Por Renan Porto, UniNômade
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Com a aprovação do impeachment na Câmara de Deputados, as redes sociais foram tomadas por uma onda de desespero e maniqueísmo. Porém, um maniqueísmo débil, sem um lado realmente “bom”. Nesta disputa pelo laço suicida, a sociedade é mobilizada numa luta que não vai produzir nada de alternativo para o terreno institucional ou, quiçá, social. Os discursos que se propõem como desvios ao furacão em que fomos engolidos acabam abafados pela própria força de seu sopro.
Já é bastante repetido que foi o próprio PT quem cavou a sua cova durante os mandatos à frente do governo federal, fazendo diversas alianças e concessões com o PMDB, que agora o apunhala pelas costas. Que Eduardo Cunha e a sua trupe sejam um bando de vigaristas e que todo esse processo de impeachment uma grande tramoia, disso todos já sabemos. Só não enxerga quem não quer. Mas precisamos de um debate que vá além desta constatação e apresente outros horizontes para a transformação, que encare de uma vez que o governo do PT já acabou de qualquer jeito, antes da efetivação do impeachment. O que importa, agora, é lidar com o cenário pós-PT.
É preciso resistir ao desespero que reduz a percepção da conjuntura a uma grande cena de devastação. Cair nessa percepção pode imobilizar possibilidades de pensamento e agenciamento social a partir dos acontecimentos. É claro que a situação não é boa e que as forças conservadoras se esforçam para hegemonizar o espaço público. Não devemos realmente permitir esse avanço, mas essa constatação não pode significar uma perda de perspectiva produtiva: precisamos investir nossa potência de ação num caminho que não seja vazio. Lutar pela conservação de um governo já derrotado só vai permitir que a indignação e o desejo social sejam canalizados pelos movimentos contrários ao projeto que esse governo busca simbolizar e representar politicamente. Uma canalização que tem feito, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL), liderado por Kim Katiguiri.
Além disso, a conservação do governo do PT não seria garantia sequer para a manutenção do estado atual das coisas, já que ao longo dele têm avançado políticas tão retrógradas como, por exemplo, a lei antiterrorismo, proposta em regime de urgência pela própria Dilma e por ela sancionada (uma de suas últimas medidas). Enquanto isso, mesmo depois de 13 anos da estrela vermelha no poder, as chacinas nas favelas continuam, a reforma agrária não aconteceu, o desastre em Mariana (o “Chernobyl brasileiro”) foi praticamente ignorado, a construção da usina de Belo Monte continua avançando, os direitos trabalhistas e sociais vêm sendo erodidos em nome do ajuste fiscal, as tarifas de energia elétrica e combustíveis seguem elevadas, a taxa de desemprego sobe e a inflação se mantém alta, os grandes cortes na educação comprometem bolsas, projetos, pesquisas. Não podemos esquecer que, em pouco mais de um ano do segundo mandato de Dilma, vimos todo esse retrocesso ocorrer. Apesar da possibilidade de uma aceleração desse programa já em curso por um governo encabeçado pelo ex-aliado PMDB, a continuação do governo Dilma não seria sinônimo de barrar tal avanço conservador.
Muitas pessoas temem a possibilidade de volta aos anos de chumbo da ditadura, com o retorno de um Estado autoritário. Ora, em muitas favelas e periferias do Brasil, a presença do Estado se dá através da intervenção militar do exército e da polícia militar, fazendo desses territórios zonas de produção de morte (tanatopolítica). Também já é uma realidade a repressão violenta aos protestos de rua que reivindiquem direitos e não obedeçam à ordem autorizada de identidades polarizadas que, uma contra a outra, têm permissão para protestar porque participam do jogo da cena política esvaziada. Com isso, vivemos uma situação em que não parece mais possível o dissenso e a intervenção por aqueles fora do jogo da polarização, desautorizados a protestar porque não assumem “um lado”, segundo o policiamento de si e dos outros imposto pelo consenso em vigor. O fato é que o golpe à democracia já acontece nas ruas faz tempo.
Também é interessante observar que a forma como o capitalismo contemporâneo opera requer um mínimo de liberdades individuais. No livro “O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal”, Maurizio Lazzarato reflete a partir do pensamento de Foucault:
“O neoliberalismo é, segundo Foucault, um modo de governo que consome a liberdade, e que, para se fazer, deve primeiro produzi-la e organizá-la. A liberdade não é para os neoliberais um valor natural que preexiste à ação governamental e a qual se trataria de garantir o exercício (como no liberalismo clássico), mas é algo que o mercado tem necessidade para poder funcionar. A liberdade que o liberalismo incita, solicita, produz é simplesmente o correlato dos dispositivos de segurança” (p. 29).
Na atual forma do capitalismo, cada indivíduo é transformado numa “empresa individual”, empreendedor de si mesmo, e para tanto requer um mínimo de liberdade para investir em sua subjetividade, numa subjetividade ajustada para as demandas do mercado por eficiência e competividade. O poder de sujeição do indivíduo se reinventa, sendo que agora “o homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado”, diz Deleuze, em seu “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Nesse denso ensaio, Deleuze fala da passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle. Para além do par repressão e ideologia, o capitalismo atual trabalha investindo e organizando os desejos através de modulações das liberdades permitidas, de regulações desde dentro da formação dos próprios sujeitos, mais penetrante do que somente reprimindo e disciplinando.
O mercado é hoje o principal financiador da política e usurpa o Estado para se fortalecer, criando uma indiferenciação entre o que é Público e Privado. O que acontece, por exemplo, através do financiamento privado das campanhas eleitorais, como também em qualquer outra instituição em que o sujeito que ocupe uma função pública e dela faça uso de acordo com interesses privados. Então, sendo as empresas (o mercado, a sociedade-empresa) as principais representadas na política, as quais necessitam deste contingente de liberdade para seu funcionamento, seria difícil uma redução total das liberdades individuais protegidas pelo Estado, sob pena de paralisar o funcionamento do capital. Claro que a liberdade requerida pelo mercado é limitada, sobretudo é a liberdade para consumir. Mas, o paradoxo é que este mínimo de autonomia individual, esta brecha do sistema, possibilita um ponto de partida para a reinvenção de formas de resistência e o agenciamento de novas lutas.
Digo isso não para garantir alguma segurança, mas, a título de contra-argumento aos discursos desesperados e maniqueístas que estão aparecendo por aí. Tento afirmar a possibilidade de esperança, um afeto que potencializa a capacidade de ação. Apesar da história não seguir um roteiro progressivo e linear, sendo possível, sim, um grande retrocesso na direção de uma sociedade menos livre, tal retrocesso não vem sem resistência, inclusive, em alguns casos, por parte de organizações do mercado.
O desespero e o maniqueísmo que temperam algumas análises ao redor dos últimos acontecimentos focalizam toda a nossa atenção no impeachment, deixando-nos numa situação de dependência e expectativa do que os políticos e instituições podem fazer por nós. Na história da esquerda, há toda uma tradição de lutas reivindicativas que tiveram os partidos institucionalizados e o Estado como principais mediadores para a transformação social. Contudo, no vazio de representação em que giram as instituições, esse tipo de ação se tornou limitado demais. É preciso aprofundar o pensamento e a estratégia para uma ação política mais autônoma e produtiva institucionalmente, que encontre na sociedade os protagonistas das mudanças. Uma construção política de baixo para cima, a partir do social em seus pontos de atrito e antagonismo. É o que tem acontecido, por exemplo, na luta dos estudantes que ocuparam suas escolas em São Paulo, Goiás e Rio de Janeiro, reinventado a rotina escolar e revitalizando os espaços da educação.
Não seria possível fazer isso com outras instituições, no grande horizonte de ocupar as nossas cidades? Por exemplo, pensar numa reapropriação de um hospital por parte dos seus usuários, amigos e familiares, e debater seus gastos, as políticas voltadas para ele, inclusive agir diretamente sobre a instituição de saúde para melhorar as condições de acesso, de cuidado, de gestão democrática. Não seria também possível a construção de plataformas eleitorais municipalistas que possibilitem mandatos com mais participação social, como aliás se vem tentando em algumas cidades, como em Belo Horizonte ou Nova Iguaçu?
Por fim, realmente não podemos deixar de lado as tensões da macropolítica, como se nada tivéssemos a ver com elas. Porque também estamos sujeitos a ela. Contudo, este texto objetiva justamente descentralizar a atenção deste plano que parece ocupar espaço demais nos últimos tempos, e chamar a atenção para outros caminhos, em que possamos voltar a ser agentes das lutas e não apenas espectadores. Enquanto não formos capazes de reconquistar espaços de mais autonomia, a esfera macropolítica da disputa do Estado continuará sendo um grande centro de poder que nos sequestra a agência, um poder capaz de mandos e desmandos sobre as nossas vidas. Enquanto isso, os mesmos dramas poderão estar sempre se repetindo.
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