Frédéric Monié
professor da UFRJ
A atual invasão da Ucrânia pela Rússia tem por efeito colateral a propagação da espécie do neo-reaça. Num momento caracterizado pela extinção de tantas espécies, a proliferação do neo-reaça poderia ser um motivo de alegria. Mas, não é…. O neo-reaça adora a geopolítica de rede social. A atualidade leste-europeia lhe oferece a possibilidade de manifestar suas reflexões com base no sofisticadíssimo princípio “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Uma aplicação concreta, porém, pouco original, deste princípio? Os inimigos dos Estados Unidos são sistematicamente meus amigos. Ahhh! Saudades da Guerra Fria e de suas representações bipolarizadas da ordem mundial. Qualquer semelhança com o rebanho dos reaças não é mera coincidência. O filme é baseado em fatos reais. Em nome do igualmente sofisticado princípio “os inimigos da URSS são meus amigos!” Hassan II, Reza Palavi, a dinastia Saud, Mobutu, Somoza, Batista, Pinochet, o regime do Apartheid e muitos outros participaram da cruzada do mundo livre e da democracia liberal contra o perigo vermelho, cruzada apoiada com muito vigor e gregarismo pelos velhos reaças. Os herdeiros neoconservadores destes cruzados rezam agora a missa do choque das civilizações, sempre dispostos a defender bravamente o livre mercado e o ocidente cristão ameaçado pelos bárbaros, de preferência do Sul. Mas, então? E o nosso neo-reaça?
Qual o ecossistema do neo-reaça? O ecossistema onde surgiu e prosperou o neo-reaça explica seu comportamento gregário, conformista e ultra previsível (afinal, não parece um (detestado) comentarista da GloboNews?). As fileiras do progressismo vintage constituíram a incubadora perfeita para o desenvolvimento do novo reacionarismo. Nessas fileiras, o neo-reaça construiu um olhar maniqueísta e bipolar sobre o Mundo. Dois campos se opondo, o Bem versus o Mal, o Certo versus o Errado, alimentaram uma representação religiosa da ordem mundial e uma admiração por seu símbolo mor: o muro. Um verdadeiro altar. Em vez de buscar alternativas, o futuro neo-reaça manifesta suas verdades definitivas batendo a cabeça contra o Muro adorado. Depois da queda do Muro amado, o progressista vintage teve que se adaptar a um mundo onde a rejeição do Ocidente passou a aglomerar as espécies mais exóticas da fauna política mundial. Na nova “ordem mundial”, o neo-reaça construiu uma admiração infalível por figuras tão diversas quanto o binômio Chavez-Maduro, Daniel Ortega (sim, sim, o sujeito que teve que arruinar o legado do sandinismo “por conta da agressão imperialista à Nicarágua…” oi?!), Mahmoud Ahmadinejad (perfeita encarnação do fascismo verde), a junta militar no poder em Mali (golpe não pode aqui, lá sim!), o sanguinário Assad (cuja repressão à primavera árabe – “patrocinada pelo ocidente”, obvious! – mergulhou o país numa guerra insana) e até o fundamentalista hinduísta de extrema direita Narendra Modi. Alguns, mal dissimulam sua paixão não abertamente assumida pelos islamo-conservadores do Hezbollah, do Hamas e pelo sátrapa neo-otomano Recep Erdogan! Lista eclética, não?
Só faltava Putin, machão ex-KGB (excelentes credenciais para começar.)! O Stallone das estepes foi transformado em bom soldado encarregado pela velhíssima guarda do progressismo vintage de erguer uma “nova ordem mundial” justa, pacífica e harmoniosa no contexto do declínio de uma hegemonia norte-americana que só deixará saudades nas fileiras dos velhos reaças….
Qual é o grito predileto do neo-reaça? Gritinhos e berrões do neo-reaça, permanentes ou sazonais, devem ser apreendidos à luz da cultura da denúncia, expressa no sistemático (e simplista) “a culpa é de…”. Rejeitando a crítica, que exige um questionamento permanente da… crítica, a denúncia funciona na base de chavões mono causais mobilizados para “elucidar” as crises mais complexas. A relação custo/qualidade é razoável. Promoções no supermercado dos lugares comuns: “é o gás natural – ou o petróleo”, “são os interesses econômicos…”, “é o ocidente…” “é a OTAN…”, chavões universais suficientes para elucidar conflitos e guerras mundo afora. Lembram os famosos “conflitos étnicos” do continente africano, não?
Quando contestado, o neo-reaça recorre a um mecanismo de defesa que consiste em se projetar no passado para soltar inevitáveis “…. e os EUA com Cuba?”, “E a invasão do Iraque…” “… e o Kosovo?”. O neo-reaça adora uma referência às guerras e invasões do passado para justificar agressões presentes… Sua memória é tão seletiva que ele “esquece” a Tchecoslováquia, a Hungria, o Afeganistão… no meio do caminho. Para defender seus novos ídolos, os neo-reaças trocaram os “agentes da CIA” de antigamente, por agentes do ocidente, da OTAN, do neonazismo… Criticar o líder de extrema-direita do Kremlim e os oligarcas predadores empenhados na reconstrução do império russo atrai respostas padrão que demostram uma fidelidade sem falha à retórica binária da guerra fria. Nesse tempos de crise aguda, nosso bichinho mescla seus gritos habituais (os criativos: “o ocidente…”; “a mídia ocidental…”, “ a Globo (ou a GloboNews)”)… e berros mais sazonais (“é a OTAN….”, “é a desnazificação…” (risos na plateia!!!), “eles querem roubar o petróleo e o gás da Rússia…” (gargalhadas na plateia!!!).
Conservador, o neo-reaça evolui em território conhecido, uma zona de conforto maniqueísta localizada do lado certo do muro que ele construiu, em perfeita sintonia com os velhos reaças. Afinal, o importante é não ser criativo.
Será que o neo-reaça é tão antifascista quanto ele gostaria de parecer? Agora as coisas complicam. No contexto da invasão da Ucrânia, o neo-reaça escolheu o lado certo da cruzada contra o nazismo (sic) e a OTAN (re-sic) apoiando (com mais ou menos vergonha na cara) a política imperialista de um líder de extrema-direita empenhado em destruir a ordem mundial dominada pelo ocidente. Se de fato a extinção da OTAN é desejável e uma ordem mundial livre da hegemonia estado-unidense seria bem-vinda (a menos que a transição hegemônica se traduza por uma ordem mundial pior do que atual!) pode-se fechar os olhos sobre a natureza do regime russo? A ordem mundial teorizada por Dugin (o sujeito da 4ª via: duas doses de fascismo, duas doses de estalinismo!) faz sonhar o neo-reaça? Outro motivo avançado para legitimar a invasão da Ucrânia é a luta contra o nazismo que está, segundo os invasores, no poder…Fake News e/ou atalhos históricos? Em muitos países da Europa central e oriental, partidos e milícias nazistas locais surgiram e prosperaram nos anos 1930. Alguns (Croácia, Eslováquia etc.) eram plenamente alinhados ao regime nazista de Hitler. Na Ucrânia, grupos neonazistas surgiram no contexto da grande fome de 1932-33 provocada pelo terror imposto por Stalin ao povo ucraniano (holodomor). Desde então, segmentos do nacionalismo ucraniano seguem nas fileiras de um neonazismo tão abjeto quanto no resto do Mundo. Grupos de extrema direita participaram ativamente da Revolução de Maidan direcionada contra o então presidente pró-russo do país (cf episódio da destruição da Casa dos Sindicatos de Odessa). Esses neonazistas formaram uma milícia (2.000 a 4.000 milicianos hoje, num universo de 200.000 soldados regulares) atuante no Donbass onde enfrenta, entre outros, a União Nacional Russa… de matriz não menos fascista, cuja presença na frente nos combates não parece incomodar os neo-reaças. Politicamente, a influência da extrema direita é hoje marginal (1 deputado eleito) e incomparável com a situação na Rússia, onde os extremistas de direita… estão no poder!!! E o atual governo ucraniano, presidido por um direitista, neoliberal, defensor da legalização do aborto, da descriminalização da maconha etc. não pode ser associado ao nazismo, a menos de ter exagerado na vodca da pior qualidade.
Do lado do bem da trincheira, o culto à personalidade e à força física, o nacionalismo exacerbado, a misoginia (a denúncia pública da feminização da sociedade e da perda de virilidade provocadas por um materialismo sem valores morais (!!!) não nos remete a uma espécie de Malafaia cristão-ortodoxo?) e o desapreço à sociedade civil, já desenhavam um perfil de Putin muito mais ao estilo de Mussolini do que de Nelson Mandela. A nova constituição de 2020 protege a “verdade histórica” (verdade de Estado escrita pelos ideólogos do tradicionalismo), legaliza à caça aos elementos antipatrióticos que faltam com respeito com alguma autoridade (sic) (Pátria amada, pode em Moscou?), radicaliza o presidencialismo, garante a impunidade vitalícia dos ex-presidentes, inclui deus e a defesa da família tradicional (homem + mulher) na carta magna, possibilita reeleições quase vitalícias etc. Tudo isso já foi o suficiente para lhe garantir a admiração da extrema direita europeia (Orban, Le Pen, Zemmour, Salvini etc.), retribuída com o financiamento das campanhas eleitorais dos populistas ocidentais de direita. Curiosamente, os mesmos extremistas de direita pularam fora (covardemente) do barco putinista para denunciar a guerra enquanto a turma dos estalinistas neo-reaças embarcava com muita disposição nesta embarcação dirigida com um punho viril pelo seu novo ídolo.
Para quem ainda tem dúvidas a respeito da natureza do regime russo, vale a pena dar uma conferida nos escritos do ideólogo Dugin, que teoriza o tradicionalismo que alimenta a paranoia doméstica e externa do atual mestre do Kremlin (o excelente site A Pública – não, não! Não é a mídia ocidental hegemônica! – publicou 2 textos interessantíssimos sobre a questão). Dugin, Bannon e Olavo de Carvalho… os três cavalheiros do apocalipse fascista!!!!
Como o neo-reaça lida com os quintais geopolíticos das potências? O neo-reaça adota posições bem flexíveis (e sempre binárias). Nosso camaleão que rejeita, com toda razão, a ideia de “quintal geopolítico” na América central, no Caribe ou no Sahel, adota atualmente uma posição bem mais conciliadora em relação ao “espaço vital” russo ameaçado pelo avanço da OTAN em territórios ex-soviéticos (hoje independentes). Ainda não ficou claro como o mesmo sujeito pode condenar as “zonas de influência” de fulanos e defender os quintais do ciclanov. Abaixo a doutrina Monroe, viva a doutrina Dugin? Só para lembrar, os regimes do apartheid da África do sul e da (então) Rodésia recorreram ao mesmo argumento da defesa de seus interesses ameaçados pelo avanço do comunismo em seu quintal regional para financiar operações de guerra e sabotagem particularmente cruéis em Moçambique, na Angola e na atual Namíbia. Quanto a OTAN (que merece efetivamente ser varrida no mapa geopolítico mundial), a guerra de Putin lhe confere paradoxalmente uma nova legitimidade. Até a sociedade finlandesa, tradicionalmente pacifista, é hoje majoritariamente a favor da adesão da Finlândia à organização… O tiro está saindo pela culatra?
Como o neo-reaça lida com a soberania nacional? Complexo. A geometria variável das posições do neo-reaça pode novamente deixar o observador em dúvida. Defesa da soberania do Brasil, de Cuba, da Venezuela, do Mali? Sim! Soberania da Georgia, da Crimeia, da Ucrânia e futuramente de algumas repúblicas da Ásia central (se a China deixar)? Não vamos exagerar! No ex-império soviético, e atual império russo em (re)construção, o limite da soberania é imposto pelo sátrapa do Kremlin. Vamos obedecer!
Como o neo-reaça lida com a autodeterminação dos povos? Mesma assimetria do item anterior. Povos do terceiro mundo colonizados pela Europa? Sim! (OK!) Palestinos, sim, muito (novamente, OK!)! Mas, a autodeterminação dos povos tem lá seus limites: ouigours do Xinjiang (“militantes da Al Qaeda e Estado islâmico” segundo os lacaios islamofóbicos do Xi), isso não! Definitivamente não!!! Curiosidade… o neo-reaça que apoia uma guerra de liberação dos russófonos vítimas de um genocídio (sic!) no leste da Ucrânia apoiaria também uma invasão da Turquia, da Birmânia, da Índia ou do Brasil para salvar respectivamente os Curdos, os Royinghias, os muçulmanos e budistas indianos, os torcedores do Botafogo??? Por quê a Alemanha não retomaria as regiões germanófonas da Alsace e Lorraine? Os neo-reaças, que adoram um espaço vital, topam?
A autodeterminação dos povos não é negociável, em lugar algum: da Catalunha ao Donbass, da Córsega ao Xinjiang, de Euskadi ao Rio Grande do Sul. Mas presidente do país A declarar a independência de parte do território do país B…. se a moda pegar….
Os neo-reaças, em grande parte relíquias do estalinismo, optaram pela defesa do nacionalismo exacerbado, da geopolítica do heartland, do militarismo, da realpolitik mais abjeta, do autoritarismo político de um líder claramente de extrema-direita e, finalmente, da guerra. Talvez por ser um pouco ingênuo prefiro continuar apostando no pacifismo, no internacionalismo, na liberdade, na justiça, na resistência ao fascismo (aqui e lá) e ao racismo. Minha solidariedade vai para o povo ucraniano, os pacifistas russos, as vítimas das guerras em geral (Iêmen, Iraque, Sahel, Palestina, Líbia etc.) e das políticas de extermínio (Xinjiang, regiões muçulmanas da Índia e da Birmânia etc.), sem esquecer os migrantes africanos maltratados e descriminados pelas autoridades (e parte da população) da Ucrânia e da Polônia!