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Quando a classe sem nome vai ao “paraíso”

Por Hugo Albuquerque, no Descurvo, em 13/01/14

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Imagem: Exodus, E. Descals

Desde do final do ano passado, o fenômeno conhecido como Rolezinho se tornou um estouro. Trata-se de algo bastante simples: jovens pobres da periferia, por meio das redes sociais, convocam gigantescos flashmobs em shoppings. Lá, eles combinam de passear, ver as lojas, entrar num mundo que lhes é socialmente proibido — mas cuja imagem é o próprio ápice do que o sistema oferece. De repente, o assunto se tornou caso de polícia nos maiores shoppings paulistas. Mas não há crime, apenas o fato de que os jovens “parecem querer bagunça” como admitem as próprias autoridades. No último caso, o shopping JK, inclusive, conseguiu uma decisão liminar na Justiça impedindo a entrada, sob ameaça de multa, de quem pretendesse adentrar nas suas dependências para participar do evento — em uma decisão que, por certo, já entrou para os anais do nosso judiciário.

Não houve crimes, convocação para crimes ou preparação para atividades criminosas, tampouco para ilícitos cíveis. Isso, ninguém nega. Como também, até que se diga o contrário, a liberdade de ir e vir ainda está entre os direitos fundamentais da Constituição — e não, não pode ser restrita pela simples vontade de alguém baseado em fundamentos moralistas. “Não gostamos deles, queremos fora!”. Essa aparente disfunção jurídica, no entanto, revela o próprio funcionamento prático do sistema. Se o liberalismo jamais criou vedações formais para os fluxos, ele tratou de não criar jamais mecanismos que pudessem dar subsídios materiais para isso poder se tornar um problema. Com o advento das políticas social-democratizantes dos últimos anos, a universalização de informação e proteínas esticou o corpo do sistema: não é que o capitalismo científico tenha triunfado, ao contrário, ele fracassou redondamente, pois a universalização geral da vida burguesa mostrou seus pés de barro, isto é, trata-se de um modo de vida que só se sustenta a partir da existência de mestres e escravos.

Em um movimento espontâneo, livre, uma geração inteira nascida sob a égide da democratização da sobrevivência à mortalidade infantil, mas exposta a uma massiva violência — inclusive, e sobretudo, de Estado — na juventude, se vê diante de uma paradoxal liberdade: autorizada a cruzar a terra, descobrindo novos mundos, e forte o suficiente para fazê-lo, ela se vê atacada quando extrapola a camisa de força da vida cotidiana. Não tendo feito nada de errado, nem segundo o sistema. Daí, não é estranho o choque com a face real e inglória do sistema; a reação imediata é uma perplexidade existencial dolorosa, como a do garoto Douglas, morto pela polícia, que, antes de morrer, inquiriu o algoz: por que o senhor atirou em mim? No momento em que as barreiras jurídicas e econômicas são minoradas, o Estado revela sua verdadeira face: o exercício do poder é de fato, alheio ao próprio direito.

O exercício do mando no ocidente nunca foi o domínio puro e simples. O senhor, o dono, jamais abriu mão do monopólio da dádiva, da simulação da bondade, da construção de um ethos glorioso, mas, de um outro lado, sempre precisou do vilão, o próprio administrador da casa para delegar o monopólio do mal e, assim, administrar castigos. Essa dualidade entre o senhor e o capataz é do que falamos. Mas o tensionamento de certas relações força ao reconhecimento do óbvio: não há distinção entre os dois, ambos representam o mesmo teatro. Quando o sistema está em xeque, ele não vai ousar em usar de força pura e simples. E “estar em xeque” não é o mesmo que “vender pouco”, ter o “patrimônio ameaçado”, nada disso; é ver a ideia de exclusividade, de escassez, que possibilita a relação de fetiche da mercadoria estilhaçada: se algo se torna comum, como a área supostamente livre de um shopping de luxo, se esconjura o feitiço que permite aquelas relações, aquela falta, aquela agonia — e a própria opressão.

Uma geração inteira de jovens — dentre os quais, eu mesmo me incluo, embora a cor dos olhos, feliz ou infelizmente, sempre me tenha feita voar abaixo do grosso do radar da repressão — experimenta a verdade da Coisa, da sua pior forma, mas não aceita mais ser matável, excluível ou ignorável. Não estão “alienados” pelo consumismo, apenas estão invocando o que é direito de qualquer um — ou não é? –, não aceitam o apartheid — social e racial — de não poderem partilhar, mesmo como espectador, do que é valoroso, pelo menos até que se diga o contrário. Em tempos nos quais quase tudo se enuncia em inglês, algo bem tradicional do brasil se diz em grego: a lei da casa grande, a rigor, se fala agora macroeconomia. Eu não falo só do predomínio da preocupação com a índices, e indicadores, econômicos em detrimento da política, mas da própria ascensão de uma forma de organização que só concebe o homem como ser boçal e animalizado, pronto a receber o castigo do chicote: mercado, polícia e política, todos atados conceitualmente. Olhar o Brasil de hoje sem ver a dinâmica da composição de classe, e do próprio fundamento do que é uma classe ou uma sociedade, é um voo cego.

De todo modo, sim, nós sabemos agora porque o Senhor atirou: não poderia ser diferente, sendo você o que é. À la Gombrowicz, a Classe sem Nome faz arte, satisfaz os perturbados e perturba os satisfeitos.

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