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Sobre fascismos e fanatismos

Por Adriano Pìlatti

Talvez mais do que qualquer outro, o Brasil é o país em que o ladrão grita “pega ladrão!”, o corrupto esbraveja contra a corrupção, o indigno clama por dignidade, o fofoqueiro reclama da fofoca, o “fascista” acusa o outro (é sempre o outro…) de “fascismo”.

Desde que a multidão constituinte se alevantou em junho, a reivindicação de democracia direta, a crítica e a rejeição ao lamentável quadro representativo-partidário “nacional”, à representação fake e à mercantilização partidária (reivindicação, crítica e rejeição fortemente justificadas pelos fatos) têm sido acusadas de “fascistas” e tendentes a destruir a democracia representativa e a liberdade partidária.

E a acusação provém de uma incrível “santa aliança” que une governistas, o chamado “PIG” (Partido da Imprensa Golpista) e seus bonecos de ventríloquo, além de acadêmicos “de esquerda” que se pouparam de ir às ruas e acompanharam as manifestações exclusivamente pela mídia que tanto criticam.

Em seu vadio comodismo intelectual, esses oráculos de gabinete não se deram nem ao trabalho de acessar os múltiplos streamings das mídias livres, preferindo ficar com as versõe$ da Globonews mesmo, classificando de “fascismo” tudo aquilo que não conseguiram compreender – “é que Narciso acha feio o que não é espelho”, já dizia “um antigo compositor baiano”…

Neste 2014, com a retomada das manifestações, esse mi mi mi decadente deve se agravar, então vale a pena recordar algumas coisas simples.

“Fascismo”, originalmente, é fenômeno de Estado, manipulação das “massas” feita “de cima para baixo”, garantia de algum bem estar material, combinado com violenta repressão e total silenciamento de qualquer ator individual ou coletivo autônomo, para garantir a sobrevivência do capitalismo em situações pré-revolucionárias. Nada a ver, portanto, com movimentos multitudinários anticapitalistas que buscam, “de baixo pra cima”, outras formas políticas para além do Estado…

Entre nós, o termo tem sido usado genericamente como sinônimo de qualquer autoritarismo. Nesse sentido, nada mais “fascista” do que o sofisma “se você luta por mais democracia direta, então você quer a destruição da democracia representativa”. Falso: o que se quer é mais participação popular; é acabar, sim, com o falseamento da representação pela influência do dinheiro, que ameaça converter a democracia em plutocracia; é a realização da democracia participativa prevista na Constituição.

Parafraseando Vandré quando disse, nos idos de 1968, que a vida não se resumia a festivais, é possível dizer que, para o(a)s menino(a)s nas ruas e para muito(a)s de nós, a democracia não se resume a eleições.

De todo modo, não é inútil lembrar a anedota italiana: à mesa do almoço, o filho pergunta “papai, o que é fascismo?” e este responde “coma e fique quieto!”. É a postura atual de muitos governistas quando acham que a satisfação – mínima – de algumas necessidades vitais impõe aos “de baixo” os “deveres” de desistir de lutar por mais direitos, de aplaudir incondicionalmente o governo, de silenciar ante a bacanal de patifarias e cumplicidades que unem Estado & Capital. Tudo isso em nome de um “realismo” que se tornou o pseudônimo do mais rasteiro e indiferente cinismo.

Para a decepção dos tolinhos fanatizados pelos slogans dos marqueteiros governistas, isso não vai acontecer. Não adianta tentar reencarnar “Regina Duarte” com a baboseira do medo do “retrocesso”: o retrocesso liberticida hoje tem lastimavelmente o próprio governo como um de seus agentes, e só será evitado avançando, aprofundando a democracia. Desafiando a pusilanimidade oficialista, as galeras intrépidas estão a demonstrar isto, arriscando a pele, desde junho.

A multidão das singularidades vai prosseguir na constituição do comum a partir da multiplicidade e através da participação direta. Nas ruas e em todos os espaços que liberar para a afirmação da potência de seus corpos e mentes indomáveis. A composição e a recomposição, em ato, da força multitudinária vai prosseguir nos bons encontros que estão a reinventar a democracia entre nós. Não vai parar.

 

Adriano Pilatti é professor da PUC-RJ e participa da rede UniNômade.

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