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Quando a “escória de Porta Pia” se subleva

Por Commonware (editorial), em 22/10 | Trad.: UniNômade Brasil

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Foto: Giuseppe Perna, em Un´Altra Italia

 

O que significa sublevar-se? Ninguém pensava que a manifestação do 19 de outubro (19-O) tinha dado uma resposta, fazer a pergunta era já um objetivo ambicioso. Deste ponto de vista, a manifestação de Roma obteve um primeiro resultado importante, certamente parcial, porém de forma alguma simples e barato.

Diante de processos evidentes de fragmentação agindo na crise, o problema era e é achar o caminho para inverter a rota. Tentou-se fazer isso partindo da potencialidade de generalização que algumas lutas têm: da moradia ou dos trabalhadores da logística, e obviamente os movimentos que, até aqui, foram definidos como territoriais — do No Tav ao No Muos — e para os quais, hoje, esse rótulo parece limitante.

Recomposição é uma palavra pesada, que devemos manejar com cautela, porque há o risco de ser confundida por uma soma simples dos conflitos e redes, ou pior ainda, confundi-la com siglas. Havia também o medo de que o 19-O — na dificuldade que atravessa os movimentos, os que existem e os que não existem — não fosse muito além do esforço militante generoso e intenso que o tornou possível. As coisas aconteceram de maneira diversa, e esta já é uma indicação de método: sem assumir as apostas e chances, não se constroem saltos ou passagens em frente. As coisas aconteceram de maneira diversa, sobretudo quanto aos números: conta pouco, aqui, pontuar se eram 70 ou 100 mil. Uma vez fixada uma ordem verossímil de grandeza, se pode afirmar que eram certamente o dobro, senão o triplo do que se tinha estimado anteriormente do que seria uma “boa participação”. Não se pode esquecer que essa participação no 19-O foi — literalmente e sem retórica — auto-organizada, isto é, construída deliberadamente sem o apoio das estruturas institucionais e, por força da necessidade, sem acordo com a empresa ferroviária Trenitalia, embora o acordo tivesse sido tentado, a fim de garantir o transporte das pessoas à manifestação. Esta impossibilidade, de fato, comprometeu o direito de manifestação, ainda mais numa crise que priva faixas progressivamente maiores da população da possibilidade de gastar 50 ou 100 euros, necessários para usar o transporte coletivo. Além disso, à frente de um dispositivo midiático que modulou a tática do silêncio e a estratégia da criminalização, esses números significam que o medo foi vencido. Ou seja, talvez, o medo é de tal maneira ligado à violência crescente cotidiana da crise e do empobrecimento que, assim, perdeu qualquer efeito como espantalho ocasional. De um modo ou de outro, as vantagens da normalidade valem menos.

Em segundo lugar, valem fazer algumas considerações sobre a composição da marcha. Aqui, provavelmente (mais ainda por causa dos números e por sua natureza explicitamente auto-organizada), é preciso medir a distância, que ousaremos definir irredutível, das tentativas de construir novos agregados de representação de esquerda. Os sujeitos que se reconheceram no espaço do 19-O — com diversas gradações: imigrantes, precários de primeira e segunda geração, classe média rebaixada — não se limitam a falar da crise: vivem-na, sofrem-na e estão fartos de pagá-la, independentemente de Berlusconi e alternâncias de governo. São indiferentes à constituição, pelo simples motivo que, do pacto social que a garantia, nunca gozaram qualquer benefício e, portanto, tampouco nenhuma lembrança ou narrativa. Quem se obstina em falar de modelos que decalcam aquele das “duas sociedades” já não tinha entendido nada na origem desse processo, imagine agora. Esta é a sociedade do trabalho cognitivo e móvel na crise. Portanto, a radicalidade multiforme que, em certas situações, exprime, deve ser lida em termos materialistas e não ideológicos: assim, tem a ver com as condições sociais e os comportamentos subjetivos (definidos “impolíticos” por quem confunde a política com a representação), antes ainda do que com as práticas escolhidas pelos componentes organizados. De resto, o plano simbólico que caracterizou muitas práticas de movimento a partir do fim dos anos 90 se esgotou, exatamente porque a precariedade da vida não tem nada mais de simbólico.

Esses sujeitos, em terceiro lugar, encarnam temas que — mesmo de modo embrionário e de maneira ainda incompleta — podemos chamar de “programa”. A moradia, com ocupações que estão se difundindo sem precedentes; também a sua densa expressão romana, onde sem dúvida existe uma tradição enraizada, apresenta elementos e características novas, a partir do protagonismo dos imigrantes. A renda, sempre mais encarnada em práticas concretas e tornada senso comum não apenas dos movimentos, mas dessa composição na crise (somente os sindicalizados e a esquerda continuam a não perceber ou quase). O “direito à cidade” começa a tomar forma nas lutas pela apropriação do espaço urbano (também os movimentos “territoriais” agem plenamente nessa dimensão). O protagonismo dos imigrantes, ademais, não é mais redutível às questões da cidadania e dos direitos: estão inteiramente presentes nas lutas pelo trabalho, pela habitação e pela reapropriação de faixas de renda. Limitar-se às “cores” da manifestação faz parte de uma enganadora retórica multicultural, enquanto insistir sobre o caráter separado delas, ou de irrecomponível heterogeneidade, a respeito da composição de classe como um todo, corre o risco de deixar de lado os elementos de comum objetivo e subjetivo.

Last but not least, o 19-O não foi uma data apenas italiana: em Lisboa, uma imponente manifestação bloqueou o porto, em Madrid uma assembleia compartilhada preencheu Puerta del Sol, e também iniciativas sobretudo pela moradia em outras cidades europeias. Que a luta contra a austeridade e a ação política em geral não podem ser senão transnacionais, é além disso um dado de fato há tempos conquistado. Como colocá-lo em prática, é um nó a desatar. Partir das lutas no espaço mediterrâneo parece ser alguma coisa além do que sugestão: é uma hipótese a percorrer para rasgar o discurso sobre a Europa feito por uma ideologia ou pela repetição de fórmulas inatuais. Com certeza, o 19-O nos confirma que tem razão Christian Marazzi, ao sustentar que numa situação historicamente diferenciada devemos reconhecer e agitar os elementos comuns, a partir das condições de vida.

É suficiente o 19-O? Obviamente, não. Por um lado, porque não podemos nos contentar com uma manifestação outonal, naquele esquema de estações quentes e frias, que trazemos desde os ciclos de lutas operárias. A capacidade por parte de sujeitos sociais protagonistas em Roma em determinar uma própria temporalidade deve ir além do 19, se isto quer ser não somente um evento, como também um processo. Por outro lado, nas semanas de preparação das manifestações aconteceram várias iniciativas difusas, e não somente militantes, que pelo menos em parte prefiguraram aquilo que depois se expressou nas ruas de Roma. São pequenos sinais, mas relevantes, a interpretar e cultivar.

Faz algum tempo que, colocando o problema da falta de um equivalente ao “Occupy” na Itália (com exceção da luta de Val di Susa), falávamos de “tampas” que impediam o transbordamento. Dizer que as tampas agora finalmente saltaram seria apressado. Parece-nos, contudo, que algumas delas — por exemplo, aquelas da governança dentro e fora do movimento — estão cedendo. Talvez, é também disto que se deram conta os jornais reacionários que, no dia seguinte ao 19, falaram — um pouco rancorosos e um pouco amedrontados — sobre a “escória da Porta Pia”. Como Sarkozy, em 2005, quando definiu “ralé” os moradores da periferia, isto que buscam exorcizar é uma verdade simples: a “escória de Porta Pia” é hoje a condição comum da composição diversificada do trabalho vivo contemporâneo, precarizado e empobrecido, que assediou os poderes públicos romanos. É exatamente esta que, bem além do 19, pode ou talvez devemos dizer que já começou a sublevar-se.

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Tradutores: Bruno Cava e Talita Tibola.

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