Por Hugo Albuquerque
“Algo há de sobrar para o investimento no welfare, tão old-fashioned, idealizado pela esquerda de estado, mas estaremos mais distantes de qualquer deliberação sobre os negócios do petróleo — inclusive sobre seus usos e desusos como matriz energética, em tempos de esgotamento ambiental”
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O leilão do campo petrolífero de Libra, ironicamente no último dia do signo zodiacal homônimo, realizado pelo governo de Dilma Rousseff, acirrou o debate político brasileiro. Situada na Bacia de Santos, Libra é considerada a estrela da grande reserva petrolífera do Pré-Sal e sua concessão valeu centenas de bilhões, tendo sido arrematada em lance único por um consórcio encabeçado pela Petrobrás, e mais alguns tubarões dos negócios petrolíferos — inclusas aí duas estatais chinesas, cujo simbolismo de sua chegada vai além da geopolítica, além da própria Shell, outrora concessionária do campo de Libra, tendo abandonado há poucos anos sob a alegação de que não havia petróleo por lá.
A exemplo dos velhos leilões de FHC, uma série de ações judiciais choveu contra o processo licitatório e manifestações, turbinadas pela onda atual, se impuseram — tudo isso, com direito a um forte esquema de repressão montado pelas Forças Armadas em pessoa. Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobrás à época da descoberta do Pré-Sal, se opôs ao leilão. Ildo Sauer, ex-diretor da supracitada petrolífera, foi além e bancou uma ação popular contra o processo — sob a alegação de que o governo brasileiro perderá centenas de bilhões de dólares ao não realizar, por conta própria, a exploração.
A presidenta Dilma, por seu turno, comemorou aquilo que julga um sucesso — e alega não se tratar de privatização. O “mercado”, no seu cantinho, resmungou dizendo que o resultado ficou “aquém” para conseguir, como se viu rapidamente, um novo mecanismo de reajuste dos preços de combustíveis — o que facilitará aumentos, que possivelmente teriam seu impacto sobre o consumo reduzidos por subsídios estatais, isto é, o uso de dinheiro público para manter o preço praticado abaixo do preço formal, às custas de um “bolsa investidor”, que nos “salvaria” de um surto hiperinflacionário decorrente do reajuste da gasolina e do diesel nas bombas dos postos.
Há certos binarismos recorrentes na análise da questão: estatismo x mercadismo, globalismo x nacionalismo, os quais, a rigor não interessam verdadeiramente a ninguém, salvo aos interessados de sempre. É preciso pensar além da cortina de fumaça. Antes de mais nada, a resposta para a sua pergunta é sim: apesar da declaração em rede nacional em sentido contrário, Dilma de fato promoveu uma privatização. O que não é novidade nenhuma em seu governo, basta lembrar dos leilões dos aeroportos, em relação aos quais as esquerdas fizeram vista grossa ou pouco barulho. Mas privatização vai muito além da conversa mole de defesa do capital estatal ou nacional.
Que significa, afinal de contas, privatizar algo? É, certamente, bem mais do que transformar algo em “atividade econômica”, vender patrimônio “público” (estatal, a bem da verdade): trata-se de retirar um bem comum da esfera coletiva de deliberação para inseri-lo em um regime despótico, isto é, em um sistema de regras e princípios no qual uma lógica transcendental determina o que será usado e desusado, por quem e como. De certa forma, o funcionamento de nossas velhas empresas estatais, já era uma forma de privatização (ao menos, avant la lettre), pois instituia uma forma de produção e circulação alheia às demandas imanentes da coletividade, simplesmente inalcançável pelos reles mortais (isto é, nós).
Como lembramos, invocando Agamben, em outra ocasião, o nascedouro da ordem privada é do mundo antigo, quando a casa (a oikia de “economia”) era o local por excelência da produção, na qual um dono (de dominus, ou despotes na heláde) ordenava servos, escravos e sua própria família de maneira absolutamente vertical. A ordem pública era exterior à Casa na qual ocorria a circulação da produção, os contratos, e na qual os donos, por força das contingências, eram equiparados na forma de “cidadãos”.
O advento do capitalismo marcou uma (con)fusão dos dois espaços na forma da economia política. Mas público e privado sempre marcaram dois fatores dialeticamente interligados. A esfera privada só existe porque a esfera pública lhe autoriza, por meio do estatuto conferido pelo instituto jurídico do domínio, enquanto a esfera pública se realiza por meio da existência fática das entidades privadas. Para lembrar Negri, o que escapa ao público-privado é o comum, isto é, o reconhecimento do contiguidade imanente entre as casas e a cidade, a própria plenitude da vida e do desejo.
Os rearranjos da dialética público-privado que marcam as mudanças no estado brasileiro nas últimas décadas, de capitalismo de estado para capitalismo neoliberal, são facilmente explicáveis: a introjeção da noção atual de democracia na máquina estatal local, por força dos levantes multitudinários brasileiros dos anos 70, trouxe a possibilidade da reivindicação de uso comum das empresas estatais, as quais precisam ser liquidadas para, no âmbito de mercado, estarem apartadas da “política”, ou da política que desinteressa a classe dominante. A defesa de um capital estatal e nacional, atende apenas uma casta de burocratas e/ou uma burguesia nacional. A defesa de um capital privado e internacional, por seu turno, há de favorecer outro tipo de matilha. Mas os oprimidos, em uma situação e na outra, serão sempre os mesmos.
O leilão em questão, é verdade, trouxe dinheiro rápido e fácil para o estado brasileiro, o que servirá para ele financiar, realizando, assim, os ditames de seus credores gerais e, sobretudo, para satisfazer a particular estirpe dos especuladores da Petrobrás. Em uma política de boa vizinhança, o desejo dos acionistas de receber mais pelo combustível será realizado, enquanto preços se manterão estáveis para os reles mortais graças ao emprego de uma ainda desconhecida quantia de dinheiro público recompando o valor extra.
Algo há de sobrar para o investimento no welfare, tão old-fashioned, idealizado pela esquerda de estado, mas estaremos mais distantes de qualquer deliberação sobre os negócios do petróleo — inclusive sobre seus usos e desusos como matriz energética, em tempos de esgotamento ambiental: a pretensa construção do bem-estar social às custas, ironicamente, de uma fonte de energia suja terá, no entanto, caminhos mais tortuosos do que se supunha, uma vez que o emprego de seus recursos econômicos nos serviços públicos será, pelo visto, mitigada. Por outro lado, a direita partidária talvez deseje até menos do que isso, inclusive porque o discurso ambiental só entra em seu léxico à Bardot, isto é, como uma construção esotérica na qual da defesa de ursos polares chegamos à suspensão dos direitos humanos dos muçulmanos globais.
O custo maior do leilão de Libra, no entanto, ficará por conta do impacto simbólico-político, tão incontornável e insustentável que mais parece uma tentativa deliberada de aprofundar esta crise que já chega às raias da loucura. A imagem de um grande consenso político, de uma enorme centro-direita indiferente, garantida à base da baioneta, edifica-se como a realidade desesperadora de uma geração inteira de jovens. Indigno e desnecessário para uma presidenta que, em seus melhores anos, sofreu o que sofreu na pele.