Por Marco Assennato | Trad. UniNômade Brasil
Numa entrevista em 1965, conduzida por Alain Badiou, Michel Foucault acena com a oportunidade de arriscar uma história puramente acontecimental do pensamento, capaz de constatar uma série de fatos, em certa medida crus, que operam no próprio ser da filosofia, determinando-lhe articulações, posições e inovações decisivas. Ora, é no calor deste risco que, a meu ver, é discutida a hipótese proposta por Dario Gentili no seu recente e afortunado livro Italian Theory. Dall´operaismo alla biopolitica (il Mulino, 2012). Para tentar, sob o signo de Foucault, uma história factual da filosofia italiana no último trentênio, a fim de lançar luz sobre alguns limites atuais do belo país.
Isto é possível unicamente com a condição de não hesitar diante do necessário choque, evocado por Nicolas Martino, a respeito do conflito que opõe a dita Italian Theory e o pensamento da diferença. Reconstruir factualmente o percurso que leva do operaísmo de Tronti à biopolítica de Negri, Agamben e Espósito, passando pelo pensamento negativo, significa descobrir que não se trata, de fato, de algum ciclo único, mas, pelo menos, de uma série de linhas divergentes e diferentes, desenvolvidas no ser mesmo de uma intensa época política. Em suma: sobre um juízo a respeito da Itália entre 1968 e 1977.
Porque esse é o indecidível da Italian Thoery: a agregação contraditória de fatos crus, que tocam o ritmo das lutas operárias e estudantis, a explosão do conflito, primeiro na fábrica e depois na sociedade, além da ocupação da cidade, a reapropriação de porções sempre maiores da riqueza social por parte do longo corpo do capital variável, sobre o limiar de uma das mais potentes passagens de modernização do sistema político e produtivo que a história italiana jamais concebeu. Sem esses fatos, duros como pedra, sem o risco — que alguns aceitaram correr e outros dele fugiram —de reconhecer os fatos como portadores de um repensamento necessário de todas as categorias de nosso pensamento político, não se pode perceber a cifra extroflexa do pensamento italiano. E assim não se podem compreender, tampouco, as atuais dificuldades. Reconhecer a diferença da Italian Theory, a nova compoisição do trabalho vivo, significou naqueles anos colocar o problema do esgotamento da forma constitucional do pós-guerra, para afirmar a necessidade de outra ruptura constituinte, à altura das transformações das relações sociais e produtivas.
Fugir do risco desse reconhecimento, ao contrário, levou outros a fecharem-se em teorias nostálgicas, falando da decadência da política, sufocando na camisa de força do pensamento negativo toda forma de conflito, para despir o bios em vida nua e esmagada pelo estado de exceção. E hoje isso significa reduzir o comum produzido pela cooperação imaterial a munus, presente de morte. Communitas, escreveu Roberto Espósito, deve ser tratada além de qualquer pretensão de efetuação histórico-empírica. Como se, exaurido o compromisso keynesiano, decaídos os estados nacionais, com suas próteses de partidos e sindicatos, desfundada a força de lei da constituição da república antifascista; nesse momento, nenhuma outra forma constituinte pudesse ser afirmada. E nós estaríamos, ainda hoje, nesse beco sem saída?
Mas essa é a história de alguns. Não de todos. Para compreendê-lo bastaria examinar as atas da conferência padovana que encerra a fase do primeiro operaísmo, publicadas pelos Editori Riuniti em 1978, com o título Operaismo e centralità operaia, justamente para provar a pirueta de Tronti e Cacciari, realizada na sombra da satisfação vibrante de Giorgio Napolitano, verdadeiro sacerdote daquela missa cantada em honra da Forma-Estado. Ou retomar os textos e polêmicas que seguiram à recepção política do pensamento de Michel Foucault, a partir da publicação, em 1977, de Microfísica do poder. Se os movimentos dos anos 1970 encontraram nesse livro uma análise das relações sociais como relações de poder, para ser rompidas, reviradas e reconstruídas através de linhas de subjetivação inovadoras; por sua vez, os intelectuais da área comunista, aqueles avizinhados ao Partido Comunista Italiano, reduziram a riqueza da metafísica do poder, mito da alteridade e da alternativa, em um mundo achatado que, rapidamente, a lamentada Margaret Thatcher tinha explicado que não existirem alternativas.
O conflito teórico hoje passa por uma encruzilhada: de uma parte a biopolítica afirmativa, da outra o biopoder negativo. Assim é desde os anos 1970. De uma parte, um contexto todo italiano, que reconhece o Negative Denken, entre Heidegger e Bataille, como o único instrumento para pensar o político; da outra parte, uma tradição europeia, com a qual os movimentos sociais estão em diálogo constante, que busca ainda um pensamento positivo, experimental, experiencial, afirmativo. O golpe crítico que Gentili carece, — ou que fica mascarado ao atribuir-se a Espósito a posição terminal história do pensamento italiano, — consiste nisso: que o dispositivo foucaultiano não pode ser reduzido a Gestell (como faz Agamben na esteira de Heidegger), que a subjetividade não é sub-jectum — da técnica ou do político, em qualquer caso sempre alimentada de uma origem, de um possível, de um potencial que nunca chega a efetuar-se (como sustenta Cacciari), e que o comum da produção não é munus derivado da matabilidade generalizada dos homens, e não chama assim alguma imunização (segundo a trajetória de Espósito).
A diferença da Italian Theory, a diferença biopolítica significa reconstruir as tramas da autonomia relativa do capital variável no dispositivo de produção, organizar as forças da cooperação produtiva contra a captura do biopoder, e repensar práticas e poderes constituintes, capazes para nos tirar da penúria deste triste inverno da política italiana.
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Publicado no site da UniNômade Itália
Tradutor: Bruno Cava