Por Clarissa Moreira, Fernanda Sanchez e Bruno Cava
—
foto: calçadão de Nova Iguaçu (RJ)
—
O que pode um arquiteto?
Essa é a pergunta que vimos fazendo neste campo já há algumas décadas, face à persistente dificuldade de assumir posições claras diante dos processos de desigualdade e concentração de renda na cidade e na produção do espaço urbano. Le Corbusier já gritava Arquitetura ou Revolução, o que já era uma ideia perfeitamente retrógrada e antirrevolucionária em sua época. E deu no que deu. Ainda não superamos as questões ali colocadas, mas avançamos muito no campo do pensamento urbanístico. Hoje sabemos que os espaços vivos da cidade não serão construídos por algum semideus, nem nos gabinetes dos governos, nem nos escritórios dos arquitetos, nem nos think tanks da expertise urbana globalizada. Com um mínimo de imersão no campo se percebe que agenciamentos de espaços, afetos, construções e fluxos são inseparáveis e surgem de um embate vivo cotidiano e que sempre escapará ao que se fala ou faz sobre ele. A cidade e seus espaços são maiores – e também menores. E aí está sua grande força viva. É a cidade que nos dobra, no final do dia. Perderemos para ela, felizmente, e apesar das arrogâncias e das alucinações. Projetos-vitrine da Cidade Maravilhosa e Olímpica serão devorados pela cidade e serão dela. Barcelona, modelo tão citado naquilo que teve de pior (espetacularização/ turistificação), buscando superar a visão estritamente mercantil da gestão urbana é hoje governada pelo que há de mais interessante e transformador em termos de proposta de construção coletiva e participativa da cidade, e não é por acaso que Josep Montaner, Secretário de Urbanismo atual da cidade fez um artigo sobre Paola Berenstein Jacques, que há décadas trabalha propondo compreensões mais dinâmicas, democráticas e amplas da cidade e das práticas que envolvem sua construção.
A confiança extrema no fato de que a cidade nos escapa e termina por achar seu rumo, como nos fala o filósofo Henri-Pierre Jeudy, não deve servir de desculpa para amolecer ou anestesiar mentes e corações pois a luta continua sendo a de decidir a cidade que queremos e não sempre a de «retomar» a que nos impõem a um custo humano coletivo alto demais, em ações impostas por aqueles que nada sabem sobre o que é viver nas cidades, suas dores e belezas, porque já não vivem nela ou nunca viveram. Habitam territórios protegidos, semifeudos, bolhas mentais e reais, às custas da maioria da população, objeto de seduções e discursos inconsistentes.
Felizmente, há no campo do pensamento urbano e da ação territorial direta hoje, inúmeros exemplos de insurgências, criação, recriação do espaço vivido. Trata-se de sujeitos que constroem pontes e abrigos nos abismos, desigualdades e opressões que assolam nossas cidades. E que acreditam, com Henri Lefebvre, que nas coexistências, nas copresenças e no conflito socioterritorial estão as chaves para compreender a cidade contemporânea e nela agir. Tal lente, na perspectiva da gravíssima crise econômica, social e urbana que atravessamos no Brasil, torna-se ainda mais necessária.
Miragens do Amanhã
Na metrópole do Rio de Janeiro a crise dói ainda mais pois, junto aos fatores conjunturais da crise internacional e brasileira, produtores de novas assimetrias sociais, encontram-se os sujeitos da estrutural desigualdade urbana atravessados, nos últimos anos, pela força avassaladora e violenta de um projeto de cidade rumo aos Jogos de 2016 baseada em imagens já superadas. Em um artigo sobre a história das primeiras Olimpíadas, a socióloga francesa Anne Querrien (2012) lembra como desde a retomada das Olimpíadas no século XIX, o problema da expulsão dos pobres e o apagamento de lugares populares já estavam colocados, como se os Jogos desde o início já servissem como operadores de conquista de territórios urbanos aos mais pobres. A cidade olímpica ainda hoje constrói cenários, miragens do Amanhã, espetáculos urbanos que já nascem arcaicos, para cimentar consensos e adesões dos citadinos de «elite», turistas incautos e empreendedores «arrojados». Mas também destrói e busca apagar da cidade as experiências territoriais mais incríveis de criação e recriação resistente do Lugar.
São essas experiências concretas que nutrem o pensamento mais promissor sobre a cidade. Nas relações profundas com o território, com a moradia, com as águas, com o ambiente construído, com os ‘espaços inventados’ de Faranac Miraftab, imaginados e produzidos de forma mais democrática e efetiva. Como entender, nesse contexto, a destruição do bairro popular Vila Autódromo pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e pelas empreiteiras? Ora, aí está um belo exemplo de um Lugar. Símbolo dos tantos bairros populares desta metrópole, na luta pela permanência, pela copresença, pela democracia, pelo direito a existir, a reexistir. Renomados gestores e urbanistas internacionais e nacionais perceberam que ali se encontra uma experiência rica de construção de Lugar e, por isso, outorgaram a seus moradores o Prêmio Urban Age em 2013, pela proposta contida em seu Plano Popular de reurbanização. Aí está uma experiência que os gestores poderiam aproveitar para mostrar ao mundo : é possível fazer uma Olimpíada sem violência de classe e sem elitismo, sobretudo numa metrópole do sul global, tão desigual como o Rio de Janeiro. Mas diariamente atacam os últimos que ainda persistem ali, sem nenhum tipo de misericórdia.
Que a cidade tenha essa força de vida, a força de vida de todos os corpos e mentes que nela vivem, não é prerrogativa para os governantes e suas coalizões de poder fazerem as maiores violências como vemos todos os dias – remoções, perseguições e mesmo assassinatos constantes, guiados por meios-pensamentos, meias-palavras, muita soberba e dificuldade de abrir o grande diálogo com as forças urbanas em conflito. Em nome do «bom lugar» alguns arquitetos propõem que se acabe com os ambulantes vendedores de produtos industriais. E nenhuma vírgula sobre onde vão trabalhar essas pessoas e como vão se sustentar, nada, em nome dos tais bons lugares. Lugares, como sempre, sem pobres fazendo atividades que estes profissionais julgam «feias», desagradáveis, degradantes.
Todo brasileiro é camelô
A esse respeito uma das grandes pensadoras do espaço urbano, sua produção e seus conflitos, Ana Clara Torres Ribeiro proferiu uma de suas últimas palestras num encontro científico em 2011. Ana Clara nos disse, com sua grande inteligência e generosidade, que seu último livro seria um livro de aforismos. E que o primeiro deles seria: Todo brasileiro é um camelô. E em seguida discorria sobre como, em todos os níveis, a informalidade e a improvisação primam no Brasil. Isto é real desde a escala do vendedor de rua aos governos de cidades e mesmo do país, e também na academia, segundo ela. O brasileiro opera como um ambulante encontrando modos de sobreviver e existir em meio às adversidades. Chocante é ver este sistema ser usado por organizadores de megaeventos, no improviso, sem realmente um planejamento mais sério ou efetivo, às margens da lei, descumprindo regulamentos urbanos, traindo pactos sociais e se aproveitando de situações extremas, na afirmação sem rodeios da «cidade da exceção» conforme a cunhou Carlos Vainer.
Neste sentido, fica a dúvida sobre porque seria o ambulante de rua aquele responsável pela desordem urbana, quando seu delito é nenhum e sua utilidade seja muito maior, se comparado aos grandes delitos daqueles que tomam para si de assalto uma cidade, seus recursos, e tomam de reféns seus habitantes, que iludem a golpes de marketing, fogos de artifício, e claro, de espetáculos que durarão pouco.
Se deve haver uma crítica à academia é que esta é ainda exageradamente orientada para perseguir o sonho «europeizante» ou «norte americanizante» da cidade e sua paisagem e não nos motiva a ser críticos o suficiente, conscientes o suficiente e responsáveis o suficiente para compreender a violência deste desejo de «globalização» com arcaísmos ainda colonizatórios, sobre as realidades locais. E daí vemos muitas gerações de arquitetos que nas palavras sábias da Professora Margareth Pereira em sua homenagem ao grande mestre Alfredo Brito, iniciam incultas e muitas vezes seguem incultas e, pior ainda, permitem a instrumentalização da incultura e inconsciência a fim de promover ou assinar embaixo das mais extremas violências urbanas, diretas ou indiretas, que prometem impactar a cidade positivamente no futuro. No Amanhã, sempre.
Embranquecer ad eternum a cidade, extirpar dela os incômodos do que não se quer ver (pobres, ambulantes, população de rua), esse é o bom lugar para uma insipiente e desastrosa corrente do urbanismo brasileiro contemporâneo, que não se envergonha de se filiar aos feitos de Pereira Passos, quem tinha a seu favor o fato de não poder sequer imaginar aonde chegaríamos no processo de expulsão de pobres e apartheid urbano. E que tantos lugares destruiu. O desafio em todos os planos e campos do saber é ainda o de superar o pensamento e a subjetividade escravocrata, policialesca e segregacionista. E é esse o grande desafio de todos os campos, não apenas da arquitetura, para o século que temos que cruzar.
Antropofagia para despertar
Nesse quadro, os ambulantes, os autoconstrutores, os garis, os bombeiros, os sem-teto, os professores, os estudantes, todos estes que se pretende fazer desaparecer, criminalizar ou dominar para dar lugar a uma cidade branca e sem sentido, personagens de reflexões de grande importância, como as de Giuseppe Cocco (2014) e Bárbara Szaniecki (2014), é com eles que continuamos contando para construir outros futuros, outros Lugares, enquanto as grandes máquinas de construção da cidade consideradas oficiais estiverem sequestradas por quem não se relaciona com a própria cidade em seu devir, quem não tem qualificação democrática, nem mesmo visão de abertura a um porvir menos datado, previsível, reducionista, unidimensional, em uma palavra, como bem nomeou Caetano Veloso, vulgar. Nisso o que um arquiteto pode é principalmente se calar, ouvir, procurar saber, e atuar sem matar o que realmente é vivo e potente na cidade. E podemos encerrar com Oswald de Andrade afirmando em seu Manifesto Antropófago que «Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.» E a grande metrópole é o monstro antropófago por excelência e ele não será catequizado por uma lógica que sequer se sustenta a si mesma.
Clarissa Moreira, arquiteta, é professora da UFF, doutora em filosofia da arte e da arquitetura por Paris I, com a tese “Ville et Devenir: Dogville ou le devenir-village des métropoles” (ed. L’Harmattan, 2009).
Fernanda Sánchez, arquiteta, é professora da UFF, autora de Cidade espetáculo: política, planejamento e city marketing (1997), A reinvenção das cidades para um mercado mundial (2003, 2010, 2ª. Ed.) e, em co-autoria com Gilmar Mascarenhas e Glauco Bienenstein, O jogo continua: megaeventos esportivos e cidades (2011).
Bruno Cava é engenheiro de infraestrutura pelo ITA, bacharel e mestre em direito pela UERJ, autor de A vida dos direitos (2008) e A multidão foi ao deserto (2013), e organizador de Amanhã vai ser maior (2014), com Giuseppe Cocco, e Podemos e Syriza; experimentações democráticas na borda das lutas (2015), com Sandra Arencón Beltrán.
—
Referências:
COCCO, Giuseppe. KorpoBraz; por uma política dos corpos. Mauad, 2014.
QUERIEN, Anne. As Olimpíadas e a Rua. Dossier RIO+20 e a Cidade. In: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1187
SZANIECKI, Bárbara. Outros mundos possíveis; Disforme contemporâneo e design encarnado. AnnaBlume, 2014.