por Claudia Wer* (imagem Bia Quadros)
Dor, lágrimas, indignação e resistência. Ainda sob o choque da cruel execução de Marielle Franco, que provoca uma avalanche de diferentes narrativas que tendem a posicionar este crime no contexto da escalada da violência na capital carioca, tem relevância ressaltar que este crime não pode ser excluído da cena da recente intervenção militar, que beira completar dois meses de implementação no Estado do Rio de Janeiro. Ganha, então, importância ampliar a reflexão sobre o contexto da pessoa, da história e das lutas de Marielle, com essa abrangência é possivel compreender elementos que, conjugados, envolvem este assassinato, como também o genocídio das populações preta e pobre do país, evidenciando que há uma concretude outra, uma factualidade diversa, que merece ser esclarecida a fim de que a sociedade tenha consciência da complexidade envolvida nessa violência para além da aparência imediata e do jogo midiático que envolve a questão da segurança no Rio de Janeiro e em outros Estados da Federação.
Primeiro Tiro – O Atentado Político
Marielle Franco tem alta representatividade que ultrapassa a quantidade expressiva dos votos que teve na última eleição, ela representa a mulher negra, a mulher, o pobre, o negro, a comunidade LGBT, os favelados, muitos jovens e sobretudo, uma nova forma de fazer política em profunda sintonia entre vida – discurso – ação. Por isso Marielle foi executada, e este crime diz muito sobre a manutenção de grupos oligárquicos no país, uma elite que mantém as Instituições como elas são e que não querem que pessoas pobres e representantes de minorias cheguem ao poder e ainda mais, pretendem silenciar os movimentos sociais. Por representar e agir tanto por e para quem ela representava é que surge a onda de um segundo atentado, tão vil quanto o ato primeiro, que mira na desqualificação da história e da luta de Marielle, pior ainda é a tentativa de justificar, por seu assassinato, a intervenção militar, cuja implementação e primeiras ações já tinham sido alvo de denúncias da vereadora. Esse assassinato é mais uma tentativa de calar as minorias atacando alguém que os represente com maior visibilidade, adicionalmente, supor que a vítima é a causa da violência pelo fato de que ela defendia pessoas marginalizadas socialmente é mais uma crueldade que reafirma a emergência das pautas por justiça social no país.Todos os que buscam difamar Marielle e sua história, produzem e ratificam este atentado. Vivemos em uma sociedade conservadora, em dias de tensão agravada por um ambiente político conservador, que amplia a oportunidade de afrontas e ataques aos Direitos Humanos e seus representantes e ainda, promove ambiente permeável para que violações e violências encontrem aprovação.O brutal assassinato de Marielle precisa ser investigado em profundidade, um crime que acontece na vigência de uma Intervenção Federal em parceria com um estado gerido por um governador espectral também afiliado à um partido mergulhado em crimes e denúncias de corrupção. Uma vereadora em mandato público coroado por votação expressiva, que sai de um encontro afirmativo da mulher negra e tem sua trajetória interrompida; e assim também tentam interromper o avanço das pautas das mulheres, das mulheres lésbicas, das mulheres negras, das mulheres trans, dos gays e dos Direitos Humanos. Marielle foi executada em uma emboscada muito bem planejada. Todos os indícios evidenciam que os mandantes do crime tem motivação plena e que os executores tem precisão de operação, realizando um ato exato, de difícil rastreabilidade, com ataque que desconfigura face e a cabeça que pensa, que remete à desconfiguração da identidade primeira de um ser humano. Trata-se de um atentado que objetivou quebrar o espelhamento de tantos que tinham nela uma fonte de inspiração e derrubar uma referência. Uma execução para além de matar, uma tentativa de apagamento e de aniquilação que sequer merece ameaça anunciada, fazendo do crime uma morte banal, porque um negro pode ser execrável, o corpo negro não é foco de lamentações como é um corpo branco na perspectiva escravagista que tem espaço nas mentes obtusas. O ardil contudo, já mostra efeito inverso, o legado de Marielle é consistente e muitos outros continuarão sua luta. Cabe lembrar que Marielle não se propôs mártir, seu engajamento sempre foi pela vida, ela não escolheu morrer para ser eternizada. Esta execução é um atentado contra a democracia no Brasil e é imperativo que seja esclarecido não apenas sob a ótica do descontrole da segurança no Rio de Janeiro.
Segundo Tiro – O braço armado do Estado
O mais óbvio de todos, Marielle foi executada com participação direta ou indireta de policiais, o curso das investigações segue esse sentido também, e o risco adicional é que essa seja a opção tomada como versão oficial isolada, definitiva ou até mesmo inconclusa tamanho o refinamento da execução, da dificuldade de pistas e provas e de manipulação de informações da investigação. A PM do Rio é a mais corrupta do país, está no topo do ranking da extorsão e da mortes de civis. Boa parte da população carioca, a que vive nas comunidades, é achacada por milicianos – a força paralela e oficiosa da PM, que tem estreita ligação com o crime organizado formando um espécime de Narco-Estado, e esse quadro vem de longe. Seria uma análise rasa afirmar que a polícia é um reflexo da sociedade. A Polícia que temos hoje foi formatada na ditadura e dela herdou uma tácita licença para “justiçamentos” que se perpetua e ainda, justifica suas ações arbitrárias. Em vários momentos após a ditadura, o Rio de Janeiro teve grupos de extermínio, alguns deles bem famosos e aclamados por grupos mais conservadores e parte da população, como os “Homens de Ouro” e o “Esquadrão Le Cocq” que inspiraram e abriram brechas para policiais justiceiros e para a formação das milícias, as organizações paramilitares que se impõem e oferecem “serviços” e “segurança” sob coação em vários territórios da cidade. A ação desse conjunto armado de policiais, especialmente no subúrbio e em comunidades, já fez muitas vítimas. Nessas ações reverberam nossas heranças patriarcal e escravocrata. Esse caldo cria a polícia que mais mata no mundo, e a população pobre e preta, que mesmo branca, como diz o compositor, de tão pobre é quase toda preta, sempre foi alvo primaz, reforçando um histórico de preconceito, discriminação e intolerância. Esta polícia também é a que mais morre, vale dizer que morre principalmente, o policial “linha de frente” que também vem de camadas pobres e age corporativamente. A luta de Marielle era para interromper um ciclo de mortes desnecessárias que ganha força sob o braço armado do Estado. A vereadora acreditava que a polícia pode ser diferente e que existem policiais profissionais de fato, sem condições de fazer frente à um grupo coeso e criminoso dentro da Corporação, que ligado aos grandes interesses tem lucrado muito com a manutenção do crime organizado no Rio de Janeiro.
Sempre para compor um tipo de espetáculo político, várias ações de melhorias de segurança pública já foram implementadas na cidade nos últimos anos, sem qualquer resultado efetivo para diminuição da violência. Nunca houve coragem para mexer em questões estruturais que envolvem a segurança. O estado é genocida e mantém os cidadãos sob medo e controle com seu braço armado que reforça progressivamente a bandeira da violência afetando todos cidadãos e principalmente, os pobres.
Em um país que nunca ampliou medidas efetivas para minimizar a enorme desigualdade social e a fim de manter a favela sob maior controle, as ações militares são frequentes em comunidades, mesmo antes da atual intervenção militar. Marielle viveu e sabia bem dessa realidade, como cria da favela ela viveu a experiência do que é ser negro em uma comunidade nesta cidade, sua militância em Direitos Humanos e na defesa de minorias reflete as experiências que ela viveu na sua pele negra-mulher batalhando por seu lugar no mundo. Sua ação, postura e liderança como vereadora e como relatora da comissão parlamentar na Comissão de Direitos Humanos para a Intervenção Militar na cidade, brutalmente interrompidas, evidenciam que sua militância desagradava essa elite burguesa e o grupo que comanda o crime organizado operante no Rio de Janeiro, notadamente amalgamado ao Estado.
Terceiro Tiro – O Racismo
A escravidão no Brasil se perpetuou com outros requintes após a abolição, mesmo idos quase 130 anos. A realidade da desigualdade gera risco de vida muito maior para pretos e pretas. O Brasil tem um racismo eugenista, construído social e culturalmente, que precisa ser reparado como pauta emergencial para promover igualdade avanço democrático.
Nessa realidade de desigualdades o racismo está engendrado de forma estrutural na nossa sociedade, que associa ao negro tudo o que é negativo. As consequências práticas e cotidianas do racismo são cruéis. Os jovens negros brasileiros são as maiores vítimas de ações abusivas das forças policiais que de maneira seletiva, prendem, fazem buscas pessoais e operam de forma desproporcional. O tratamento desigual atinge outras Instituições, dificultando o acesso dos negros a direitos e oportunidades em áreas essenciais, como saúde e educação que cada vez mais são precarizados. Adicionalmente, na estagnação ou mesmo retrocesso dos indicadores sociais do país, o impacto sobre as periferias é enorme, não por acaso a tentativa de controle é maior nesses territórios, em nome de uma segurança que favoreça e proteja o patrimônio dos brancos e ricos. A pacificação é um projeto de guerra e massacre. Nenhum governo priorizou a mitigação da ferida social que foi gerada no passado da escravidão, que avança contra os pobres e que agora alcança os direitos sociais e trabalhistas duramente conquistados. Essa chaga é um grande empecilho para democratização do país. O racismo é reforçado por um poder hegemônico branco e heteronormativo que sutilmente conjuga códigos culturais, de linguagem e de narrativas diversas que focam na desqualificação dos negros e na massacrante objetificação das negras. Se a população negra continua sendo uma dor de cabeça para a elite do país, imaginem o que significa ter em um parlamento a presença de uma mulher negra? Marielle é uma referência da extrema resistência dos negros frente ao conjunto de ações históricas que foram impetradas para o extermínio dessa população. Os pretos estão vivos apesar de todas as tentativas de extermínio, vivos e cada vez mais fortes, e agora também fortalecidos pelo legado de Marielle.
Quarto Tiro – O Machismo
O Brasil é um país machista e misógino. Os recentes indicadores da Organização Mundial da Saúde mostram que é o sétimo país mais violento do mundo para as mulheres. Em média, doze mulheres são assassinadas por dia no país e no Rio de Janeiro são treze estupros por dia. A dificuldade da vida das mulheres é aumentada pela precarização dos serviços e atendimento públicos, os números de violência obstétrica e de danos e mortes por interrupção de gravidez são alarmantes, também são altos os números da violência doméstica e do lesbocídio, enfim, todos esses índices escancaram uma realidade absurda e inaceitável, que faz com que o Brasil seja realmente um país muito perigoso para a mulher, especialmente para a mulher pobre, realidade esta que Marielle se dedicava para transformar. Cabe ressaltar aqui a luta das mulheres lésbicas, frequentemente tidas como desprezíveis dentro da sociedade patriarcal justamente porque se opõem frontalmente ao padrão heteronormativo e desafiam um papel imposto às mulheres como servis e reprodutoras, por isso as lésbicas estão mais expostas aos discursos de ódio e de violências corretivas, como o estupro e o assassinato. Não fosse suficiente esse quadro, o trabalho da mulher é desqualificado. A mulher ganha menos que os homens na mesma função. As profissões eminentemente femininas são desmerecidas e mal remuneradas. A mulher tem mais dificuldade de ter visibilidade em qualquer área de atuação. Nas dobras das camadas das desigualdades no país é preciso destacar a luta das mulheres por equidade, e ainda mais, das mulheres negras. Houve um projeto de estigmatização e anulação da mulher negra como SER, física e emocionalmente. Uma batalha maior para escapar da objetificação, da invisibilidade para a maior resistência, que traduz a força de todas as negras que fortalecem as suas comunidades, que se desdobram em apoio mútuo e que conquistam crescente espaço. As negras tem provocado mudança, mesmo lhes sendo mais frequentemente negado destaque em funções de decisão. Marielle é mulher no poder. Mulher e negra. Mulher, negra e lésbica. Mulher, negra, lésbica e linda (predicado que vale destacar, porque muitos ainda julgam incongruente uma mulher ser linda e inteligente). Mulher, negra, lésbica, linda e inteligente! Os “reaças” piram! Mais “Marielles” surgem e estão cada vez mais fortes, essas mulheres não estão à serviço dos brancos ou dos donos do poder. O machismo vai ruir por força e ação, principalmente, da mulher negra. O país precisa de mais mulheres nos lugares de decisão e que trabalhem pela vida e valorização da vida das mulheres em sintonia das diversidades que congregam as lutas das mulheres hoje, são as minorias querendo seu lugar de direito em todos os espaços. A coragem de Marielle de se construir a mulher que se tornou, de fazer uma política com visão crítica e inclusiva, de enfrentar este sistema e de não aceitar o que é posto como regra é inspiradora e transformadora. A sociedade reconhece a sua força em superar as dificuldades todas e em questionar firmemente esse quadro de desigualdades, não só para si, mas entendendo o conjunto social. Tanta atitude é uma afronta para aqueles que não que não aceitam que as coisas já estão mudando, para a elite retrógrada e para os reacionários. Marielle representa muito da mudança que queremos ver no mundo. Bertrand Russel disse que “Um dos paradoxos dolorosos do nosso tempo reside no fato de serem os estúpidos os que tem a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões”. Marielle foi uma mulher que teve a coragem de sair da dúvida, de não ficar quieta com suas certezas e partiu para ação e enfrentamento do excesso de confiança da estupidez e das certezas instituídas e normalizadas. Sim, é impossível não se identificar em algumas das lutas de Marielle e não admirar essa mulher. Ao mesmo tempo, é importante reforçar que quem sintoniza com as narrativas que antagonizam a ampliação dos direitos das minorias e dos Direitos Humanos também “puxa o gatilho” para muitas execuções e opressões.
O golpe real é o que tira as vidas e as oportunidades das pessoas. A luta precisa avançar, é importante unir esforços para mais conquistas e desenvolvimento de novas lideranças e novas vozes que tragam esperança e dedicação para reanimar a tão frágil democracia brasileira.
A execução de Marielle, uma mulher negra, favelada e ativista é sobretudo política.
A execução de Marielle é inaceitável.
O genocídio é inaceitável.
#Mariellepresente!
*Claudia Wer é ativista feminista, atriz e produtora, especializanda em Direitos Humanos, Saúde e Sexualidade pela ENSP/FIOCRUZ.