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Por uma política das lutas: Syriza, Podemos e nós

Por Toni Negri e Sandro Mezzadra, em 5/1/15, na Euronomade | Trad. de André Baja, pelo esquerda.net

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O ano passado terminou com o fracasso da eleição do presidente da república na Grécia e com a consequente convocação de eleições legislativas antecipadas [N.E: a Syriza venceu a eleição em 25/1/15, formando o governo do primeiro-ministro Alexis Tsipras]. É um momento político de grande importância, destinado a assinalar um ano que, na Europa, irá concluir com as eleições em Espanha (onde já em maio se vota para as eleições municipais e autônomas). É de todo evidente que a votação grega não será uma simples eleição “nacional”: a forte ingerência do governo alemão e da Comissão Europeia, com tendência a aumentar nas próximas semanas, mostra claramente que o que está em jogo é a atual arquitetura das instituições europeias, redefinida nos últimos anos por via da gestão da crise. A reação da Bolsa de Atenas ao simples anúncio de Samaras da decisão de antecipar as eleições presidenciais para 9 de dezembro, com uma queda superior a 12%, já havia deixado entender qual será o papel de um outro ator fundamental, o capital financeiro.

Nestas condições, a partida que a Syriza está prestes a jogar é evidentemente complicada e parecem-nos um pouco ingênuas as posições que no seio da esquerda europeia, talvez disfarçadas de realismo político, propõem cenários lineares de superação do neoliberalismo e da austeridade pela via da recuperação da soberania nacional. Acreditamos, sim, que nos próximos momentos eleitorais na Grécia e em Espanha, especialmente se forem considerados em conjunto, se joga uma ocasião fundamental para abrir novos espaços políticos na Europa. E que é necessário apoiar de forma clara a empreitada da Syriza, contribuindo em primeiro lugar para clarificar as condições para que a sua afirmação eleitora não se traduza, como tantas vezes aconteceu na história da “esquerda”, num elemento de rigidez e de fechamento mas sim no impulsionar de um movimento expansivo, de natureza tendencialmente constituinte.

Pensamos e praticamos sempre a política para além do momento eleitoral, olhando em primeiro lugar os movimentos e as lutas dos sujeitos que se batem contra o domínio e contra a exploração. Continuaremos a fazê-lo. Mas isto não nos impede de aceitar a relevância que certas eleições possam ter do ponto de vista da luta de classes. Foi assim em muitos países latino americanos na última década, poderá sê-lo novamente na Grécia e em Espanha – e por isso na Europa – em 2015. A ocasião que se abre é a de quebrar, juntamente com o bipolarismo entre o Partido Popular e o Partido Socialista Europeu, o domínio do pensamento único, ou de acabar com o “extremismo do centro” que representa a moldura política da gestão da crise na Europa destes anos. No interior deste quadro político foram-se definindo os cenários de estabilização neoconservadora, de substancial aprofundamento do neoliberalismo, radicalmente hostis à conquista de novos espaços de liberdade e igualdade. O ataque às condições de vida, cooperação e trabalho foi particularmente violento, sobretudo (mas não só) nos países da Europa meridional. E o “extremismo do centro” acabou por dar à luz um gêmeo menos apresentável à sociedade: uma plêiade de direitas “nacionalistas”, algumas abertamente fascistas, que já introduziram no tecido social elementos de disciplina violenta e de nova hierarquização.

Estes processos e estas tendências têm um forte enraizamento nas sociedades europeias. Não será seguramente uma eleição a bloqueá-los: no entanto, o encadeamento das eleições gregas e espanholas poderá abrir uma fenda na sua continuidade, pode determinar aquela diferença que precisamos para fazer sair as lutas destes anos contra a austeridade de uma dimensão de mera “resistência”; para finalmente articular a tensão da reapropriação de riqueza e para constituir as novas formas organizativas que as lutas expressaram num programa constituinte.

Não é para isto que apontam forças políticas como Syriza e Podemos, e pensamos que seria um erro medir a sua ação deste ponto de vista. Tanto a Syriza como o Podemos (forças muito diversas, seja do ponto de vista da cultura política, seja do ponto de vista da história e da sua relação com os movimentos), falam hoje explicitamente da necessidade de reconstruir uma hipótese “social democrata”. Ou seja: pretendem ser o elo para definir um projeto reformista capaz de fazer contas com a crise da social-democracia histórica e com as profundas transformações do capital e do trabalho. Uma experiência em tudo análoga está já em curso na Turíngia, com a entrada do Die Linke [1], juntamente com SPD e Verdes, no governo do Land. A coisa não nos escandaliza: a ruptura do “centrão” terá sempre de colocar o problema da constituição de um novo tecido de mediação, da abertura de espaços em que viver e cooperar seja, para dizê-lo de forma simples, menos doloroso e cansativo. Várias vezes sublinhamos as dificuldades estruturais que similar projeto encontra defronte da lógica financeira e “extrativa” do capitalismo contemporâneo. Mas o que está verdadeiramente em jogo (ainda mais depois das grandes lutas destes anos na Grécia e em Espanha) parece-nos importante per se. E pode determinar condições para a irrupção de novos movimentos, pode contribuir para qualificar as lutas em termos mais avançados – ou seja, colocar de modo explícito a questão de uma “política das lutas”. Pode acontecer: é sobre isto que se joga a partida mais importante.

Tem-se dito nestas semanas, no debate europeu, que se trata de derrotar o medo e de “tornar a vencer”. Também estamos convictos disso. Desde que “ganhar” não se reduza à afirmação eleitoral de uma força de “esquerda” como a Syriza (ou “populista”, no sentido atribuído ao termo por Ernesto Laclau [2], como o Podemos). Já dissemos quanto nos parecem importantes os êxitos das próximas eleições gregas e espanholas. E tanto a Syriza como o Podemos representam novidades significativas na medida em que souberam abrir (repetimos: sob a pressão de grandes lutas) espaços políticos novos, irredutíveis a antigas e gastas nomenclaturas. Mas é precisamente o exercício de um renovado realismo político que nos impede de pensar que o êxito de uma volta eleitoral possa, per se, configurar uma “vitória”. Sem querer repetir aqui o conjunto de reflexões destes anos sobre a crise da representação, sobre os processos de financeirização, sobre as transformações do estado no contexto da globalização, os limites colocados hoje à ação dos governos – e ainda mais no interior da União Europeia – são por demais evidentes, e deles estão conscientes os dirigentes mais avisados da Syriza e do Podemos.

Tais limites não podem ser superados por um só partido e muito menos com base na simples reivindicação de “soberania nacional”. As tendências para a rigidez e fechamento que várias vozes vêm denunciando, seja em relação à Syriza seja em relação ao Podemos, talvez possam ser compreendidas tendo presente a urgência e necessidades dos calendários eleitorais. Se se consolidassem, todavia, seriam catastróficas. Aquilo que é necessário, pelo contrário, é uma atitude experimental de abertura à construção e consolidação de uma nova teia de contrapoderes, de novas instituições, de experiências maduras de auto-organização social. E, ao mesmo tempo, deve impor-se a consciência de que o confronto acontece inteiramente ao nível europeu: mesmo uma hipotética ação de governo anti-austeridade à escala nacional não pode ter outro objetivo do que quebrar os equilíbrios consolidados da gestão da crise pelas instituições europeias, abrindo novos espaços (por exemplo a partir de uma negociação intransigente da dívida) para a irrupção de movimentos sociais radicais ao nível europeu.

É sobre esta dupla capacidade de abertura, aos movimentos sociais capazes de formas próprias de institucionalismo e à dimensão europeia, que será avaliada a ação de forças como a Syriza e o Podemos nos próximos meses. E, de facto, é jogando sobre estas duas peças que os próprios movimentos podem dar uma contribuição essencial à definição de um programa de abertura de um processo constituinte. São, obviamente, questões que se colocam com urgência também em Itália, com base, entre outras, na experiência e no percurso da “greve social” [3]: voltaremos em breve a este assunto. Com um programa constituinte poderá ganhar-se um novo campo político e ir além dos apelos à indignação e à expressão da raiva que, embora compreensíveis, arriscam-se a ser o espelho de uma impotência política substancial.

2015 será, para a Europa, um bom ano se conseguirmos criar condições mais avançadas para enfrentar, de uma perspectiva constituinte, problemas antigos (como a relação entre partidos, sindicatos e movimentos, o internacionalismo, a mesma relação entre reforma e revolução) que se apresentam hoje com formas radicalmente novas. Uma política das lutas é capaz de reconhecer os problemas por resolver e não os retomar a não ser para lhe renovar o tecido: não é isso que está a acontecer hoje na Europa?

 

Tradução de André Beja para o esquerda.net.

NOTAS

[1] Em 2014 a Turíngia tornou-se no primeiro Land a ser liderado pelo DIE LINKE, partido que bateu a coligação de direita que governava o estado desde reunificação alemã.

[2] Politólogo e filósofo argentino, de orientação pós marxista, Laclau recusou a demonização do populismo e, analisando as suas raízes, fenômenos e percursos, caracterizou-o como a construção de um imaginário, a unificação de uma grande variedade de exigências pela via de um inimigo comum.

[3] “Sciopero Sociale” é uma iniciativa conjunta de sindicatos de base, movimentos sociais, de trabalhadores precários e estudantes, que tem vindo a trabalhar para articular e ampliar a resistência à ofensiva da austeridade e precarização do governo de Renzi. Foi este trabalho coletivo que impulsionou a greve social de 14 de Novembro, com manifestações em dezenas de cidades, tendo a força da mobilização levado os dirigentes das principais centrais sindicais não só à sair à rua como a convocar a greve geral que viria a acontecer a 12 de Dezembro.

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