Universidade Nômade Brasil Blog UniNômade Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?
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Podem os governos progressistas sobreviver ao próprio sucesso?

Por Bruno Cava [1], no Quadrado dos loucos, 2/1/16

Joaquin

imagem: Joaquín Torres-García

South of the border[2], de Oliver Stone, é a quintessência da narrativa do ciclo progressista na América do Sul. O documentário de 2009 narra a chegada ao poder de Chávez na Venezuela, primeiro de uma nova safra de governantes vermelhos (ou rosés) destoando do neoliberalismo monocromático do mundo pós-URSS. Embalados pelo apoio dos pobres e da esquerda nacionalista, Chávez, Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), o casal Kirchner (Argentina) e Lula (Brasil) enfrentam as elites, a imprensa tendenciosa, o golpismo da direita e rompem com os governos neoliberais que haviam intensificado a exploração da pobreza na década de 90. A panorâmica do filme é o inverso de um road movie: em vez de imergir nos territórios e processos multitudinários, Stone passeia pelos palácios e adere às falas quase épicas dos chefes de estado. South of the border chega a citar a queda do muro de Berlim, assinalando que o novo ciclo sul-americano irrompeu na contracorrente do triunfalismo pós-histórico do Consenso de Washington. Essa narrativa made for export do ciclo progressista no Sul não poderia ser mais adequada para uma esquerda global nostálgica da Guerra Fria e ansiosa por identificar um “fora” ao capitalismo hegemônico.

 

2015 foi o annus horribilis para o ciclo progressista da América do Sul. Foi o ano em que os governos foram derrotados em seus próprios termos, isto é, quanto ao apoio eleitoral da maioria, apoio dos pobres. O kirchnerismo apresentou um candidato a presidente oriundo do menemismo e foi derrotado[3]. A oposição venezuelana marcou 16% de vantagem nas eleições à assembleia nacional[4]. Jovem opositora a Evo, Soledad Chapetón arrebatou a prefeitura de El Alto, segunda cidade da Bolívia, cidade plebeia habitada por ameríndios que foi o coração da guerra do gás de 2003[5]. Depois dos levantes multifacetados de junho de 2015 e da intensificação da crise política[6], Rafael Correa anunciou que não vai se candidatar à reeleição, em 2017. E Dilma Rousseff, sucessora de Lula na presidência desde 2011, enfrentou protestos na casa do milhão de manifestantes e uma rejeição massiva em todos os segmentos sociais, com um índice de popularidade inferior à taxa anual de inflação, de 10,5%[7]. Dilma vencera a eleição presidencial de outubro de 2014 por uma pequena margem (3%), numa campanha em que asseverou duas coisas que, semanas depois da apuração, se mostraram falsas: 1) que o país não estava à beira de uma grave crise, 2) que não adotaria as políticas neoliberais de “ajuste fiscal” que, de fato, adotou integralmente em 2015[8].

 

É nesse contexto que começa a sedimentar-se o discurso do esgotamento de ciclo[9]. Um diagnóstico por si mesmo insuficiente e repleto de armadilhas, na medida em que o fim do ciclo for entendido como uma derrota, como uma triste reviravolta em relação à era dourada da ascensão progressista. Seus governos teriam sido dobrados pelos mercados financeiros, a direita golpista, as elites mancomunadas com o imperialismo ianque, – em todo caso, algum “fora” mistificado, uma razão exógena, um Grande Outro que eventualmente determinou a derrota diante do que agora deveríamos verter jeremíadas. A autocrítica ora se resume a ressentir-se do fato que os maiores beneficiados das políticas sociais, alienados pela ideologia do consumo a que aderiram no processo de inclusão, passaram a votar na oposição (na melhor tradição populista onde o povo está sempre certo até que vote contra nós); ora a prescrever o atalho autoritário de que não teríamos sido socialistas o suficiente, cogitando de um “golpe de esquerda” na Venezuela; ou uma venezuelização, no Brasil.

 

Mas diante do prenúncio do fim do ciclo, cujo desfecho oscila entre um fim amargo (Argentina) e uma amargura sem fim (Brasil), é preciso de uma vez por todas afastar a narrativa épica que conta a nossa história recente opondo imperialismo e anti-imperialismo, progressismo e neoliberalismo, esquerda e direita, categorias que talvez fossem válidas neste subcontinente nos anos 70 ou, com demasiada licenciosidade analítica, nos 90. Chega de mistificar o debate com grandes narrativas em vez de enfrentá-lo, na problematicidade necessária para a abertura da ação e do pensamento. Como escrevi com Alexandre Mendes[10], os governos progressistas venceram. E venceram reprimindo sistematicamente as alternativas constituintes que se colocaram, sufocando toda a imaginação política, todos os movimentos que não se engrenaram nos motores ideológicos de seu projeto de governo, desenvolvimento e cidade. Que agora não fiquem tão lamurientos, ao perceber que abriram alas a sua própria destituição, depois de vencerem.

 

Nos últimos 10-15 anos, o projeto político-econômico se inspirou numa persistente matriz teórica sobre a produção nas condições do subdesenvolvimento, que ecoa antigos teoremas cepalinos[11] (Raúl Prebisch, Celso Furtado), ainda que aplicados com certo sincretismo. Trata-se, grosso modo, de uma aplicação de Keynes na longue durée: por um lado, admite-se que o investimento determina a demanda efetiva (não se produz para distribuir, mas o inverso); por outro, que nas condições periféricas é preciso também comandar o avanço industrial e tecnológico. Disso decorre um imperativo basilar: acumular capitais para ser invertidos na industrialização. Esses capitais invertidos no setor industrial, a seguir, ampliam a capacidade produtiva, alteram a composição das importações e diversificam a economia. Mas como a relação entre centro e periferia do capitalismo é estruturante, não resta aos governos do sul senão fazer uso dos excedentes acumulados em função de seu posicionamento inicial. Daí surge o tão falado “Consenso das Commodities”: suas exportações se tornam elemento estratégico de acumulação de capital, ponto de partida para a modernização do parque produtivo. Em tese, esse projeto desenvolvimentista deveria fortalecer o mercado nacional em relação às flutuações da procura externa, promover uma transformação profunda da economia pátria e, em consequência, romper o círculo vicioso da dependência estrutural. Noutras palavras, a industrialização é a via de superação da pobreza e o estado deve planejá-la.

 

Diante do fim do ciclo, as críticas à esquerda desse projeto efetivamente executado se concentram em dois grandes blocos. O primeiro bloco assinala que os governos não foram desenvolvimentistas o suficiente, que não foram capazes de romper com os entraves neoliberais, que foram cúmplices demais com o capital improdutivo e/ou financeiro, não se fizeram acompanhar por reformas estruturais e/ou um projeto efetivo de emancipação. Isto leva a criticar, por exemplo, a leniência do governo venezuelano em não forçar, mesmo que fosse manu militare, a diversificação de sua economia, rigidamente dependente da petro-indústria. Ou, no caso brasileiro, a crítica que se orienta contra o que seria uma “reprimarização” da economia, mesmo que o agrobusiness, por exemplo, seja ele próprio uma indústria de grande escala e mecanizada, totalmente emaranhada às cadeias terciárias da bioengenharia, arquitetura financeira, brand management e comercialização. O segundo bloco, a seu passo, se limita a criticar os excessos extrativistas, como se o projeto desenvolvimentista estivesse, em essência, bem norteado, faltando apenas retificar as profundas violações às populações atingidas e ao meio ambiente em geral[12], segundo uma ponderação racional de interesses. As críticas industrialistas (1º bloco) e sociais-liberais (2º bloco) perdem de vista uma limitação interna fundamental ao progressismo desenvolvimentista (tratarei mais adiante).

 

Os governos progressistas emergiram de mobilizações democráticas em todos os casos. A Revolução Bolivariana de Chávez das sublevações populares na esteira do Caracazo (1989); a Revolução Cidadã do Equador a partir das revoltas urbanas de 1997, 2000 e 2001, até a rebelión de los forajidos em 2005; a Revolução Democrática e Cultural da Bolívia, resultado do ciclo insurgente de 2000-2005, com destaque às guerras da água (2000) e do gás (2003)[13]. Nos casos de Brasil e Argentina, a crise asiática de 1997 precipitou o desmoronamento da relativa estabilidade construída pelos governos neoliberais, culminando na ingovernabilidade argentina de 2001-02, – quando explodiu o tumulto dos piqueteros e cacerolazos, ao que se seguiu o kirchnerismo, – e na ascensão eleitoral de Lula, que havia sido derrotado nos três pleitos anteriores (1989, 94 e 98). Vale apontar, ainda, a convergência dessas revoltas com as lutas do ciclo alterglobalização de Seattle e Gênova, reunidas no vetor antineoliberalismo e sob a referência de Chiapas, o que levou a uma miscigenação da geração autonomista dos anos 1990 com a esquerda sul-americana mais tradicional de extração setentista. Por exemplo, na realização dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM) sediados no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, com governo local do PT.

 

As mobilizações democráticas transmitiram o impulso multitudinário na composição dos governos, com um imediato reposicionamento do estado que, com a lógica desenvolvimentista, passou a investir diretamente no social. O redirecionamento do orçamento público determinou um inédito desbloqueio da produtividade do trabalho vivo, numa das regiões mais socialmente cindidas do mundo, reinventando a economia “desde baixo” e promovendo um período consistente de crescimento econômico e redução das desigualdades sociais e regionais. Todos os indicadores socioeconômicos demonstraram o sucesso das políticas sociais que, sem pesadas mediações do estado ou mercado, transferiram renda, elevaram o salário real e ampliaram o crédito popular. O efeito desta transformação se desdobrou em múltiplas escalas e dimensões, determinando uma mudança profunda e duradoura das sociedades sul-americanas.

 

Existe uma interpretação generalizada do sucesso do ciclo progressista que aponta para as exportações relacionadas à aceleração da economia chinesa e ao boom das commodities, – que gozavam de altas cotações, com o petróleo a mais de 100 dólares o barril, – como o principal fator da blindagem da região na crise de 2008-09, e da capacidade de distribuição de renda e inclusão social. Seria, no entanto, uma onda efêmera, conjuntural, que passaria assim que o superciclo das commodities findasse. Parece escapar inteiramente ao campo de análise a possibilidade de que o fortalecimento do mercado interno se deveu, sobretudo, à mudança qualitativa da composição produtiva social, à formação de circuitos econômicos virtuosos, independentes do sucesso ou não da industrialização, e em tendência de autonomização em relação às exportações.

 

As teses desenvolvimentistas adotadas pelos governos progressistas foram formuladas antes do deslocamento do fordismo-keynesianismo nos anos 1970, logo, antes da globalização financeirizada. Portanto, enxergavam na industrialização o caminho para a emancipação, seja pela formação de um operariado com consciência de classe, seja pela via das “reformas de base” (Celso Furtado), segundo uma análise diacrônica. Nesse propósito, o também sucesso desenvolvimentista da ditadura brasileira (1964-85), com o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), concluiu o ciclo do aço no mesmo instante em que o mundo produtivo já abria a revolução do silício, começando pela Califórnia. Hoje, três décadas depois, em pleno século 21, o setor produtivo não coincide com o setor industrial, de modo que os projetos desenvolvimentistas seguem indexados numa métrica do valor que não mais funciona do mesmo jeito, além de ser sobredeterminada pelo “comunismo do capital” operado pelas finanças[14]. A tentativa de induzir uma sociedade de pleno emprego por meio das inversões se tornou assim uma miragem, causando um paralelo acúmulo de capitais nas mãos dos mesmos grupos oligopolistas e proprietários que, pelo menos no discurso, deveriam ser combatidos em primeiro lugar.

 

De qualquer modo, é preciso destacar a singularidade dos processos constituintes boliviano e equatoriano, que emplacaram tendências de mobilização produtiva por fora dos topoi desenvolvimentistas, por exemplo, a construção evista da sociedade plurinacional baseada no bem viver[15], ou o tecnopopulismo correísta voltado à economia do conhecimento, – cujo modelo talvez não seja Cuba, mas a Coreia do Sul[16]. Apesar disso, num e outro caso, os episódios de TIPNIS e de Yasuní-ITT marcaram uma resolução de tensões e contradições no interior dos ricos processos andinos, determinando a primazia do projeto desenvolvimentista de país e dramatizando, daí por diante, o racha entre governos e movimentos. As complexas práticas biopolíticas de autonomia e comum [commune] sofrem assim uma reductio ao horizonte social-progressista, como sublinhado por autores como Salvador Schavelzon ou Alberto Acosta[17]. Ninguém exprime com tanta ênfase a necessidade dessa primazia do que o próprio Rafael Correa e o vice-presidente boliviano, Álvaro G. Linera, que repisam incessantemente que esse projeto é imprescindível para o Estado lutar contra a pobreza[18].

 

No discurso do marxista Linera[19], o mais eloquente representante intelectual do ciclo como um todo, aparece claramente o limite interno do projeto da esquerda desenvolvimentista (como também em Emir Sader[20]). Fala-se muito em desigualdade, mas não em exploração[21]. O capital não é entendido como uma relação social que, desde a sua trama molecular, organiza a própria sociedade e o estado. O Capital aparece, em vez disso, como um princípio organizador de fora e do alto, a escrever-se com maiúscula e contra o que se elevaria o Estado, numa tensão molar de luta pela divisão da riqueza social. Não à toa, recentes mobilizações de grande escala sejam imediatamente classificadas como uma tentativa de desestabilizar o Estado, a serviço da restauração neoliberal e do imperialismo. Isto aconteceu, por exemplo, no levante no Brasil de 2013 (em ressonância distante com o que se vayan todos! em 2001[22], e próxima com o ciclo global deflagrado com as revoluções árabes de 2010-11[23]), na Venezuela do começo de 2014, nas sublevações de junho de 2015 no Equador[24], entre outras. Todos são casos de uma mobilização por fora dos aparelhos progressistas que não somente foi desqualificada pelas esquerdas, como reprimida como vandalismo (Brasil), golpismo (Venezuela) ou terrorismo (Equador). O discurso do Estado, ademais, provocou a atrofia das instituições elaboradas visando à democratização radical da Venezuela, numa anêmica matriz “nacional-estatista”[25], comprometendo seu dinamismo e capacidade de renovação, – tendência também já praticamente realizada com movimentos sociais ligados aos governismos de cada país.

 

Trata-se de uma esquerda que faz uma salada russa de marxismo e hegelianismo, onde o Estado aparece como momento sintético privilegiado de uma dialética que tende a tudo justificar pela “correlação de forças”, apenas outro nome para a equação hegeliana por excelência, real = racional. Isto também vale no plano internacional, segundo uma nova dialética da economia-mundo em que os BRICs exerceriam o papel de contrapoder à América imperialista. Uma versão mitigada desta dicotomia funciona ao modo de Montesquieu, apenas a título de checks and balances[26]. A simpatia pelo modelo chinês não consiste apenas numa nostalgia da Guerra Fria, como se vivêssemos uma macropolaridade recauchutada entre a doutrina Trumman e Deng Xiaoping, mas na elaboração de novas matrizes econômicas para o desenvolvimentismo. À restauração do Consenso de Washington, haveria uma alternativa, o Consenso de Beijing[27]. A contradição aparente esconde a cumplicidade de fluxos e refluxos e um mesmo princípio unificador, como o próprio Deng certa vez afirmou em 1976: “planificação e forças de mercado são duas formas de controlar a atividade econômica.”[28] Mas a dialética aceita tudo, a ponto de o governo brasileiro levantar bandeiras vermelhas e obter o apoio da oposição socialista, embora governe com as oligarquias e empresariados mais proprietários e conservadores. Como disse Idelber Avelar, you can’t have your cake and eat it too. Não se pode governar com Kátia Abreu, a rainha do agrobusiness, e defender-se como se fosse Rosa Luxemburgo – a menos que você seja um hegeliano.

 

A diferença entre falar desigualdade e falar exploração está em que, no último caso, ressalta-se a relação que constitui a exploração, o que significa também ressaltar o seu caráter antagonista, a existência intrínseca do polo oposto. Falar em desigualdade em vez de exploração leva a pensar, diversamente, em termos de castas sociais, – um primarismo sociológico, – e não no antagonismo implícito na relação do capital, i.e., em classe. Porque a mudança da composição social corresponde a uma disseminação dessa polarização doravante molecularizada. Não há nada que lamentar, portanto, com a não-formação de uma quimérica classe operária nos moldes europeus do fordismo de grande indústria. A proletarização nas condições do Sul já implica uma proletarização nas condições pós-fordistas. Como escreveu Giuseppe Cocco, uma proletarização sui generis em que os pobres são incluídos enquanto pobres[29]. Combater a pobreza, portanto, tem uma dimensão ambígua no discurso oficialista, passando a significar também pacificá-la, bloquear-lhe a capacidade de antagonizar e organizar o antagonismo. Se a inclusão social do ciclo progressista é a inclusão do pobre numa relação de exploração (e não apenas em termos quantitativos como redução de desigualdade), então existe uma dimensão resistente da pobreza, uma dimensão criativa e produtiva que não cabe na narrativa “Estado x Capital”.

 

Os críticos da proletarização no Sul concentrados no parâmetro moral do “modelo de consumo”[30], ou então na formação de um subproletariado amorfo e desorganizado[31], acabam apagando do quadro essa transformação da composição de classe. Esta vem se expressando não só num novo ciclo de lutas para além do progressismo, como também eleitoralmente contra seus governos, mesmo que isto signifique votar mais à direita. Foi nesse sentido, para captar a repolarização “desde baixo” subjacente à crise do sul e à explosão de um novo ciclo de protestos, que eu e Giuseppe falamos em lulismo selvagem[32], um caldeamento potente de singularidades, como a face da mobilização produtiva dos pobres[33], – como se viu, tanto indesejada (e reprimida) pelos governos. Entretanto, em vez de produto de mobilizações, lutas e impulsos constituintes, as conquistas do ciclo são sistematicamente miraculadas como efeitos do Estado reposicionado e ocupado à esquerda, que na crise se converte no paranoico detentor de um patrimônio simbólico que não pode deixar escapar.

 

Portanto, não basta lamentar, nem apenas constatar o fim do ciclo progressista. E tampouco apontar a chegada das “novas direitas”, guarda-chuva ideologicamente enviesado para um momento complexo de reorientações, emergências e positividades. São insuficientes as críticas que reclamam que os governos não foram socialistas, desenvolvimentistas ou voluntaristas o suficiente, que não fizeram as reformas de base nem organizaram a massa, e que, portanto, entregaram o poder às oposições liberais (Macri, Capriles, Rodas, Aécio…). É preciso reconhecer, antes de qualquer coisa, que os governos progressistas venceram e, ao redor desse grau significativo de sucesso, se desdobraram consequências ambivalentes e antagonistas. As dinâmicas de mobilização mudaram e os projetos desenvolvimentistas e seus intelectuais de esquerda não explicam mais: eles é que agora têm de ser explicados. Libertar-se das narrativas dicotômicas, épicas e dialéticas é o primeiro passo para reabrir a imaginação à nova composição social, política e econômica do subcontinente, como certa vez o zapatismo fez. Que a esquerda mundial faça seu próprio luto da segunda queda do muro de Berlim – ainda que seja uma mureta. Que se liberte desse “pseudo-heroísmo retórico tramado de impotência”[34]. Que caiam todos os muros. Uma visão prospectiva, uma nova experiência de ação e pensamento. Não há alternativa. Viva a alternativa!

 

 

NOTAS

 

[1] Bruno Cava é blogueiro e pesquisador associado à Universidade Nômade, autor de A multidão foi ao deserto (2013).

[2] https://www.youtube.com/watch?v=tvjIwVjJsXc

 

[3] “El agotamiento kirchnerista”, Salvador Schavelzon, http://www.la-razon.com/suplementos/animal_politico/agotamiento-kirchnerista_0_2389561076.html. Português: https://dev.integrame.com.br/tenda/o-esgotamento-kirchnerista/

 

[4] “Venezuela: el ocaso de los ídolos”, Pablo Stefanoni, http://lalineadefuego.info/2015/12/08/venezuela-el-ocaso-de-los-idolos-por-pablo-stefanoni/

 

[5] “La nueva derecha andina”, Pablo Stefanoni, http://www.revistaanfibia.com/cronica/la-nueva-derecha-andina/

 

[6] “Junho no Equador e o correísmo”, Bruno N. Dias, https://dev.integrame.com.br/tenda/junho-no-equador-e-o-correismo/

 

[7] Sobre a maior manifestação no Brasil, em 2015, entrevista de Giuseppe Cocco ao IHU: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/541110-as-manifestacoes-de-marco-de-2015-sao-o-avesso-de-junho-de-2013-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco

 

[8] “The coup in Brazil has already happened”, Bruno Cava, https://www.opendemocracy.net/democraciaabierta/bruno-cava/coup-in-brazil-has-already-happened

 

[9] Por exemplo, “Nada volverá a ser igual en América Latina “, Raúl Zibechi: http://www.aporrea.org/actualidad/a220180.html; “Notas sobre el agotamiento del ciclo progresista latinoamericano “, Gerardo Muñoz: https://infrapolitica.wordpress.com/2015/10/29/notas-sobre-el-agotamiento-del-ciclo-progresista-latinoamericano-gerardo-munoz/; “El fin del relato progresista en America Latina”, Salvador Schavelzon: https://www.diagonalperiodico.net/global/27148-fin-del-relato-progresista-america-latina.html

 

[10] “A esquerda venceu”, Bruno Cava e Alexandre F. Mendes, Revista Lugar Comum n.º 45, https://dev.integrame.com.br/lugarcomum/45/

 

[11] “Globa(AL), biopoder e lutas em uma América Latina globalizada”, Antonio Negri e Giuseppe Cocco, Record, 2005.

 

[12] A crítica liberal baseada no modelo jurídico, sobre os limites do que pode ou não, a ser ponderados, é apenas a primeira crítica “fraca” ao desenvolvimentismo. Uma segunda crítica “fraca” seria substituir o limite jurídico por um limite quantitativo extensivo, uma espécie de resgate do princípio antrópico da catástrofe malthusiana e seus modelos matemáticos de progressão geométrica e curvas exponenciais. Alguns teóricos do processo capitalista (ex.: D. Harvey, “O enigma do capital”) costumam dizer que o capital não tem limites, que ele se expande virtualmente ao infinito. Para Marx, no entanto, o limite do capital é a classe, o poder de classe. O “Fragmento sobre as máquinas, trecho incluído nos “Grundrisse”, o texto mais catastrofista de Marx, tem o mérito de deslocar o conceito de limite do extensivo ao intensivo, mediante a virada maquínica do social. Esta seria uma terceira crítica, “forte”, atrelada à produção de subjetividade. A catástrofe assim pode ser disputada como catástrofe do próprio capitalismo, no momento de máximo antagonismo qualitativo. Pensada desde o Sul, essa vertente de análise imanente do desenvolvimento se entrelaça com matrizes materiais de alterdesenvolvimento, como vem sendo sistematizado, por exemplo, por Alberto Acosta ou Salvador Schavelzon (ver nota 15, abaixo). Dessa maneira, em vez de imposto de fora, por uma geralmente mistificada vontade transcendente ao processo capitalista, numa espécie de concepção negativa do Poder, a resistência é transformação da subjetividade, devir. Nesse sentido, para virar de ponta-cabeça o desenvolvimentismo, um devir-índio do desenvolvimento (conforme o meu “Devir-índio, devir-pobre”, http://www.quadradodosloucos.com.br/3138/devir-pobre-devir-indio/). À sua maneira, Deleuze e Guattari, no “Anti-Édipo”, utilizaram o conceito de Corpo sem Órgãos (CsO) para figura da catástrofe.

 

[13] “O Podemos e os enigmas que vêm do sul”, Alexandre Mendes e Bruno Cava, http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1870

 

[14] “A crise da economia global”, Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra, Record, 2011. Ver também “KorpoBraz”, Giuseppe Cocco (2013) e sua entrevista seminal ao IHU online: “O capital que neutraliza e a necessidade de outra esquerda”, http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6019&secao=468

 

[15] Uma apreensão compreensiva do bem viver na Bolívia e Equador, trazendo sua problematicidade, por Salvador Schavelzon, “Plurinacionalidade e Vivir Bien/Buon Vivir; dos conceptos leídos desde Bolivia y Ecuador post-constituyentes”, CLACSO, 2015.

 

[16] “La utopia coreana en los Andes”, Pablo Stefanoni, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=171279 e “El tecnopopulismo de Rafael Correa: ¿Es compatible el carisma con la tecnocracia?”. Carlos de la Torre, https://muse.jhu.edu/login?auth=0&type=summary&url=/journals/latin_american_research_review/v048/48.1.de-la-torre.html

 

[17] “O Buen Vivir, uma oportunidade de imaginar outro mundo”, Alberto Acosta, br.boell.org/sites/default/files/downloads/alberto_acosta.pdf

 

[18] “Empate catastrófico y punto de bifurcación”, Álvaro García Linera, http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye2S1a.pdf

 

[19] “O socialismo é a radicalização da democracia”, entrevista com Álvaro García Linera, http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/alvaro-Garcia-Linera-O-socialismo-e-a-radicalizacao-da-democracia-/4/34666 (2015).

 

[20] “A desigualdade no Brasil e no mundo”, Emir Sader, http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/A-desigualdade-no-Brasil-e-no-mundo/2/27098

 

[21] Sigo aqui o insight de Giuseppe Cocco na entrevista supracitada, ao IHU.

 

[22] “Imagens e anacronismos; a questão do demos entre o 2001 argentino e o 2013 brasileiro”, Ariel Pennisi, Revista Lugar Comum n.º 45, https://dev.integrame.com.br/lugarcomum/45/.

 

[23] Boa síntese em “Ocupações estudantis: novas assembleias constituintes diante da crise?”, Alexandre Mendes, https://dev.integrame.com.br/tenda/ocupacoes-estudantis-novas-assembleias-constituintes-diante-da-crise-2/

 

[24] “¿Por qué protestan en Ecuador? “, Pablo Ospinta Peralta, http://nuso.org/articulo/por-que-protestan-en-ecuador/

 

[25] “Chavismo, Guerra Fría y visiones ‘campistas’”, Pablo Stefanoni, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=165376

 

[26] Poderíamos citar como exemplo em que as contradições são funcionais para a expansão do regime de acumulação de capitais e a sobrevivência do capitalismo, o estudo de caso da concatenação entre a territorialização da República de Veneza e a desterritorialização da burguesia genovesa, durante o renascimento, conforme Giovanni Arrighi, “Il lungo XX secolo; denaro, potere e le origini del nostro tempo”, 1996.

 

[27] Também sigo aqui a observação sobre China e BRICs de Giuseppe Cocco, na entrevista supra. A “nova matriz econômica” esposada pelo novo ministro da economia, Nelson Barbosa, é tributária do modelo chinês pós-76. Um caso anedótico, ma non troppo, da simpatia mandarim foi o comentário no Facebook do editor governista da Carta Maior, Breno Altman, que os manifestantes anticorrupção que encheram as ruas brasileiras em 2015 deveriam ser tratados como os opositores da Praça da Paz Celestial, em 1989.

 

[28] Deng Xiaoping apud “The Changing Face of China”, Oxford, 2005.

 

[29] Este é o cerne da aplicação do ferramental operaísta da composição de classe na análise que Cocco faz da mobilização produtiva dos pobres nos últimos 15 anos no Brasil, em seus livros “MundoBraz” (2009) e “KorpoBraz” (2013).

 

[30] Por exemplo, Emir Sader, para quem o principal é a “batalha das ideias” contra a ideologia neoliberal: “Vencer a batalha das ideias”, http://cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Vencer-a-batalha-das-ideias/2/33405

 

[31] Vocalizando parte da esquerda do PT, André Singer, principal tese sobre o dito “subproletariado”, formado durante os anos Lula, em “Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador” (2012).

 

[32] “Vogliamo tutto! Le giornate di giugno in Brasile: la costituzione selvaggia della moltitudine del lavoro metropolitano”, Giuseppe Cocco e Bruno Cava, http://www.euronomade.info/?p=173

 

[33] Rosto que foi Amarildo no levante brasileiro de 2013, expressão da possibilidade dos pobres se organizarem e lutarem, apesar do biopoder racista que modula a violência de classe, atingindo principalmente negros e indígenas, e a serviço dos megaprojetos de “pacificação” da cidade e desenvolvimento nacional. Conforme “A luta pela paz”, Giuseppe Cocco, Eduardo Baker e Bruno Cava, http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1569

[34] “O país banal”, Lobo Suelto! (editorial), http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/11/o-pais-

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