Por Marcelo Castañeda, sociólogo e UniNômade, para o dossiê 50 anos do golpe
“Assumir a ditadura que cada um carrega e lutar contra ela pode ser um bom exercício para pavimentar uma sociedade democrática no Brasil.”
Foto: Agenda 2014 do Banco Itaú, que apoiou, financiou e integrou diretamente a ditadura, ainda fala em “revolução” 50 anos depois. Diante das denúncias, o banco recolheu as agendas.
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O golpe de 1964 tomou forma no dia primeiro de abril, o folclórico “dia da mentira” no Brasil. Para não ser motivo de chacota, os militares firmaram o dia 31 de março, para marcar o que chamam de “revolução” até hoje. E não são só os militares. A agenda que o Banco Itaú distribuiu entre alguns clientes no início do ano também aponta isso. Estou certo de que ainda existem muitos que estão, quem diria, comemorando em círculos privados, bem como acreditam que a ditadura é a solução para o Brasil, em especial aqueles que acreditam que o grande problema que enfrentamos é a corrupção, como se esta não proliferasse no regime militar. Fora isso, existe pelo menos um deputado federal que assume esta posição publicamente e não preciso citar o nome dele.
No entanto, 50 anos depois, muitas pessoas estão “descomemorando” a data, promovendo debates e atos que chamem a atenção da memória para essa página infeliz da nossa história. Estou entre esses, seja refletindo e escrevendo, seja compartilhando notícias ou colocando como foto no Facebook o rosto de algum desaparecido, morto ou torturado pelo regime militar. Esta reflexão se insere nesta perspectiva descomemorativa, focando em três pontos a fim de mostrar como a ditadura continua entre nós, muito além deste deputado. Estes pontos não esgotam as possibilidades, pense você em várias outras.
Antes disso, vale lembrar que, além dos 50 anos do Golpe, em 2014, faz 25 anos que aconteceu a primeira eleição do período democrático brasileiro que se inicia em 1985 com o governo Sarney (se é que isso pode ser chamado de redemocratização: ser governado por alguém que sempre defender a ditadura). De um lado, 50 anos de golpe; de outro, 25 anos de eleições diretas para todos os cargos públicos: uma incipiente democracia num país marcado por períodos autoritários. Mesmo assim, trata-se do maior período democrático da história brasileira, quase 30 anos de governos civis.
As Comissões da Verdade, que começaram a funcionar somente em 2012, bem depois de vários países latino-americanos que foram palcos de ditaduras, cumprem um papel fundamental no resgate da memória, tendo em vista o verdadeiro vazio documental que os militares deixaram, dificultando a construção de uma história de tortura e arbítrio. Até mesmo as fontes jornalísticas são raras, seja pela censura, seja pelo alinhamento dos principais meios de comunicação de massa ao regime militar. Um caso que me vem à mente quando escrevo é o do Instituto Penal Cândido Mendes, o outrora presídio da Ilha Grande, que foi implodido em 1994. Não há documentação sobre os presos políticos que passaram por esta unidade na década de 1970. Muitos outros exemplos de vazio podem ser citados.
Mas por que digo que a ditadura continua? Melhor ainda é perguntar: por que ela não sai de nós, de cada um de nós?
O primeiro ponto é demográfico e cultural. Talvez somente agora, tenhamos uma primeira geração que se formou no ambiente democrático. Me refiro aos que estão com seus 25 anos. Mesmo assim, foram formados por instituições que se moldaram no regime militar (famílias, escolas, universidades etc). Cada um de nós, por mais que lutemos contra, ainda traz um tanto da ditadura dentro de si e isso se reflete nos comportamentos, nas relações que estabelecemos com as pessoas, o que pode ser visto no machismo, no racismo, na homofobia que permeiam e caracterizam a nossa sociedade. Como ser democrático sendo machista, racista e homofóbico? Assumir a ditadura que cada um carrega e lutar contra ela pode ser um bom exercício para pavimentar uma sociedade democrática no Brasil.
Um segundo ponto é o estado de exceção que se verifica entre a população moradora de favelas no Rio de Janeiro, mas também nas periferias das grandes cidades e no meio rural e interior do Brasil, em especial quando estão em jogo grandes empreendimentos e disputas de terra. Ameaças, intimidações, desaparecimentos, assassinatos, perseguições políticas, tudo isso continua acontecendo, muitas vezes capitaneado pelo Estado que se diz “Democrático de Direito”. Cito dois exemplos recentes. Primeiro, Amarildo de Souza, o pedreiro que “desapareceu” na Rocinha em julho de 2013 quando foi convidado a entrar na sede de uma Unidade de Polícia Pacificadora. Nunca mais foi visto, foi tido como desaparecido e já é dado como morto, sua família sofre revezes até hoje. Segundo, um caso mais recente: a morte absurda de Cláudia Silva Ferreira. Quando saía para comprar um café foi baleada na Favela do Congonha, em Madureira, por policiais e colocada por eles no porta-malas do carro, tendo sido arrastada de forma criminosa “a caminho do hospital”. Essa atrocidade chamada Polícia Militar é uma das evidências de que a ditadura permanece entre nós, matando e desaparecendo com pessoas que são invisíveis para os que se mantém informados pela mídia oligopolista brasileira e que, de vez em quando, vem à tona para mostrar a dura realidade de quem é periférico.
São muitos Amarildos e muitas Cláudias na nossa incipiente democracia com traços de ditadura. Isso me leva ao terceiro e último ponto desta reflexão: como falar em democracia com uma mídia oligopolizada, controlada por algumas famílias e com concessões que remontam o regime militar? As redes sociais abrem uma perspectiva democratizante, mas ainda são pequenos fragmentos na formação da opinião pública, que foram muito importantes para conferir visibilidade ao desaparecimento de Amarildo e ao assassinato de Cláudia. Mas o que falar da invisibilidade que os meios de comunicação “de massa” (me refiro aqui aos jornais impressos mais vendidos e aos canais de televisão mais assistidos) conferem aos vários casos de desaparecimento e assassinatos cometidos pelo Estado ou acobertados por ele?
A democracia e a construção da paz só serão possíveis se conjugarmos mudanças culturais, desmilitarização da polícia e democratização da mídia. Outros pontos são importantes, tais como a participação popular e a legalização das drogas, mas estes três pontos que destaquei mostram como a ditadura ainda permanece entre nós. Por fim, três questões. Como uma mentira pode perdurar por tanto tempo e se fazer passar por verdade para muitos ainda? Como pode haver gente que defenda a ditadura? Como pode haver gente que, em nome da democracia, ainda reproduz a ditadura? A sociedade que construímos e participamos pode oferecer as melhores respostas.