Por Bruno Cava e Sandra Arencón Beltrán
—
foto: Estrella Digital
—
No principal debate eleitoral, Pablo Iglesias usou o último minuto para pedir duas coisas. Primeiro, pediu que os cidadãos não se esqueçam da corrupção, dos despejos, do desemprego, dos aposentados, dos cortes da educação, da situação da saúde. E segundo, que sorriam para o 15M, as praças, os ativistas, os desempregados, os aposentados, os pequenos empreendedores[1]. O chamado síntese do líder do Podemos, – que se encerra, justamente, com o Sí se puede, – aponta diretamente ao movimento dos indignados que, desde 2011, deslocou definitivamente o cenário político do país.
Mas em que medida o Podemos e Iglesias, de fato, exprimem a carga democratizante do movimento quinzemaísta? Pelo menos no discurso, naquele minuto crucial, estavam presentes os seus dois momentos-chave. De um lado, a face destituinte, manifestada no grito de praças e passeatas: “não nos representam!”, “não vote neles” e “chamam de democracia mas não é”. Do outro, a face constituinte, a afirmação da alternativa em estado nascente, o “nós podemos”, misto de ilusión (reencantamento) e sua potência, e da disseminação de contrapoderes sociais ante a casta política e financeira. Eduardo Galeano, à acampada da Praça Catalunha, em Barcelona, falava do mundo novo que já pulsa na barriga deste. O escritor uruguaio realçava assim a positividade do 15M: o “sim” maior de reinvenção e desejo, por trás do “não” à corrupção, à velha política e às políticas de austeridade receitadas pela troika[2].
Quatro anos depois, referenciando-se no 15M, o Podemos ficou em terceiro lugar nas eleições nacionais espanholas, ultrapassando a margem dos 20% dos votos. A votação do Podemos ficou um pouco atrás dos dois partidos tradicionais, Popular (PP) e Socialista Operário (PSOE), e à frente de sua própria versão descafeinada, o Ciudadanos (C’s), uma agremiação fundada em 2005, que promete mudar sem arriscar, sem “aventurar-se” como faz o polemista de rabo de cavalo que não respeita o bom tom. O resultado das eleições do último dia 20 marcou o fim definitivo do bipartidarismo estruturante do Régimen de 1978, o quadro institucional da transição depois do fim da ditadura franquista. O fim do bipartidarismo corresponde, também, ao desencanto diante da falsa polarização entre PP e PSOE. No debate cara a cara, nada indicava com mais clareza o esgotamento dessa polarização do que a troca de acusações e o bate boca entre seus candidatos, Mariano Rajoy e Pedro Sánchez, sem qualquer discordância de fundo.
Enquanto isso, em paralelo, a sociedade experimenta um momento de envolvimento vivo e disseminado com as eleições e a política em geral, de maneira transversal por bairros e diferentes segmentos sociais, independente de participação direta ou não no acontecimento quinzemaísta. Não é difícil perceber que o bate papo saiu da zona de conforto. As conversas têm experimentado uma mudança explícita que é possível reconhecer no cotidiano, no ônibus, na fila do supermercado, nas reuniões de família e amigos, por fora de redes e coletivos politizados, saltando do balcão do bar para ocupar outros espaços.
Há alguns meses, contudo, o trem parecia ter descarrilado de vez para o Podemos. Depois de vários erros estratégicos por conta própria e ter sofrido uma feroz campanha de desconstrução, à direita e à esquerda, o encanto parecia definitivamente quebrado. Muitos apoiadores de primeira hora lhe haviam virado as costas e a ilusión escorrera pelas mãos. Tendo despencado de quase 25% das preferências nas pesquisas no começo do ano, para menos de 14%, o partido liderado por Iglesias parecia fadado a ser apenas mais uma sigla figurante nas eleições gerais de 2015, correndo o risco de ficar atrás de seu gêmeo comportado, o C’s. Como o Podemos revigorou-se? Como funcionou essa impressionante campanha na reta final? Uma religação direta com a indignação do 15M, nesse propósito, foi fundamental.
A remontada, como ficou conhecida a retomada do Podemos, só pode ser explicada se voltarmos alguns meses, para as eleições municipais realizadas em maio deste ano. O 24M de 2015 acendeu a luz amarela para a casta político-financeira que comanda a economia espanhola e europeia, quando Manuela Carmena e Ada Colau se tornaram prefeitas das maiores cidades da Espanha, dois dos principais resultados obtidos pelas plataformas municipalistas baseadas no movimento dos indignados. Ada, 41 anos, militante do movimento da moradia, porta-voz da Plataforma dos Atingidos pelas Hipotecas (PAH), venceu as eleições em Barcelona sem qualquer concessão à velha política representativa. Manuela, por sua vez, juíza aposentada de 71 anos e sem tradição partidária, elegeu-se em Madrid, depois de uma inovadora campanha que ganhou horizontalmente redes[3] e uma aliança final com o PSOE.
Até o 24M, a cúpula diretora do Podemos entendia o 15M como um “significante vazio”. O termo foi sacado das teorias sobre hegemonia e populismo do argentino Ernesto Laclau e se reporta à abertura de uma brecha no horizonte de sentido que rege o sistema político, provocada por crises e convulsões sociais e econômicas. Segundo essa leitura, o 15M de 2011 teria iniciado um processo destituinte da velha ordem representativa espanhola. A partir daí, o 15M passava então a ser atravessado por significados flutuantes e forças dispersas, segundo uma ferrenha digladiação de narrativas em busca da hegemonia discursiva. É como se o 15M passasse a não pertencer a ninguém, um significante em disputa. Caberia ao Podemos, portanto, servir de instrumento político para forjar uma unidade de equivalência entre as várias tendências destituintes do 15M, de modo a levá-lo a seu momento construtivo, à efetiva ocupação do poder. A principal conclusão política a partir dessa leitura laclaulista do movimento do 15M estaria na necessidade de formular uma alternativa de poder diante da crise da representação, isto é, um projeto positivo de ocupação do estado, a fim de responder à crise político-econômica, e impedir que ela venha a ser restaurada pelos poderes constituídos existentes[4].
Tal ênfase na construção hegemônica, de um ponto de vista politólogo, definida como juste ligne do Podemos desde o congresso de Vista Alegre, em outubro de 2014, levou o partido a fazer uma progressiva clivagem entre o momento destituinte (os protestos) e o institucional (as eleições). Esse diagnóstico, aliás, tem sido compartilhado de tempos em tempos pelos críticos do ciclo global de lutas deflagrado com as revoluções árabes de 2010-11[5]. O efeito da avaliação podemita foi, por um lado, aprofundar a crítica de coletivos e ativistas do 15M que seriam voluntaristas, românticos e horizontaloides; por outro, delegar-se a “prerrogativa da estratégia”, ou seja, cindir meios e fins e reivindicar um mandato comissário para vencer as eleições. Dessa maneira, a “máquina de guerra eleitoral” proclamada pelo podemita Iñigo Errejón mais parecia um aparelho de captura e amortecimento do 15M, do que o seu próximo passo necessário. Como consequência, em meados de 2015, ao derreter diante da “desconstrução” pelos adversários, as redes impulsionadas pelo 15M não vieram ao socorro do Podemos.
A vitória de Ada, Manuela e outras representantes das plataformas municipalistas, no entanto, colocou em xeque a linha traçada em Vista Alegre. No 24M, em vez da tese hegemonista/populista, prevaleceu o dito “modelo de Barcelona”[6], de um novo municipalismo[7], quer dizer, formações mais transversais, fragmentárias e contingentes, do que a tentativa de solidificar uma estratégica discursivo-midiática unificada aspirando à hegemonia. Colocando em termos esquemáticos, o arranjo de forças vencedor não consistiu em disputar o centro do tabuleiro em busca das ditas “maiorias sociais”, como pretendia Iglesias e o Podemos, mas ganhar pelas bordas, a partir das minorias, ou melhor, dos devires minoritários – para usar um conceito de Mil platôs (Deleuze e Guattari). Esta divisão pode parecer esquemática demais, mas é pertinente enquanto instrumento prático-teórico: por exemplo, logo depois do 24M, se pôde diagnosticar que “o consenso dirigista está em frangalhos, uma vez que as plataformas municipalistas não se basearam em projetos hegemônicos comandados por cúpulas dirigentes, mas por um efeito sinergético de toda uma ecologia de mobilizações”[8].
A remontada do Podemos aconteceu em meio a dois deslocamentos em relação às práticas pré-24M. O primeiro deslocamento foi, justamente, deixar de lado a supervalorização do discurso populista/hegemonista, que já se mostrou uma hipótese teórica politicamente errada. Na campanha para as eleições de dezembro (20D), Ada assumiu posição na linha de frente da campanha do Podemos, na forma da coligação catalã En Comú Podem, e trouxe as ruas, praças, movimentos diretamente ao primeiro plano[9]. Pelo menos na campanha, cessou a clivagem entre eleição e ativismo, e cessaram as tentativas de assumir um protagonismo estratégico no lugar dos movimentos de luta. Mais do que a figura de Ada, confluíram com Podemos as constelações de grupos e coletivos já existentes, como a PAH, o midiativismo, as Mareas. Em vez de conectar-se de maneira abstrata por uma engenharia do discurso, o Podemos se ligava assim à força do 15M através de uma organização de novo tipo, de um “sindicalismo social”[10]. A referência direta às lutas, além disso, foi o principal ponto de diferenciação que Ada mobilizou com grande êxito contra o Ciudadanos[11].
Com tudo isso, a ilusión retomou um sentido material, indispensável para que se produza o transbordamento. Deixou de ser apenas engodo e captura, – o que já tinha dificuldades de seduzir alguém[12], – para preencher-se dos sentidos extravasados pelo 15M que, antes de ser “significante vazio”, é rede de indignações, êxodo. A campanha positiva do Podemos pôde, com fundo real, apelar tanto ao rechaço da casta e da corrupção, quanto a uma nova imaginação sensível, indispensável para a renovação da própria democracia. Não à toa, os teóricos mais agudos sobre o novo momento constituinte por que passa a Espanha expliquem que não se trata exatamente de uma “nova política”, mas de uma mudança do próprio conceito de política, suas fronteiras e conteúdos[13].
O segundo deslocamento da remontada foi na direção da plurinacionalidade, algo inédito para o partido fundado por professores de uma universidade em Madrid. O Podemos traçou alianças com forças das comunidades autónomas abrindo espaço na agenda, por exemplo, para consultas plebiscitárias sobre a própria independência. Além do primeiro lugar na Catalunha, as coalizões de Podemos tiveram bons resultados no País Basco (1º lugar), na Comunidade Valenciana (2º) e na Galícia (2º), todas regiões com relativa autonomia e atuação de forças independentistas.
Sobre o assunto, pensando desde América do Sul, Salvador Schavelzon apontou anteriormente a operação política do Podemos em amortecer e, no limite, neutralizar a pauta plurinacional na Espanha[14]. O antropólogo aponta corretamente como, ao inspirar-se na experiência recente sul-americana, a cúpula podemita realiza uma reductio das práticas complexas do comum e de autonomia, – tão presentes no ciclo de lutas de quéchuas, aimarás e outros grupos indígenas na América andina, – num simples discurso progressista pelo social. A consequência teórico-política desse reducionismo consiste em converter a riqueza cosmopolítica do constitucionalismo plurinacional num multiculturalismo pacificado, a serviço dos projetos neodesenvolvimentistas – repercutindo, por sinal, uma tendência da linha oficialista dos governos desses países. Ademais, esta também pode ser entendida como ainda outra deficiência decorrente de uma tradução malsucedida da “razão populista” de Laclau na Espanha pós-15M, cuja multiplicidade constitutiva indicia antes a plurinacionalidade do ciclo insurgente andino[15], do que sua recuperação “social-progressista”.
Na campanha da remontada, contudo, tudo isso se deslocou. Enquanto o PP se assume abertamente como partido do Rei, o PSOE se mostra um partido inexistente, C´s apresenta uma mudança meramente estilizada; o Podemos parece ocupar, pelo menos como potencialidade, o papel de instrumento nacional para a realização da plurinacionalidade além do nível regional. Esta é uma questão em aberto. É possível mesmo que, num futuro imediato, a referida abertura termine neutralizada no interior do Podemos, em face de novos acordos realizados desde a cúpula (por exemplo, com o PSOE). A despeito disso, fica o ensinamento que parte da força da remontada se construiu sobre essa tendência, levando o Podemos a mudar posturas. Isto também sinaliza um 15M indomável segundo discursos unificadores do tipo nacional-popular. Sucede, portanto, mais um episódio do quiproquó entre os laboratórios de lutas da América do Sul e sul da Europa, duas séries heterogêneas que não cansam de interferir-se em seu desentendimento mesmo.
A consequência imediata da eleição do 20D foi virar de ponta cabeça o sistema representativo espanhol, uma vez que nenhuma força política chegou perto de conquistar maioria. Diante da tentativa de compor um grande bloco de governabilidade, aos moldes de uma Große Koalition, à moda alemã, já desponta a proposta de tomar a conjuntura pelo avesso, do ponto de vista das lutas, para fomentar um pacto pela ingovernabilidade, a fim de explorar as contradições, brechas e medos do poder constituído, nacional e europeu[16]. Impedir, assim, a restauração da troika nos termos de um “extremismo de centro”, uma tarefa que Podemos bem poderá assumir se não cair na tentação de aliar-se a velhas forças políticas e suas agendas. Seu êxito provavelmente dependerá, como indicam o 24M e a remontada do 20D, do aprofundamento das tendências confluencistas, municipalistas e plurinacionais, em suma, do devir-15M do Podemos.
Bruno Cava (Rio de Janeiro) e Sandra Arencón Beltrán (Sevilha) são organizadores de Podemos e Syriza; experimentações políticas e democracia no século 21 (AnnaBlume, 2015). Os dois participam da rede Universidade Nômade.
—
[1] https://www.youtube.com/watch?v=_38NtXXDR0Y
[2] https://www.youtube.com/watch?v=mdY64TdriJk
[3] “Diez claves de la #ManuelaManía”, Bernardo Gutiérrez, http://www.yorokobu.es/diez-claves-manuelamania/ . Em português: https://dev.integrame.com.br/tenda/dez-pontos-chave-da-inovacao-de-manuelamania/
[4] “O Podemos entre multidão e hegemonia; Negri ou Laclau?”, Bruno Cava, In “Podemos e Syriza; experimentações políticas e democracia no século 21”, São Paulo: AnnaBlume, 2015. p. 123-132. Em espanhol: http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/03/podemos-entre-hegemonia-y-multitud.html
[5] Para a contextualização do caso espanhol na crise do capitalismo global e no ciclo global de lutas, “Da crise capitalista à reivenção da democracia na Espanha e na Grécia”, Bruno Cava e Sandra Arencón Beltrán, In “Podemos e Syriza”, op. cit. p. 7-38.
[6] “Piu di Podemos, vince il modello Barcelona”, Loris Caruso, http://ilmanifesto.info/piu-di-podemos-vince-il-modello-barcellona/
[7] “O municipalismo do Barcelona em Comum”, Alexandre Mendes, https://dev.integrame.com.br/tenda/o-municipalismo-do-barcelona-em-comum/
[8] “Ada Colau e Manuela Carmena: a indignação ao poder”, Bruno Cava, http://www.quadradodosloucos.com.br/5018/ada-colau-e-manuela-carmena-a-indignacao-no-poder/
[9] Le elezioni spagnole le ha vinte Ada Colau”, Luca Cafagna, http://www.dinamopress.it/news/le-elezioni-spagnole-le-ha-vinte-ada-colau
[10] “La remontada di Podemos: la sfida della radicalità democratica e plurinazionale”, Andrea Moresco, http://www.euronomade.info/?p=6396
[11] https://www.youtube.com/watch?v=dCrhmW2LRSI
[12] “Un problema con la ilusión”, Alberto Manconi, http://www.euronomade.info/?p=5794
[13] “Elecciones en España: los efectos de 15M, nuevas formas de pensar el poder”, entrevista com Amador Fernández-Savater, http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/12/elecciones-en-espana-los-efectos-de-15m.html
[14] “Podemos, Sudamérica, y la república plurinacional de España”, Salvador Schavelzon, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=195069. Em português, In “Podemos e Syriza”, op. cit., p. 91-115, e também: https://dev.integrame.com.br/tenda/podemos-america-sul-e-republica-plurinacional/
[15] “Podemos y Latinoamérica, historia de un desacuerdo”, Bruno Cava e Salvador Schavelzon, http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/08/podemos-y-latinoamerica-historia-de-un.html?view=classic
[16] “Una politica dell’autonomia per andare oltre l’ingovernabilità”, entrevista com Raul Sánchez Cedillo, http://www.globalproject.info/it/in_movimento/una-politica-dellautonomia-per-andare-oltre-lingovernabilita-intervista-a-raul-sanchez-cedillo/19753