Por Bruno Tarin
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Algumas notas sobre conflito, produção de diferença, multidão e democracia nas recentes manifestações; e a atuação da mídia corporativa e da esquerda nesse espaço e tempo
Engana-se terrivelmente quem pensa que para o exercício da democracia é necessário exilar, anular e extirpar o conflito e a produção de diferença. Engana-se ainda mais quem só vê conflito na hora que manifestantes entram em confronto com a polícia, ou quando lançam sua indignação e revolta contra símbolos do poder, e dessa maneira se diferenciam da normalidade e diferenciam a própria normatividade. O conflito e a diferença são as moradas do exercício da democracia, sem o conflito e a diferença – e o exercício da liberdade que sempre os acompanha – não há democracia, pois estaríamos todos condenamos a vivermos presos ao já constituído, à imobilidade e à totalização unificante. O conflito e a diferença são as linhas que constroem os espaços onde emergem as possibilidades de criação de novas maneiras de viver, de constituir novos rumos para a democracia. O conflito conjugado com a produção de diferença pode ser entendido como a força que alavanca as possibilidades de fugir e ir sempre além da tentação de tornar democracia sinônimo de poder de coerção e de capital.
A separação feita entre manifestantes e vândalos, levada a ferro e fogo, ou melhor, a gás e borracha, pelo poder executivo retroalimentada pela mídia corporativa durante as recentes manifestações, faz parte do violento jogo de tentativa de anulação do conflito e produção de diferença no exercício da democracia. Da mesma forma é a exigência – feita por essa mesma dobradinha mídia corporativa/poder executivo – de que a multidão presente nas ruas reivindique e produza pautas claras, unificadas e que possam ser facilmente apropriadas e negociadas nos clássicos espaços da política partidária. A tentativa de anulação do conflito e da diferença passa, dessa maneira, tentando produzir duas grandes separações: uma é a produção do sentimento de que existe um movimento legítimo que busca a “Paz”, enquanto uma minoria de baderneiros violentos se aproveitam para saquear lojas, atacar a polícia e depredar prédios públicos e históricos. A outra separação é que existe uma minoria “consciente” e uma grande maioria de pessoas que participaram das manifestações sem saber direito porque estavam ali, sendo assim essa “massa disforme” ameaça tornar-se uma arma para o avanço dos golpistas reacionários. No primeiro caso a solução encontrada, tanto pela mídia corporativa quanto pelo poder executivo, é clara e explícita: imposição de autoridade e uso de força repressiva sobre as “maçãs podres” para conter o golpe dado sobre a normalidade, a lei e a ordem. No segundo caso, a solução não é tão visível mas nem por isso menos palpável: organização dos manifestantes em pautas totalizantes e unificadas, ou seja, transformar a multidão que tomou as ruas em um monólito, enquadrando-a de maneira que possa dar-lhe uma forma que se encaixe no espaço, já pré-determinado, da política representativa e da produção de consensos – o que alguns insistem em chamar de democracia. A partir dessas duas grandes separações que a mídia corporativa opera o seu jogo clássico: julgando o bom e o mau e formando opinião, ou em outras palavras conscientizando e organizando a massa. Separações que da minha perspectiva, diga-se de passagem, são o verdadeiro golpismo. Contudo, essas separações não são somente produzidas pela mídia corporativa, elas também são utilizadas por uma esquerda acomodada em ocupar o poder sem a participação ampla e irrestrita da população, uma esquerda que vêm se distanciando das lutas e da vida fora dos espaços tradicionais e institucionais de poder, uma esquerda que parece ter esquecido – mas que está sendo lembrada – que suas planificações e pacificações não compõem e transformam nada sem a presença dos corpos que ocupam cotidianamente ruas e estradas de terra ao invés de gabinetes e salões.
A esquerda, diante do tempo e espaço atual, necessita reconhecer e lidar com o fato que a multidão que emergiu durante as recentes manifestações é dotada de um princípio autoformativo, ou seja, a multidão ao criar está ao mesmo passo se criando. Em movimentos de alta velocidade e numa espiral virtuosa a multidão, composta pela diferença, através do conflito transforma e se transforma auto-organizando-se. No estrato do sentimento de autonomia de instituições já constituídas está ocupando progressivamente as ruas do Brasil, delineando em movimento os caminhos de novas instituições e de uma nova democracia. Analisar e avaliar as recentes manifestações a partir de pautas específicas e categorias não é mais materialmente possível e mesmo desejável, afinal o que se viu nas últimas semanas foi a luta por melhores condições de vida em seus mais múltiplos aspectos e, principalmente, por diferentes modos de vida que se materializam na desconstrução de certos tipos de relações de poder codificadas, para a afirmação de outras relações mais horizontais e democráticas, relações estas que tem sua finalidade e método o desejo de transformação e participação do governo. Trata-se, portanto, para essa esquerda que vimos nos últimos tempos assumir uma posição arrogante e autoritária, urgentemente, rever suas posições e acelerar a guinada rumo uma radicalização democrática e uma democratização radical. Com efeito, trata-se de afirmar e embarcar no caráter conflituoso e constituinte da multidão e das diferentes – até mesmo contraditórias – incontáveis e incomensuráveis lutas que marcam as vidas de todos aqueles que recusam viver sobre o domínio da violência institucionalizada – criminalização da pobreza e da liberdade – e das segmentações produzidas pelas desigualdades econômicas, políticas e sociais.
No tempo e espaço – atravessados pelo levante da qual somos todos parte e testemunho mesmo os que não foram às manifestações – emergem as possibilidades para todos e não só para os partidos, políticos e militantes de esquerda – que estão em um grau ou outro no governo e no Estado – fugirmos e irmos além da neutralização do conflito e da diferença. Passar do estrato da neutralização desses elementos para um estrato de sua afirmação como primordiais para o exercício pleno da democracia. Irmos além da atuação da mídia corporativa e de uma parte da esquerda que não mostram, debatem e atuam sobre as verdadeiras violências as quais somos, cotidianamente, expostos e que sentimos diretamente sobre nossos corpos. Violências que sem o conflito e a diferença como bases de uma nova composição de governo e de radicalização democrática e democratização radical não poderão ser transformadas. A violência de sermos submetidos a viver de salários ou de projetos que nos precarizam, ou seja, a violência da exploração; que são ditadas de forma verticalizada políticas econômicas desenvolvimentistas; que partidos políticos – a política representativa – não tem, a algum tempo, nenhuma ancoragem com a população a não ser eleitoral; que tentam transformar nossos destinos e vidas em negócios extremamente lucrativos para políticos e empreiteiras; que a polícia é extremamente violenta e passeia com os bicos dos fuzis para fora das janelas de seus carros produzindo um estado de medo generalizado; que são feitas chacinas no campo e nas favelas induzidas pela mídia corporativa através do sentimento de ódio aos pobres, negros e indígenas; que a especulação imobiliária está nos expulsando de nossas casas; que os novos regimes trabalhistas e o sistema financeiro estão nos afogando em dívidas; que o sistema de transporte público é uma verdadeira máfia que junta Estado e mercado etc.
Apesar da tentação de entrarmos no jogo da mídia corporativa e de parte da esquerda de encontrarmos, dentre os manifestantes, culpados para que se possa ser possível separar o joio do trigo, encontrando vândalos ou golpistas de direita, faz-se necessário antes termos em mente a positividade da multiplicidade que produziu a multidão que tomou as ruas recentemente; e que não necessitamos de instituições hierarquizadas para organizar nossas manifestações e menos ainda da mídia corporativa para nos dizer quem somos ou deveríamos ser e fazer. Falando, especificamente, sobre as manifestações da qual participei, posso afirmar que os confrontos ocorridos no Rio de Janeiro durante as manifestações de 17 e 20 de junho não foram atos isolados de vândalos, para ver isso basta atentarmos para o fato que os principais alvos dos manifestantes foram prédios públicos, bancos e a própria polícia. Não é por acaso que foram estes os alvos, afinal estes são os maiores símbolos e atores da opressão e da violência a qual somos submetidos todos os dias, símbolos máximos da dupla mafiosa Estado/mercado – base da revolta generalizada expressa por todos os manifestantes de diferentes formas. Cantar o hino e pintar a cara de verde e amarelo também não me parecem ser uma demonstração da ascensão do fascismo revigorado por uma massa disforme tropicalizada, e sim uma forma de se manifestar daqueles que não estão acostumados ou não desejam as práticas militantes da esquerda, mas nem por isso são despolitizados ou incapazes de se manifestar criticamente, e levado a última instância de governar a si mesmo. Estas são expressão da multidão assim como as cirandas, a entrega de flores aos policiais, as bandeiras e cartazes, a carnavalização, os carros de som com palavras de ordem, as bandeiras etc. Expressão da potência da diferença conflituosa que marca a multidão que ocupa todos os espaços e tempos que convivemos em comum.
As manifestações não começaram e não se encerram em junho de 2013 – apesar desses dias terem entrado para a história do Brasil e com certeza terem marcado nossos corpos – novas manifestações virão, novos desafios e impasses aparecerão, e a força da multidão se mostrará, em grande parte, em não aderir as grandes separações do discurso conservador. Os corpos tropicais mestiçados encontraram a maneira de penetrar o governo, agora é avançar buscando na produção de diferença e conflito os caminhos para a autodeterminação de nossas vidas e os novos rumos em movimento da democracia.