Por Everton Moraes, doutorando em história pela UFPR, para o dossiê UniNômade sobre as manifestações
“A experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular.”
foto: Projeto HO
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Toda uma série de discursos não cessa de falar da novidade indomável e da enorme dificuldade de explicar as manifestações que tomam de assalto as ruas do país desde junho de 2013. Não se sabe bem o que querem os manifestantes, já que as pautas são difusas e mutantes, ora reivindicando a redução da tarifa e a mudança da lógica da política de mobilidade urbana, ora com as “famílias” nas ruas gritando contra a corrupção, passando pela Copa do Mundo (com críticas que vão dos excessos nos gastos com os estádios até as desapropriações violentas realizadas em função das obras do evento); também não se sabe quem são os “verdadeiros” manifestantes, já que nem sempre parece fácil distinguir entre os violentos, os vândalos, os baderneiros e os “legítimos” cidadãos protestando “democraticamente”; nem se sabe, enfim, aonde pode levar a “crise de representação” que eles parecem escancarar e radicalizar.
Mas para além dessa leitura em que tudo é novo e ainda inenarrável, me proponho aqui a analisar como essas movimentações se relacionam com um certo passado, com certas memórias da resistência no Brasil. Penso sobretudo, em tradições de resistência que, apesar de possuírem origens remotas e difíceis de precisar, se consolidam e entram em uma disputa explícita por espaço na querela entre o “nacional-popular” e o “tropical-concreto”: de um lado, no caso da primeira, uma rigidez (às vezes quase militar), uma seriedade, uma confiança inabalável nos poderes da razão e da consciência, que acreditava que sua missão era levar a consciência da exploração e das possibilidades de transformação social para os “trabalhadores” explorados (estes desprovidos dessa consciência idealizada). Na qual era preciso falar a linguagem do “povo”, ser didático, dar-lhe a mão e ajudar-lhe a sair da condição de “subdesenvolvido” que o país lhe impunha. Essa esquerda talvez remonte aos Centros Populares de Cultura (CPCs), deixando marcas indeléveis em frações do Partido dos Trabalhadores e colocando o “desenvolvimento” como condição fundamental para a superação da desigualdade e a participação política comum.
De outro lado, no tropical-concreto (me refiro às experiências e trocas de neoconcretos e tropicalistas a partir do final da década de 1960 e não aos posteriores desdobramentos identitários e mercadológicos que reivindicaram uma herança associada ao nome ao “tropical”), nomes tão diferentes entre si quanto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Hélio Oiticica, Haroldo de Campos, Torquato Neto e Waly Salomão, entre outros, apostavam em uma outra forma de resistir: alegre, festiva, não racionalista, não didática, que preferia antropofagizar o “povo” ao invés de “ensinar” lições; que se deixava afetar pelas potências “marginais”, essas que os adeptos do nacional-popular consideravam subdesenvolvidas e incapazes de transformar a história por si próprias.
Parangolés, suplementos culturais, festivais de música popular viravam o espaço de uma relação outra com o “público”, com a “realidade” do país, com a pobreza, com a alteridade etc. Apostar na alegria, na festa, na provocação, no desafio escandaloso mais do que no braço em riste, nos gritos de guerra, no embate armado contra o Estado. Mais do que buscar o “desenvolvimento” era preciso, segundo eles, criar as condições para o livre uso do comum, sem o qual qualquer desenvolvimento ficaria restrito a reiterar as forças dominantes. E era a partir dessa leitura micropolítica, ou antes, infrapolítica, que se buscava atuar frente a demandas macropolíticas como luta contra a ditadura ou a disputa entre “projetos” de Brasil.
Talvez seja interessante se perguntar como as manifestações que acontecem no Brasil, um pouco por toda a parte, desde junho de 2013, dialogam com essas duas memórias da resistência no Brasil. Como elas se relacionam com as potências nacional-populares ou as do tropical-concreto?
Não, certamente, para negar a novidade e a irredutibilidade das manifestações, mas porque talvez, a partir dessa pergunta, se possa pensar uma poética da resistência, ou antes, em termos de poéticas da resistência. Entendendo que estas são produzidas historicamente e orientam posturas e práticas adotadas durante os protestos. Penso que sua análise é fundamental não apenas para entender o que se passa com as manifestações, mas também para pensar o que estamos fazendo de nós mesmos enquanto “manifestantes” ou quais as implicações políticas e infrapolíticas do modo como nos relacionamos com as multidões que tomam de assalto as ruas do país.
A resistência nas manifestações se dá na própria prática do manifestar, isto é, na ocupação da rua, nas relações horizontais com outros manifestantes, na relação com a cidade, na invenção de novas táticas no calor do momento; mas também produz demandas frente ao Estado e suas instituições, como o Movimento Passe Livre (MPL) que, por exemplo, ao reivindicar a diminuição do preço do transporte urbano, tendo no horizonte a “tarifa zero”, vai do micropolítico ao macropolítico, lutando pelo direito comum de acessar a cidade como um instrumento fundamental para a participação política em sentido amplo. Assim, as manifestações seriam uma máquina de produzir corpos indóceis.
E ainda que os militantes do MPL demonstrem uma enorme habilidade de expor suas pautas, a consciência que está em jogo é muito mais a de se saber afetado e atravessado pelos diversos microfascismos que afetam o cotidiano de todos nós, muito mais do que uma consciência idealizada de um sujeito universal. Em suma, o manifestante é o “qualquer um” afetado pela gigantesca fábrica de miséria humana que é o capitalismo contemporâneo.
Apesar das tentativas de captura à direita e da crença de certas parcelas das esquerdas partidárias de que era fundamental estabelecer uma “liderança” e um processo de conscientização das “massas”, das leituras enviesadas e reducionistas da mídia ou mesmo da violenta repressão policial, as manifestações são um espaço de experimentação onde as mais contraditórias forças podem emergir; e é nessa experimentação que surgem as disputas entre forças estético-políticas.
Cabe então perguntar: que forças estão emergindo? Quais poéticas da resistência estão em jogo nessas manifestações?
O que, de alguma forma, emerge com as manifestações é a possibilidade de tecer uma outra relação entre as dimensões social, política, cultural e estética, isto é, realizar uma intervenção sem que haja a necessidade de líderes explicando didaticamente como devem agir os manifestantes, mas uma elevação destes a condição de agentes e não apenas objeto do discurso político de outrem. Nem mesmo do discurso das mídias oficiais, que apesar de produzirem narrativas que tentam capturar as múltiplas formas de resistência em linguagens previamente codificadas, perdem seu monopólio da “informação” com a emergência de uma miríade de filmagens e fotografias que produzem narrativas de resistência.
E ainda que as manifestações tragam signos ambíguos, paradoxais, a experiência da ocupação das ruas parece estar mais próxima do tropical-concreto do que do nacional-popular (apesar da presença de signos desta última estejam presentes), com toda a micropolítica simbolizada pela adoção da figura mitológico-política do “marginal”: aquele que, por estar à margem, tanto do “sistema” quanto do discurso das esquerdas tradicionais, opta por não seguir as regras vigentes no mundo social e político, ignorando a lógica da não-contradição, a prevalência da consciência, a racionalidade instrumental, o recurso obrigatório e prioritário as instituições tradicionais da luta política. As muitas “caras”, as demandas difusas, a ausência de um sujeito privilegiado, a não necessidade de uma consciência soberana e o imanentismo das manifestações são um exemplo disso.
Em suma, a transformação que esse personagem conceitual, o “marginal”, hoje transfigurado em uma multiplicidade de rostos, propicia, é o aparecimento de novas formas de resistir: o desejo concreto, não harmonioso dos oprimidos, ou mesmo seu dissenso, mais do que a bela consciência idealizada dos “engajados” no progresso da nação; a antropofagia que hibridiza estéticas distintas, mais do que a coerência e a linearidade do discurso desenvolvimentista das “esquerdas tradicionais”, que hoje se encarna o “governo”; a desrazão e o caos como forma de “desordenar” as formas de pensamento dominante. Como se os manifestantes estivessem tomados por um devir-marginal.
Mais do que desejar e lutar por uma nova sociedade, o marginal é aquele que sabota o funcionamento normal da sociedade atual. E esse caráter de “sabotagem” e de desorganização é fundamental para entender a poética das manifestações, isto é, entender que forma imprimem às suas práticas de protesto. Certamente não se trata mais daquela forma rígida, com uma ideia fixa de “desenvolvimento” econômico, que privilegiava um sujeito pseudo-popular como agente e apostava no combate a alienação através de uma racionalidade progressista. Ao contrário, a poética que parece estar em jogo é muito mais criativa, mutante, sabotadora, de-formante, muito mais do que formadora de identidade, capaz de fugir cada vez mais rápido de um Capital cada vez mais ágil em suas capturas.
Entender os manifestantes de hoje como reativadores das potências marginais de outros tempos não é reduzir o presente ao passado, ou hierarquizá-los de modo a exaurir a potência dos acontecimentos, mas abrir o presente à múltiplas possibilidades de releitura.