e internacional.
Mearsheimer é um dos cientistas políticos (e analista de relações internacionais) mais conceituados do mundo. É professor na universidade de Chicago e é ouvido com atenção por toda a gente. É considerado o principal teórico duma escola de pensamento nas relações internacionais que vai pelo nome de “realismo”. Sucintamente, esta escola defende que as relações internacionais se reduzem aos interesses das grandes potências e a necessidade que têm de defender zonas de influência, sobretudo o mais perto possível das suas fronteiras. Partindo desta perspectiva, Mearsheimer considera legítima a preocupação russa com a sua segurança e, por isso, condena aquilo que ele vê como tendo sido a provocação da NATO ao tentar alargar a sua zona de influência na Ucrânia.
Esta é uma posição académica coerente. Coerência não significa verdade. Significa apenas coerência. Seria estranho que alguém que defende o realismo fosse assumir uma posição diferente. Em lógica existe uma falácia que se chama “biting the bullet” (morder a bala), isto é ir às últimas consequências na defesa dum princípio. Na filosofia, o exemplo mais famoso disto é a posição deontológica de Immanuel Kant que diz que em nenhuma circunstância se deve mentir. Logo, se aparecer um assassino à procura do meu pai para o matar, eu devo, enquanto defensor do princípio kantiano, dizer-lhe onde está escondido o meu pai.
Mearsheimer não tem outro remédio senão mesmo ir às últimas consequências. Ou abandonar o realismo como perspectiva. Só para tornar isto mais claro: Mearsheimer defenderia uma agressão sul africana aos países vizinhos porque, segundo o realismo, os interesses das potências (neste caso, potência regional) se sobrepõem a tudo o resto. Mearsheimer não precisa de gostar de Putin, nem odiar Biden ou Zelenski para dizer o que diz. Espero que os africanos que repercutem as suas posições entendam isto. Se um dia, os EUA quiserem invadir Moçambique para protegerem os seus interesses de segurança Mearsheimer, em princípio, vai concordar. Os pequenos não contam no seu esquema teórico.
Jeffrey Sachs tem uma opinião menos coerente do ponto de vista teórico, mas vai pelo mesmo diapasão. Ele tem se notabilizado, nos últimos tempos, pela sua cruzada contra a pobreza com aquele seu “Earth Institute” na universidade de Columbia, em Nova Iorque. Aquelas aldeias do milenium que também chegaram ao nosso país são da sua lavra. Nisso, ele tornou-se crítico do sistema económico neo-liberal – que ele já defendeu ao advogar a “terapia de choque” no Leste europeu (onde ele foi consultor dos governos russo e polaco) – que vê como o maior obstáculo ao bem-estar no mundo. Não é ideológico como Noam Chomsky, mas nutre dúvidas sérias em relação ao compromisso do seu próprio país com a justiça no mundo. Para ele, o apoio ocidental à Ucrânia é uma espécie de pugilismo de sombra para impedir aquilo que deve acontecer, nomeadamente o reordenamento da ordem económica mundial.
Pessoalmente, considero as duas posições equivocadas e, aliás, as minhas reservas são corroboradas por gente mais abalizada que vê o assunto de outra maneira. Mas não é isso que está em questão neste “post”. Cada louco com a sua mania. O que está em questão é a existência, do lado russo, de dois intelectuais russos que defendem o contrário. Um chama-se Konstantin Samailov e o outro Sergei Guriev. Acompanho-os por escrito e no Youtube. Ambos são economistas. Konstantin Samailov tem produzido análises excelentes sobre o estado da economia russa. Todas elas contradizem o discurso oficial. Ele lê entrelinhas e mostra uma economia a caminho do desastre. Se ele estiver certo, e tudo indica que sim, tenho medo das síncopes que alguns moçambicanos vão apanhar no dia em que a Rússia estiver estatelada no chão. Samailov condena também a agressão com o argumento de que a Ucrânia tem direito à auto-determinação, mas também porque acha que a aproximação com a Europa ocidental é o que está mais no interesse russo.
O outro, Guriev, também disputa os dados económicos. Já foi assessor do Kremlin por isso sabe do que fala. Segundo ele, não são considerações de segurança que ditaram a agressão, mas sim o estilo de liderança de Putin. Segundo ele, há uma coincidência entre crises económicas e militarismo. Diz que nos primeiros dez anos de governo de Putin, marcados por uma melhoria constante e visível das condições de vida dos russos, Putin tinha um discurso moderado e cultivava visívelmente as boas relações com o ocidente. Diz também que mesmo o discurso nacionalista é apenas de conveniência. O que move Putin é o poder absoluto e para o manter ele está preparado não só para matar quem lhe faz frente como também para se envolver em aventuras que lhe permitam demonstrar força.
Esquecia-me de dizer que os dois russos que criticam Putin não vivem lá. Um está na França, Guriev, e o outro, Samailov, no Cazaquistão. Os dois tiveram de fugir porque na Rússia quem pensa diferente é morto, vai à prisão ou não arranja emprego. Putin aperfeiçoou a arte moçambicana (cultivada pela Frelimo) de usar o sistema judiciário para tornar difícil a vida de quem tem a ousadia de pensar diferente.
Era aqui, na verdade, onde queria chegar. Neste texto não me interessam os argumentos contra ou a favor da agressão. Interessa-me o facto de que no odiado Ocidente não haja nenhum problema em alguém não concordar com a política oficial. É por isso que Mearsheimer e Sachs continuam a viver lá e a falar à vontade o que lhes dá na gana, e tudo numa boa. Isso não significa que os respectivos governos sejam obrigados a ouvir ou a mudar de opinião. Mas a existência dum debate público sem constrangimentos cria um ambiente que dá aos governantes a oportunidade de reflectirem melhor sobre as suas decisões ou mesmo de corrigirem o que fazem de errado.
Na Rússia dos valores não-ocidentais já não é assim. Entre os que aprovam a agressão aqui na banda há muitos que também idolatram Putin. Festejam toda a afronta ao Ocidente e cada sofrida vitória na Ucrânia (incluindo crimes horrendos de guerra) que ele regista como se de Real Madrid ou Messi se tratasse.
Lembro-me que no ano passado viviam esfregando as mãos na expectativa de que sem o gás russo os europeus morressem de frio durante o inverno, mesmo sabendo que milhares de deslocados da guerra no Norte do país vivem da caridade desses mesmos europeus! Não lhes passava pela cabeça que as dificuldades europeias pudessem levar ao corte dessa assistência tão vital à sobrevivência dos seus próprios concidadãos.
E essas pessoas vivem num país onde já se fala abertamente de “desmantelar o medo”. Vivem num país onde eles próprios sabem que têm que falar com cuidado se não quiserem pôr as suas pernas em risco, perder oportunidades ou afectar os seus familiares. Vivem num país onde a elite política se comporta como se recebesse inspiração directamente de Putin.
Não sei se podemos dizer que se trata de hipocrisia, fé ou simplesmente ignorância. Uma coisa é certa (na impossibilidade de termos um mundo em que todos somos iguais): eu prefiro um mundo dominado por países cuja cultura política acomoda a divergência de opinião. Isto porque sei que no dia em que os seus governos quiserem lixar o resto do mundo, haverá neles espaço para que os próprios cidadãos venham ao nosso socorro. Duvido que isso possa acontecer na Rússia de Putin e na China de Xi Jinping, esses grandes baluatres contra o Ocidente.
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[1] Professor moçambicano de sociologia e estudos africanos na universidade de Basileia, Suiça.