Quadrado dos Loucos

Recife, 1938

Bruno Cava

A seleção tinha acabado de ganhar da Polônia e da Tchecoeslováquia e avançava para as semifinais da primeira Copa da França, quando saiu este artigo de Gilberto Freyre no Diário Pernambucano. Estão aí, de maneira ultraconcentrada e canônica, todos os lugares comuns de hoje relativos à diferença entre o futebol brasileiro — troceiro, gingado, disforme, dionisíaco — e o futebol europeu — rígido, organizado, métrico, apolíneo.

Freyre atribui o êxito inédito, até aquele momento, da equipe estrelada pelo inventor da bicicleta Leônidas da Silva (o Homem Borracha, pelo contorcionismo) e por Domingos da Guia, à mestiçagem, ao caráter sincrético da capoeira, do samba e do improviso mágico (“que encantava os europeus”). Copa do Mundo é geopolítica e Freyre via na mestiçagem o fato positivo e decisivo para a inserção do Brasil no concerto das nações modernas.

As teses freirianas em textos avulsos como este e em seus livros muito conhecidos, como se sabe, foram largamente criticadas como vigas-mestras do mito da democracia racial. Sua visão prospectiva da mestiçagem aparava as arestas das contradições e mergulhava no banho morno da harmonia todo o rol de atritos, antagonismos e violências sublimadas. O mito da democracia racial repercutia destarte numa ideologia futebolística característica do Brasil miscigenado, o país do futebol, cujas vitórias congregavam as classes e raças em festividade acrítica da diversidade.

Sem negar a vasta e consolidada recepção crítica dessa obra aberta, é possível depreender em Freyre um campo estratégico de problematizações e tensões teórico-políticas. Se hoje os esquemas binários, tal como futebol brasileiro x europeu, viraram clichês, de uso corrente no comentário jornalístico; na década de 1930, eles se inscreviam no pano de fundo de conflitos que atravessavam um momento crucial para o Brasil e o mundo às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Em primeiro lugar, Freyre se contrapunha à assustadora ascensão de apologias intelectuais e pseudo-científicas da pureza e da eugenia, com a fortuna crítica das teorias de Arthur de Gobineau, da Frenologia ou, no Brasil, de Renato Kehl.

Em segundo lugar, é verdade que a ditadura do Estado Novo buscava consolidar a formação de um povo nacional, por meio da superação dos antigos preconceitos sobre a indolência, a pasmaceira e a inferioridade do ‘melting pot’ de raças; porém, os principais elementos da ideologia oficial do período Vargas eram: a) o elogio ao trabalho; e b) a sociedade organizada em torno do trabalho.

No compasso da emergência das camadas médias urbanas e do operariado sindicalizado, o Estado Novo tinha por horizonte a sociedade fordista europeia, ou seja, a mobilização da população para desenvolver suas forças produtivas, crescer suas potências e assim extrair-lhe os produtos do trabalho.

Daí Gilberto Freyre, que nos ensaios sobre futebol falava em esporte popular nutrido pela “molecagem baiana, a malandragem carioca e a capoeiragem pernambucana”, não estava nem um pouco alinhado aos propósitos modernizadores da Constituição varguista de 1937. Enquanto Freyre celebrava a qualidade “irracional” do futebolista brasileiro, afeto ao improviso e à criatividade como no samba ou jazz; o Estado Novo certamente preferia a ação racional e ordenada a qualquer índicio de balbúrdia.

Derrotada a Seleção de 1938 pela Squadra Azzurra naquela controversa semifinal, por 2 x 1, não faltou na imprensa brasileira quem passasse a denunciar a natureza irresponsável, festiva, moleque demais, tendo sido superada pela disciplina tática, a vontade de vencer e o compromisso com a nação dos futebolistas italianos liderados pelo técnico Vittorio Pozzo — que (sendo generoso) não era fascista ele próprio, mas serviu alegremente à propaganda de Mussolini ao redor do bicampeonato, em 1934 e 38. Naquelas Copas, a Nazionale inclusive fazia a saudação do Império Romano antes dos jogos, durante o hino.

Em terceiro lugar, parte da crítica marxista contra Freyre, sobretudo aquela paulista ou paulistana, o critica pelas razões erradas, desconsiderando o que se poderia reaproveitar. Esse filão crítico parte da premissa que, em alguma dimensão, os textos de Freyre ressoariam a atmosfera existencial das elites nordestinas, que seriam atrasadas, ainda nostálgicas de um mítico e açucarado passado colonial (o “happy valley” à brasileira). Nessa ótica, isto seria ainda pior do que a ideologia da modernização conservadora das elites industriais urbanas de São Paulo, que ao menos preparavam a corda em que seriam enforcadas, ao cevar as condições históricas para a formação do proletariado, um dos requisitos — segundo as interpretações etapistas do materialismo dialético — da futura revolução socialista.

Tudo somado, reler Freyre, com todos os considerandos e cautelas, é uma experiência revigorante que dá acesso a uma riqueza inesgotável de aforismas, pensatas e sacadas. Por exemplo, no prefácio que escreveu ao livro de Mário Filho, “O negro no futebol brasileiro” (1947), Freyre comenta sobre a singularidade do zagueiro Domingos da Guia, que jogou pelo Bangu, Flamengo e Corinthians e em mais de trinta partidas pela seleção brasileira, entre 1931 e 1946.

Para Freyre, Domingos nos gramados apresentava um estilo álgido, era apolíneo, até clássico, sem as firulas, sem os floreios barrocos que caracterizavam a maioria dos jogadores pátrios. Por isso, Freyre o chamava de Machado de Assis do futebol brasileiro, um “inglês dos trópicos”: embora não parecesse à primeira vista, o futebol de Domingos era sim brasileiro e muito, justo por amalgamar as origens bretãs do esporte com a realidade tropical, logo devoradora, da mestiçagem.

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