Entre Gláuber e Deleuze, o autor fala do processo maravilhoso e perigoso da constituição de um povo, um povo que sempre falta, povo multivalente e superabundante vazando por todos os lados da sociedade capitalista brasileira. O estado, instância de antiprodução, não pára de frustrar a esse povo a sua força interna de autoprodução, fechando suas valências, canalizando seus fluxos, amesquinhando sua multiplicidade.
A força revolucionária do cinema de Glauber Rocha, nos diz Deleuze, é a falta do povo. Mas falta, aí, quer dizer conjugar um desejo exasperado com uma potência inventiva e absolutamente libertária, anárquica (como deixa claro sua Estetyka do sonho, de 1971), de criação de um povo. Portanto, falta um povo por que o próprio do povo revolucionário é ser um processo constante de efetivação de sua desviante linha criadora. Por isso, o povo sempre esteve ali e sempre fugiu. Como uma grande linha, cortando e intensificado desejos que, apesar de exasperados, souberam produzir devires, o de fora (Foucault, 1986) absoluto que tanto Glauber e outros buscaram. Muitos deles buscaram de uma maneira equivocada, não percebendo que este de fora é sobretudo imanência, que se insinuava nos desvios em relação às grandes coletividades identitárias ou certas ‘deformações’ civilizatórias.
A favela, por exemplo. Espaço insurgente que em um movimento errático escreve suas geografias monstruosas em um território que não devia ser o seu, praticando uma desterritorialização estatal. Ela carrega a longa história de uma diáspora que majoritariamente não aceitou entrar num processo de constante endividamento/submissão a qual todo homem civilizado deve sucumbir. Ser civilizado é sucumbir a um processo penoso de endividamento, e de consequente culpabilização pela dívida original, constante e infinita. Processo que não se esquece, que não permite esquecimento, que marca os corpos em relação a uma lei imanente. Esta, por um lado, modula subjetividades; por outro cria, uma máquina social de tortura cotidiana, máquina que cria as condições para desejarmos a nossa própria submissão.
Por isso, falamos em deformação, por se tratar de um processo de invenção de um modo de ser que necessariamente problematiza, deforma a ordem estabelecida. A favela é resistência, fuga a tudo isso. Invenção primeira que permitiu que outra sociabilidade fosse experimentada e disseminada para fora de seus limites. Por isso, dizemos que resistir é perseguir um processo sem objetivos, sem intenções. Na medida em que toda a demência capitalista se mostra, em um primeiro momento, racional e necessária, insistir em um fluxo bruto de desejo que não contabiliza perdas e ganhos, mas percorre e constitui becos e vielas que seguem um ritmo indiferente do capital. É forçar as maquinas desejantes para uma mobilização onde as linhas de força e de produção possam encontrar os fluxos livres, no seu processo concreto de luta e de autopoiesis.
Dizemos, por exemplo, que onde houver uma economia lucrativa do ócio é porque antes houve um ócio que gerou um lucro fora da economia, e que ela então, em consequência, teve de reconhecer, lidar e sugar para dentro dos circuitos da máquina capitalista, — quer dizer, a economia capitalista armou uma estrutura paradoxal de limite e liberação, produção e antiprodução (para aproveitar os termos do Anti-Édipo, 1972); enfim, ela articulou, também de forma imanente, um grande bloco social regulado para reterritorializar aquele fluxo ainda livre, e infiltrar nele uma falta, forjar uma escassez sistemática. A produção da falta é a força maior do capitalismo.
Dito isto, podemos voltar ao povo. Se o povo é o de fora absoluto que se insinua, é correto dizer que as manifestações que vêm ocorrendo são um dos momentos potentes dessa insinuação violenta e constituinte. Isto que aparece nas ruas do Brasil, tem a forma do impensado e parece ser a dobra deste de fora. A plebe inesperada que sempre esteve à espreita espatifou o consenso dos governos, destravou a reprodução de assassinatos seletivos e sistemáticos. Se era natural a morte de pobres e pretos pelo estado, agora já não é mais. Temos um nome, que é menos e mais do que uma identidade, Amarildo (morador da favela da Rocinha que sumiu após entrar em um carro da polícia). Ele é a própria vida em sua fragilidade e potência diante do instinto destrutivo das democracias neoliberais.
O povo resiste inclusive aos mais recentes atos autoritários de um governo sem respaldo popular, mas que conseguiu formar um monstro ligando-se a um judiciário majoritariamente servil, a empresários ávidos por controlar cada vez mais a cidade e uma mídia corporativa que teme qualquer alteração social, ou seja, uma elite que não aceita perder nenhum espaço, nenhum privilégio. Este governo ataca a população e a constituição do país com prisões ilegais e perseguição política. Ele sempre desprezou os desejos da população achando que se manteria intacto por forjar toda essa estrutura de proteção ao seu redor.
O povo resiste e segue nas ruas seu processo constituinte, na criação de um sujeito coletivo e singular, um devir puro e experimental, um devir-brasil-menor que, nas lutas, tem forjado alegremente horizontes possíveis com as curvas caóticas das linhas do fora. O “de dentro do de fora” aparece nos novos grupos que surgem e atuam sempre em cooperação, nos recuos dos poderes instituídos, na constante mobilização descentrada e, enfim, na continuidade dos desejos insurgentes em produzir outras formas de vida e sociabilidade. É o esplendor da construção do povo.