Por Salvador Schevalzon, do Lobo Suelto, trad. Ricardo Cavalcanti-Schiel (no blogue do Luís Nassif)
Não foi um “cacerolazo” brasileiro contra um governo progressista ou de esquerda, como alguns que vêm Dilma como aliada de Cristina Kirchner, se apressaram em classificar. Também não é uma primavera árabe tropical, nem um protesto convencional por aumentos. Deixou todos “aturdidos”, diziam os analistas na mídia.
Foi algo novo. Foi política. Foi grande. No que diz respeito à sua singularidade, digamos que mais que um “cacerolazo” de agravo, teve muito de “Que Se Vayan Todos” contra um governo autista, distanciado da população, contra um sistema de partidos que vive no andar de cima e que não apresenta (mais?) nenhuma alternativa ou causas para serem endossadas pelo andar de baixo… Foram mobilizações com muita abertura, muito por se descobrir pelas pessoas que tomaram as ruas depois de muito tempo, e seguirá dando-lhe sentido a partir de dentro.
O cenário onde acontece: 15 bilhões gastos para organizar a Copa do Mundo em um país que continua tendo dezenas de milhões de pobres, má educação e saúde, péssimo transporte, e os bancos como os maiores beneficiários de todo o dinheiro que entra. Não é um detalhe a informação do Mundial… talvez os 30 bilhões de Belo Monte sejam ainda mais escandalosos, mas a organização da Copa e das Olimpíadas traz ao Brasil um clima de megalomania e entusiasmo totalmente comercializado, chauvinista e imperial. E nas ruas de 11 cidades, em 17 de junho, esse delírio parecia estar sendo realmente questionado.
Um aumento de 20 centavos no preço da passagem de ônibus e metrô de São Paulo, e outro tanto no resto das cidades (decidido por cada governo local) foi a faísca. “O povo acordou” ― cantavam as pessoas. “Vem pra rua contra o aumento”― convidavam, enquanto circulavam sem rumo pré-definido pela cidade. Em outro lugar, se bem me lembro, perguntavam a Dilma se Neymar valia mais que a saúde e a educação.
Foram as maiores mobilizações desde 1992 (affaire Collor de Mello); e a falta de bandeiras, canções conhecidas por todos, caminhões de som, vendedores de bebidas, pontos de concentração e rotas de desconcentração estabelecidas mostravam isso. Cantavam-se refrões de estádio ou inventados na hora. A concentração foi em um lugar recentemente reurbanizado da cidade, redescoberto. Como não havia percurso estabelecido, os motoristas tiveram que esperar muitas horas nas esquinas das avenidas tomadas, sentados ao lado ou dentro dos seus carros. A mobilização se dispersou por pelo menos três caminhos em São Paulo, cidade onde participamos e de onde escrevo. Na quinta mobilização pelo mesmo tema em poucos dias (desde 6 de junho), uns foram para o palácio do governador do Estado, que foi um dos que decretou o aumento, e outras duas colunas para a Avenida Paulista, onde a polícia não havia permitido a entrada na quinta-feira passada.
O grupo que organiza é o Movimento Passe Livre, que em vários Estados organiza de forma horizontal e apartidária a luta por um passe estudantil, mas também pela “tarifa zero” para todos, e que vêm deixando nervosos os governantes, que não encontram interlocutores, líderes ou procedimentos previsíveis.
Dilma vinha de uma semana ruim, foi vaiada na inauguração da Copa das Confederações, ensaio para o mundial. A polícia tinha reprimido os manifestantes anti-copa, e o Ministro dos Esportes advertiu que esses protestos não seriam admitidos. Agora, as grandes mobilizações ocorrerem em capitais com prefeitos ou governadores petistas, como em São Paulo. Aqui, Fernando Haddad ― ex-professor de Ciência Política na USP, com tese sobre Marx e Habermas, e ex-ministro da Educação ― mostrou-se inflexível, carregando argumentos técnicos e justificando, por exemplo, a repressão policial da marcha anterior. Enquanto escrevemos isso, no entanto, anuncia a revogação do aumento ou, ao menos, sua suspensão discutida, a partir da convocação do Conselho da Cidade. Se não retrocede, como já fizeram outros governos (Porto Alegre, por exemplo) enfrentaria a rua novamente. Mesmo assim, a novidade também não permite prever se seguirá in crescendo ou não. Já está convocada uma marcha para hoje às 18h00m, e agora perto de sua sede de governo.
No dia 17 de junho o governo nacional só atinava em falar dos seus planos sociais. O Ministro da Justiça havia cedido, uma semana antes, tropas federais de polícia para frear o “vandalismo”, à semelhança de quando se enfrentam os narcotraficantes das favelas. Nas redes sociais expandiu-se a interpretação de que eram mobilizações golpistas da direita (“cacerolazos”?), que recordavam as que antecederam o Golpe de 64, patrocinadas pela direita. Alimentando essa interpretação, falou Arnaldo Jabor, um famoso jornalista do horário nobre da TV Globo, que se apressou em dizer que já não se tratavam mais de vândalos, como a imprensa os reconheceu na primeira semana, e que os protestos deveriam ser apoiados. Mas na rua se sentia outra coisa. As pessoas rapidamente inventaram refrões contra Jabor, e os protestos contra o aumento do transporte acabaram ocupando o vazio deixado pelo partido que até então havia sabido representar as demandas sociais e progressistas. Houve até bandeiras do PT na marcha.
Ainda que os protestos e as pessoas que saem pela primeira vez às ruas tenham muito de inclassificável, desordenado, a ser inventado, a interpretação do golpismo não procede. A começar porque os interesses do projeto da ditadura não estão sendo ameaçados pelo PT. O prefeito Haddad, em evidência depois de ganhar numa cidade onde, geralmente, vem ganhando a oposição, segue a presidenta no caminho da direitização de um partido que governa aliado aos setores mais conservadores: os ruralistas, as igrejas, os antigos rivais reciclados da ditadura que agora acompanham o PT com as mesmas reações, respostas e interpretações que chegam do governo. O projeto do PT tem a ver com o aumento do consumo. “Comprem carros!” ― recomendava Lula ―, enquanto Dilma ocupa suas horas em administrar uma empresa de construção chamada Brasil, consagrando os lugares comuns do neoliberalismo, misturados a desenvolvimentismo dos anos 60 e a tecnocracia burocratizada.
Longe de um “cacerolazo” da classe media conservadora, foi, principalmente, uma cidade recuperando suas ruas. A resposta da polícia contra os “vândalos” na semana passada, enchendo-os de borrachada e gás lacrimogêneo, levou muito mais gente para as ruas, especialmente jovens e muitos históricos eleitores do PT. O autismo desse partido contribuiu para um momento que parece ter força para mudar a política brasileira. Não ainda de forma generalizada, num país onde as lentas transições carregadas de continuidade parecem ser antes de tudo a regra. Mas sim para os que encontraram as ruas e descobriram um mundo novo.
O que mobilizou mais diretamente, além da violência policial, foi a indignação frente a uma passagem de um dólar e meio, que chega a representar um terço do salário das famílias trabalhadoras: um transporte público que é parte do grande problema do trânsito e dos custos de mobilidade para toda a cidade. Mas com o mote contra o aumento de 20 centavos se escutava “não são só 20 centavos”. “Os 20 centavos são o nosso parque da Turquia”, explicavam alguns. Trata-se de participar, de encontrar uma voz própria numa cidade recuperada.
Era uma nova São Paulo fluindo pelas ruas, cidade que costuma ser mais conservadora que outras (Brasília, onde foi ocupado o Congresso; Rio de Janeiro, onde a repressão chegou às balas de chumbo), e que agora iniciou essas novas mobilizações. Não há indícios do que vai acontecer: partidos de esquerda que tentavam se incorporar e explicar ou orientar; um governo que aposta na volta à inércia da cidade; as políticas sociais como credencial de um governo que só se sustenta para o eleitor progressista invocando o fantasma da direita que supostamente seria muito pior, porque cortaria o Bolsa Família e privatizaria a Petrobrás…
No entanto, a civilização dos carros parou por um dia. As pessoas andando por lugares da cidade que geralmente são tomados pelo trânsito lento e por edifícios espelhados foi a nota dos protestos; sua parte de arte, de encontro. Muitos calculam, especulam, perguntam-se em que vai se transformar isso tudo. Perguntas que dicotomizam e polarizam, sem compreender que o importante é o que já passou: o que significou o povo nas ruas, e o que continuará significando, por caminhos novos abertos nas avenidas ocupadas, e na força descoberta de ainda sonhar.