Slavoj Zizek | Project Syndicate, 11.07.2022 |
Trad. Coletivo UniNômade
No final do filme de David Fincher de 1999, Clube da Luta, o narrador sem nome (interpretado por Edward Norton) se despede de seu alter ego, Tyler Durden (Brad Pitt) e então assiste aos prédios ao redor explodirem em chamas, cumprindo o desejo dele e do alter ego de destruir a civilização moderna. Mas, na versão chinesa lançada no começo deste ano, o final do filme foi substituído, passando a terminar com uma legenda explicativa: “A polícia rapidamente desvendou o plano inteiro e prendeu os criminosos, conseguindo prevenir as bombas de explodirem. Depois do julgamento, Tyler foi enviado a um asilo de loucos para receber tratamento psicológico. Ele foi liberado do hospital em 2012”.
Por que as autoridades chinesas mudaram o fim de um filme altamente crítico da sociedade liberal ocidental, desqualificando o posicionamento político crítico como se fosse uma expressão de loucura? A razão é simples: para os líderes chineses, defender o poder estabelecido é mais importante do que promover uma agenda ideológica.
Lembremos que, em meados de outubro de 2019, como colocado pela CNN, a mídia chinesa lançou uma campanha publicitária afirmando que “manifestações na Europa e na América do Sul são o resultado direto da tolerância do Ocidente em relação ao tumulto em Hong Kong”. A mensagem era que os manifestantes no Chile e na Espanha estavam reagindo aos sinais emitidos pelos manifestantes em Hong Kong. Como costuma ser o caso, o Partido Comunista da China estava discretamente incentivando o senso de solidariedade entre todos os que detêm o poder e encaram populações infelizes ou rebeldes. O PC chinês parecia estar dizendo que, no final das contas, líderes ocidentais e chineses partilham do mesmo interesse básico – que transcende tensões ideológicas e geopolíticas – em preservar o clima de tranquilidade política.
Agora, consideremos os desdobramentos recentes nos Estados Unidos. Em 18 de junho, membros do Partido Republicano na convenção no Texas declararam que o presidente norte-americano eleito Joe Biden “não foi legitimamente eleito”, ecoando declarações similares por outros republicanos pelo país. A rejeição da legitimidade de Biden pelo Partido Republicano significa a rejeição do sistema democrático norte-americano. O partido cada vez mais tem defendido o poder bruto em vez do governo pelo consentimento.
Considere esse fato junto com o cansaço crescente do público com a guerra na Ucrânia, e uma perspectiva sombria se descortina: e se o predecessor de Biden, Donald Trump, vencer as eleições presidenciais de 2024? Além de reprimir o dissenso e a oposição política em casa, ele pode também chegar a um acordo com a Rússia, abandonando os ucranianos do mesmo modo que Trump fez com os curdos na Síria. Afinal, Trump nunca relutou em ser solidário aos autocratas do mundo.
Durante o levante da Maidan em 2014, uma gravação telefônica vazada captou uma funcionária sênior do Departamento de Estado norte-americano, Victoria Nuland, dizendo ao embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia: “Dane-se a União Europeia”. Desde então, o presidente russo Vladimir Putin tem perseguido exatamente esse objetivo, ao apoiar o Brexit, o separatismo na Catalunha e figuras da direita alternativa como Marine Le Pen na França e Matteo Salvini na Itália.
O eixo antieuropeu que une Putin com certas tendências nos Estados Unidos é um dos elementos mais perigosos da política hoje. Se governos africanos, asiáticos e latino-americanos seguirem seus velhos instintos antieuropeus e se inclinarem na direção da Rússia, teremos entrado num triste mundo novo em que aqueles no poder se abraçam uns aos outros em solidariedade cerrada. Nesse mundo, o que aconteceria às vítimas marginalizadas e oprimidas de um poder que não presta contas, que a esquerda tradicionalmente defende?
Tristemente, alguns esquerdistas ocidentais, tais como o cineasta Oliver Stone, há muito vêm papagaiando a alegação do Kremlin de que a Maidan não passou de putsch orquestrado pelos Estados Unidos contra um governo eleito democraticamente. Isso é claramente falso. Os protestos que começaram em 21 de novembro de 2013, na Praça da Independência em Kiev (Maidan Nezalezhnosti), podem ter sido caóticos, podem ter sido protagonizados por uma variedade de tendências políticas e interferência externa; porém, nada disso deixa dúvida que foram uma autêntica revolta popular.
Durante o levante, a Maidan se tornou um enorme acampamento de protestos, ocupado por milhares de manifestantes e protegido por barricadas improvisadas. O acampamento tinha cozinhas, postos de primeiros socorros e instalações de mídia, assim como palcos para falas, palestras, debates e performances. Foi o mais distante de um golpe nazista que se poderia imaginar. De fato, os acontecimentos na Maidan foram consistentes com a Primavera Árabe e levantes semelhantes em Hong Kong, Istambul e Belarus. Enquanto no caso dos protestos na Belarus de 2020-21 eles foram brutalmente reprimidos, os manifestantes da Maidan somente poderiam ser repreendidos por terem sido ingênuos demais em seu pró-europeísmo, ao terem ignorado as divisões e antagonismos que atravessam a Europa hoje.
Diferentemente, o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio norte-americano com toda a certeza não foi uma “Maidan Americana”. Há uma evidência crescente mostrando que o ataque foi largamente orquestrado e premeditado, e que Trump – o homem mais poderoso do país – mais ou menos sabia o que estava sendo preparado para aquele dia. Ainda assim, imediatamente depois da insurreição, antes que todos os detalhes fossem conhecidos, alguns de meus amigos esquerdistas esposaram um sentimento de perda. “As pessoas erradas estão tomando o lugar do poder”, eles lamentavam, “Nós é que deveríamos estar fazendo isso!”.
Vale a pena revisitar o que Putin disse em 21 de fevereiro de 2022. Depois de alegar que a Ucrânia fora criada por Lênin, ele prosseguiu com o comentário de que o “filhote ingrato” dos bolcheviques “derrubaram os monumentos a Lênin” na Ucrânia. E chamam isso de descomunização. Vocês querem descomunização? Muito bem, isto nos atende perfeitamente. Mas por que parar na metade do caminho? Estamos prontos para mostrar-lhes o que a descomunização real significaria para a Ucrânia”. Com essa declaração, Putin lançou a sua “operação militar especial”.
A lógica de Putin é clara: uma vez que a Ucrânia tinha sido (supostamente) uma criação comunista, a verdadeira descomunização exige que ela seja eliminada. Mas “descomunização” também chama uma agenda voltada a apagar os últimos traços do estado de bem-estar social – pilar central do legado de esquerda. Devemos então ter pena de todos os “esquerdistas” ocidentais que apareceram como apologistas de Putin. Eles são como aqueles pacifistas “anti-imperialistas” que, em 1940, reclamavam que a blitz nazista pela Europa não deveria ser resistida.
Por anos, líderes russos e chineses têm se assustado sempre que uma rebelião popular explode em algum lugar de suas esferas de influência. Em regra, eles interpretam tais eventos como complôs – o termo utilizado é “revolução colorida” – instigados pelo Ocidente. O regime da China agora ao menos é honesto o bastante para admitir que existe uma insatisfação profunda pelo mundo. A resposta deles é apelar à sensação de insegurança que muitos em posições de poder experimentam. A resposta da esquerda, ao contrário, deve ser manter a solidariedade com aqueles que resistem a poderes arbitrários, agressivos, seja na Ucrânia como em qualquer lugar. Se não for assim, bem, todos nós sabemos como o filme termina.