UniNômade

Contra-Plano Piloto

Crítica do filme Branco sai, preto fica (Adirley Queiroz, DF, 2014).

Por Wellington Cançado, professor da UFMG e editor de piseagrama.org

brancosaipretofica

n.º 7 – “passeio”, da piseagrama

“Mas não existe documentário de ficção científica”[i], escreveu Jean-Louis Comolli em Ver e Poder. Se Branco Sai Preto Fica tivesse sido filmado para simplesmente contrariar Comolli, já seria um feito enorme. Mas Adirley Queirós e seus amigos-personagens da Ceilândia tinham um plano ainda mais ambicioso: explodir Brasília.

Mito de refundação do país e “instrumento que iria trazer, para a civilização, um universo irrevelado, que ignorasse a realidade contemporânea e se voltasse, com todos os seus elementos constitutivos, para o futuro”[ii], Brasília nunca atingiu seus objetivos de apagamento do real e instauração de um futuro fictício. Apesar da “tomada de posse do território”[iii] e do processo de modernização alavancado com a construção da nova capital, a realidade se impôs com toda força e contradição e, em 1958, mesmo antes da conclusão das obras, as cidades-satélites foram forçosamente instituídas pelos levantes populares para acomodar as milhares de famílias que viviam em torno do Plano Piloto e ameaçavam constantemente ocupá-lo.

Em Ceilândia, anunciada como a solução definitiva para a periferia ilegal da periferia legal, e que em tradução literal do burocratês e do inglês significa algo nefasto como Terra da Campanha de Erradicação das Invasões, o precário cartaz do Movimento dos Incansáveis Moradores da Ceilândia reivindicava, já em 1971, ano de sua fundação, o direito de posse e ocupação com a frase “Construímos Brasília e queremos continuar nela”. Quatro décadas depois, o Coletivo de Cinema em Ceilândia se propõe a performar[iv] outra possibilidade: “Construímos Brasília e queremos destruí-la”.

Voltemos a Comolli, que na frase inicial se refere às implicações do registro do real como referencial no cinema documentário e a possibilidade da ficção como esquivamento dessa realidade. Para o autor, “os filmes documentários não são apenas ‘abertos para o mundo’: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo”[v] e, portanto, a ficção científica seria a “ficção totalizante do todo”[vi], sempre propondo versões fechadas e acabadas – uma forma de utopia sem o conteúdo utópico, por assim dizer. E se os roteiros de ficção são cada vez mais “fóbicos” e controlados, “temendo as fissuras, o acidental e o aleatório”, é porque triunfam o projeto, o funcionalismo, a objetividade, a precisão, as máquinas. Triunfa pois o “científico” do cinema. E é contra isso que “o não-controle do documentário surge como condição de invenção. Dela irradia a potência real deste mundo”.[vii]

Mas em Branco Sai Preto Fica é flagrante a coincidência ficção-mundo: afinal, o que são as cidades-satélites se não espaços reais, “o mundo” mesmo que se contrapõe à idealização e desafia incessantemente a autoridade do controle funcionalista, maquínico e segregador do Plano Piloto? De Ceilândia, uma das “cidades de rebelião”, termo de James Holston[viii] para as instauradoras ocupações rebeldes no Planalto Central, emerge uma versão híbrida de cinema, habitada por seres-próteses e misto de documentário e ficção científica. Uma espécie de manifesto ciborgue do cinema-satélite, pois “a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão de ótica”[ix].

Sabemos que, se a ideia de progresso científico e tecnológico, impregnada de socialismo utópico, gestou os projetistas de mundos perfeitos e de Planos Piloto, possibilitou também o surgimento de seu negativo: distopias nas quais as criações pretensamente emancipatórias do presente convertem-se em instrumentos desumanos de erosão do futuro. Nesse sentido, utopia e distopia são duas versões antagônicas da mesma modernidade, exaustivamente exploradas pela literatura e pelo cinema de ficção científica.

Enquanto a utopia constitui um poderoso mecanismo político antecipatório da imaginação moderna, extrapolando o real rumo a um futuro radicalmente distinto do presente, as distopias reinventam o futuro problematizando criticamente as forças sociais e estruturas de poder atuantes no presente, operando como narrativas antiautoritárias e insubmissas, territórios dos “sem Estado”. E é na reflexividade distópica de Branco Sai Preto Fica que podemos então entender a conexão “natural” entre o documentário e a ficção científica engenhosamente arquitetada por Adirley Queirós. Pois é exatamente do que resiste e resta no presente vivido que o diretor vai inventar, em contraposição dialética com a ficção (científica), a sua versão “docfiction” de cinema e, em diálogo com a cultura cyberpunk, um gênero particular: o “cyberblack”.

Em Branco Sai Preto Fica o choque de temporalidades e espaços discrepantes – futuro vago, passado latente e monotonia presente – se articula sem constrangimentos. O passado, lugar mitológico e tempo de toda vivacidade é também o ponto de origem da barbárie e do trauma, território da memória mas fundamentalmente do real. E enquanto no futuro – chance de reparação histórica das violências contra pobres e negros praticadas pelo Estado – banais containers de lata usados na construção civil atual são máquinas de viagem no tempo, no presente prevalecem as ruínas diurnas e a solidão dilatada das madrugadas. A arquitetura etérea e futurista do modernismo é obliterada pela tectônica informe dos interiores sombrios enclausurados e gradeados. A circulação fetichizada no Plano se revela imobilidade e acessibilidade comprometida; a síntese cristalina do urbanismo-avião dá lugar aos estilhaços corroídos dos aglomerados-satélites.

Mas mesmo ao reiterar-se como impossibilidade aos Sem-Passaporte, Brasília, em Branco Sai Preto Fica, há muito deixou de ser somente um enclave que suga as potências da periferia para se tornar um método a ser investigado por ela. O plano, a noção de projeto e sua violência intrínseca, o dualismo invenção-destruição constituinte do modernismo e os atributos utópicos de sua criação estão incorporados como procedimentos insurgentes em um combate simbólico em curso. Como se a almejada (e elitista) “inteligência brasileira”[x], híbrido de racionalidade cartesiana e “organicidade tropical”, se realizasse como rebelião tácita em um cinema de retomada feito por pessoas reais que com a vida contribuíram para a construção dessa monumental mise-en-scène territorial e cuja utopia, agora, é reencenar o mito de origem.

Brasília se revela então o que talvez sempre tenha sido, ficção social mais do que cidade concreta; entidade onipresente de onde emanam ordens, regras e protocolos de acesso. O “ato desbravador, nos moldes da tradição colonial”[xi], tornou-se finalmente o motor do desenvolvimento nacional, eufemismo para irradiação e aceleração da catástrofe. Não é mera coincidência, portanto, que Brasília seja inimigo a ser combatido, lugar a ser explodido, imaginário a ser superado não somente por candangos historicamente maltratados mas por todos aqueles que sofrem as consequências desse projeto etnocêntrico devastador no qual pretos-etc saem e brancos ficam. Como bem disse Eliseu Lopes sobre o processo de retomada do território pelos Guarani Kaiowa: “estamos enfrentando Brasília”[xii].

Aceitando portanto que a cosmologia “contra o Estado”, característica do “pensamento selvagem”, tornou-se um vetor de resistência comum a diversos coletivos que entendem preponderantemente o cinema como uma forma esquiva à instituição e ao poder[xiii], podemos conceber Branco Sai Preto Fica como uma espécie de “projeto selvagem”, um contra-Plano Piloto que atualiza as potências cartesianas negadas aos habitantes das cidades-satélites e a insubordinação inata dos pioneiros, ao mesmo tempo que incorpora as forças sensíveis e imaginárias que não se deixam domesticar, típicas do cinema índígena[xiv], para se constituir no limiar entre o que foi descartado e o porvir.

O cinema-satélite de Adirley Queirós seria, portanto, na partilha com o cinema indígena atual (no que os aproxima e no que os separa), “um modo de ver” contra as relações instituídas de poder. Pois como escreveu Marcio Goldman, “não há nenhuma razão para imaginar que os mecanismos ‘contra-Estado’ isolados por Pierre Clastres nas sociedades ameríndias tenham sua existência limitada a este ou a algum ‘tipo’ de sociedade. Trata-se de processos micropolíticos muito vivos mesmo nos sistemas políticos ocidentais, envolvendo uma resistência pragmática”[xv].

E é nesse cruzamento arriscado entre os tipos distópicos “sem Estado” e os coletivos “contra o Estado” que Branco Sai Preto Fica intensifica a busca por uma política da imagem capaz de inventar outras formas de vida no e pelo cinema.

 

Publicado originalmente no catálogo do 18° Forumdoc – Festival do Filme Documentário e Etnográfico | Fórum de Antropologia e Cinema, Belo Horizonte, novembro de 2014. (Disponível para download em http://www.forumdoc.org.br/catalogo-forumdoc-bh-2014/)

NOTAS

[i] COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p.170.

[ii] KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch, 1975, p.71.

[iii] COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das artes, 1995, p. 285.

[iv] BRASIL, André . A performance: entre o vivido e o imaginado. In: XX ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 2011, Porto Alegre. Anais do XX Encontro Anual da Compós, 2011.

[v] COMOLLI, Jean-Louis. op. cit., p.170.

[vi] ibdem, p.172.

[vii] ibdem, p.177.

[viii] HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 257.

[ix] HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-feminism in the late Twentieth Century. In: Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York; Routledge, 1991, p.149.

[x] BENSE, Max. Inteligência Brasileira. Uma reflexão cartesiana. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[xi] COSTA, Lúcio. op. cit., p. 285.

[xii] Seminário A Cosmociência Guarani, Mbya e Kaiowa, Conservatório da UFMG, 11 e 12 de setembro de 2012.

[xiii] CAIXETA DE QUEIROZ, R. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. Revista Devires, Belo Horizonte, v. 5, n. 2, jul./dez. 2008, p.117.

[xiv] idem.

[xv] GOLDMAN, Marcio. Pierre Clastres ou uma Antropologia contra o Estado. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2011, v. 54 nº 2. p.579.

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