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Pragmaticamente deveríamos ser livres

Por Fabricio Toledo

A provável vitória de Lula nas eleições de outubro no Brasil traz um sentimento de alívio e esperança, porque significa, sobretudo, o fim de um período difícil para o país e para grande parte da população. A iminente vitória de Lula no primeiro turno é em certa medida a resposta dos brasileiros ao aumento da fome e ao crescente empobrecimento.

Muito provavelmente, grande parte dos que elegeram Bolsonaro em 2018 agora votarão em Lula, o que demonstra a coerência dos eleitores com suas necessidades e desejos. Neste sentido, há uma pragmática que não está vinculada a bandeiras, mas ao real do cotidiano.

Esta migração de votos talvez coincide com o mesmo fenômeno que temos visto nos países vizinhos, em que a insatisfação com os governos de direta levaram a esquerda ao poder. A falta de soluções para antigas crises que se acirraram com a pandemia pode ser o principal motor para tal alternância, mais do que explicações baseadas em vínculos identitários, ideológicos ou culturais.

Nas últimas semanas antes das eleições, ganhou corpo um importante movimento de adesão à Lula. A este movimento, que tem como principal bandeira a defesa da democracia, tomaram parte artistas, ex-presidentes, juristas, empresários e outras figuras influentes na vida social, financeira e política do Brasil. E tem sido considerado importante por sua capacidade de aglutinar personagens de diferentes espectros políticos e campos de atuação.

Neste sentido, parte do apoio à eleição de Lula pode ser compreendido como esforço pela restauração de alguma normalidade e pela capacidade que tem Lula de impor-se como único ator capaz promover algum tipo de pacificação política e de evitar manobras golpistas ou outras expressões de violência por parte de seu principal adversário. E, afinal, o êxito de Lula será importante para diluir este sentimento generalizado que Bruno Cava chama de “exaustão geral”[1].

Há diferentes motivos para votar em Lula. Há tantas razões para elegê-lo quanto há eleitores que votarão nele. Afirmar a singularidade do voto não é pouca coisa: este é o momento por excelência que antecede à representação política. Assim, cada voto (ou ausência de voto) é um voto útil por si e o pragmatismo é decidir.

Lula mobiliza paixões como nenhum outro político: desde o ódio quase visceral ao amor incondicional, que tem por vezes o efeito de recalcar todos os seus pecados. Os dois mandatos de Lula certamente impactaram positivamente a vida dos brasileiros, com aumento de renda, aprimoramento institucional e a melhora da autoestima, resultado inclusive da hábil divulgação de um retrato auspicioso do país na comunidade internacional.

E, antes que sua imagem fosse manchada por acusações de corrupção, o PT por muitos anos esteve associado com a luta pela ética na política e pela recusa à logica corporativista. Tudo isso, mais a incrível capacidade de mediação, o carisma e a inteligência de Lula, contribuem para colocá-lo de volta ao lugar principal da política brasileira.

A importância de Lula e do PT no cenário político e mais especificamente a sua importância como alternativa democrática, entretanto, é também fruto da falsificação da verdade e da corrupção dos afetos. Que Lula seja hoje (e até quando?) a única alternativa viável não é apenas o resultado natural de suas habilidades e da ausência de opções, mas é também o fruto de um longo processo de hegemonização obtida através de estratégias absolutamente reprováveis.

Assim, o consenso em torno de Lula, ao menos quando consideramos os que fazem parte dos ideais progressistas, está assentado em um pragmatismo que tem um limite real. E que deveria ter um limite ético.  Novamente, tal como aconteceu antes – inclusive nas eleições em que Bolsonaro saiu vitorioso – o pragmatismo está, de certo modo, preso a uma chantagem: barbárie ou PT. Ao fim, a “frente ampla” se viabiliza apenas quando beneficia o PT.

E se antes evitar a barbárie era a estratégia para vencer qualquer adversário, agora se tornou, de fato, uma necessidade real e urgente. Esta barbárie, entretanto, não veio com um meteoro, nem surgiu de um suposto caldo social fascista. E muito menos dos protestos de 2013. Ela foi em grande parte o fruto dos grandes acordos e da repressão sistemática (com diferentes estratégias) a qualquer ameaça ao pacto entre as elites políticas.

O pragmatismo do eleitor, portanto, não pode ser o mesmo “pragmatismo” do PT e de Lula. E este é um dos temas sensíveis deste momento político. Porque as possibilidades reais de surgimento de alternativas democráticas, tanto do ponto de vista eleitoral, como do ponto de vista social, dependem também de nossa capacidade de imaginar e de criar um pragmatismo ético, em que os fins não justifiquem os meios.

Não é preciso se afogar em idealizações e montar uma máquina de fazer críticas sempre mais à esquerda. Mas seria importante refletir de maneira realmente critica sobre os termos a que nossa subjetividade progressista esta vinculada hoje. E refletir como nosso pragmatismo pode permitir uma tolerância tão elástica com temas sensíveis. Que Lula seja declarado tecnicamente inocente, por exemplo, não quer dizer que ele não mereça crítica ou reprovação política, ética e social, que são tão importantes quanto a jurídica. E este deveria ser um ponto relevante.

Participar ativamente da restauração após 2013, com a repressão criminal de manifestantes, costurar acordos em favor da impunidade da classe política (sob a justificativa de preocupação com limites constitucionais ou processuais), difamar e calar adversários importantes (como Marina), elogiar governos ditadores (quando era possível, em nome do pragmatismo, manter silêncio) deveriam ser levados em conta em nosso pragmatismo. A malandragem política deveria ser expressamente reprovada e não comemorada, como fazem muitos, em nome de um pragmatismo que, ao final, é apenas uma prática corporativista.

Como deve ser em um regime de democracia e liberdade, cada eleitor participa das campanhas, decide seu voto, escolhe seu candidato e investe em sua própria imagem da forma como lhe convém. Imaginando (criando as imagens) aquilo que quer projetar como futuro e de acordo com suas convicções. Quanto a isso, quanto mais livre o desejo, tanto melhor. A questão não é reprimir tal desejo, mas, ao contrário, abrir condições para ampliá-lo coletivamente e individualmente. É preciso incluir outras coordenadas para nossos desejos, para além do encerramento que o pragmatismo, ou melhor, que a chantagem e a repressão política nos impuseram.

A necessidade de que o governo Bolsonaro termine, de que seja restabelecida alguma paz e que seja restabelecido algum nível de institucionalidade democrática pode ser o consenso mínimo entre os que se identificam com a democracia.  O que parece nocivo, no entanto, é, que institucionalmente Lula e o PT mantenham a condição de impor se como únicos elementos de alternativa (com suas táticas de massacrar e ou cooptar alternativas) e que subjetivamente, esta chantagem continue prosperando, especialmente nos ambientes acadêmicos e culturais.

Se é verdade que Lula tem que ganhar, também é verdade que o lulismo deve perder. Precisamos ter espaço para pensar alternativas éticas e para exercer um pragmatismo em que os fins estejam em acordo com os meios.

[1] CAVA, Bruno. Lula vai ganhar. Uninômade Brasil, 27/09/2022. (https://dev.integrame.com.br/tenda/lula-vai-ganhar/)

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