Comum Democracia

Resistência com R minúsculo: contracartografias do possível no Oeste do Mato Grosso

Priscila Pedrosa Prisco

Tenho pensado, desde minha experiência no Mato Grosso, sobre a Resistência com R minúsculo e as contracartografias do possível neste Estado.

Onde podemos encontrar resistência ao capitalismo em um lugar que parece completamente apático com relação às lutas anticapitalistas?

Aqui na fronteira com a Bolívia, a resistência não se apresenta em marchas ou ocupações amplamente visibilizadas. Ela pulsa em silêncio, atravessando os campos, os corpos e os quintais como um murmúrio persistente.

Não é uma resistência de vitórias declaradas, mas de recusas miúdas, de gestos de contenção. Não se ergue com bandeiras vermelhas, mas se insinua nas frestas, na roça que insiste em ser diversa, na sombra guardada por uma árvore que ainda não virou lote, no saber que escapa à cartilha do agronegócio.

Permanecer na terra, num território cada vez mais convertido em portfólio, é já uma forma de insurgência. Muitos pequenos produtores da região de Pontes e Lacerda resistem à tentação da venda, mesmo sob endividamento. Rejeitam o arrendamento, plantam com sementes guardadas, criam com o que resta, afirmam o viver como insistência.

Essa permanência não é conservadora, é radical, porque desafia a lógica da expulsão contínua imposta pela financeirização da terra.

Há também redes informais como trocas entre vizinhos, articulações entre assentados, saberes entre mulheres que constituem zonas de solidariedade e fuga.

A agroecologia ainda sobrevive, mesmo sitiada, como prática ancestral e como contra-modelo. Cooperativas de produção familiar, hortas escolares, quintais medicinais: não são alternativas “viáveis” nos termos do mercado, mas são territórios de autonomia.

As comunidades quilombolas e tradicionais, especialmente em Vila Bela da Santíssima Trindade representam outro núcleo de resistência concreta. Suas lutas pela titulação territorial não apenas questionam a estrutura fundiária, como também denunciam a falácia do “vazio demográfico” que sustentou a colonização interna da região. Essas comunidades mantêm formas de viver, rezar e de produzir que desafiam a lógica do monocultivo e da mercantilização da terra.

Há a resistência que brota na sala de aula. A universidade pública no caso, a UNEMAT que é uma trincheira epistêmica. Quando um estudante, vindo do campo, questiona por que sua família tem terra, mas não tem segurança alimentar, ali começa uma rachadura na hegemonia do discurso do progresso. A reflexão é também insurgência. A palavra é também faca.

A resistência mais complexa, no entanto, talvez seja a que habita a contradição, como o garimpeiro que denuncia o monopólio das mineradoras mesmo enquanto garimpa.

O pequeno sojicultor que se sente usado pelas tradings. O morador urbano que vê o preço da comida subir enquanto o município bate recorde de exportação.

São essas subjetividades ambíguas, instáveis, não enquadráveis, que anunciam a possibilidade de ruptura. Porque onde há contradição, há tensão. E onde há tensão, há luta.

No oeste do Mato Grosso, a resistência é com R minúsculo e é nessa sutileza que germina o possível. A contracartografia do futuro começa aqui: onde ainda há sombra, onde ainda há floresta, onde ainda há gesto não capturado.

 

Sobre a autora: Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF e professora na UNEMAT, Pontes e Lacerda.

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