Por Antonio Negri, resenha do último livro de G. Agamben: L’uso dei corpi (Homo sacer IV, 2), Neri Pozza Editore, 2014, publicado no il manifesto, 19/11 | Trad. UniNômade
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Este é um grande livro metafísico por Giorgio Agamben, que explicitamente conclui a sequência de Homo sacer. Mesmo porque, sendo metafísico, é também um livro político. Em muitas páginas, ele nos traz de volta o único Agamben político que conhecemos (em que político significa fazer e não simplesmente conjecturar sobre a dominação à maneira dos juristas e ideólogos), aquele Agamben de A comunidade que vem [ed. portuguesa pela Presença, 1993, download PDF]. Mas traz de volta um Agamben político que é o avesso da Comunidade que vem. O problema sempre é a conquista política de uma vida feliz. Contudo, vinte anos depois, essa pesquisa não se conclui com a construção de uma comunidade possível, nem com a definição de uma potência — ou, pelo menos, não considerando como tal a “potência destituinte”, esperança em que conclui a pesquisa de Agamben. Nesta perspectiva, a felicidade consistiria na singular contemplação de uma “forma de vida”, uma que recomponha zoé e bíos e, de outra parte, desative a separação imposta pela dominação entre os dois termos.
Na “forma de vida” assim definida, a potência se apresenta como uso inoperoso; nela, a “vida nua” não seria então mais separável por parte do poder; em vez disso valeria o princípio do comum: “comunidade e potência se identificam sem resíduos, porque a inerência de um princípio comunitário em toda potência é função do caráter necessariamente potencial de toda comunidade”. Somente então teremos de novo uma política da felicidade, quando começa o difícil: “somente agora”, quando começa aquele futuro… Se tudo isso se desdobra no tempo, num tempo ainda não terminado — o percurso exige uma estranha teleologia: uma forma de vida que seria, também, uma forma de esperança? De qualquer modo, já na advertência do início do livro, Agamben nos arranca qualquer ilusão — este livro não é “nem um novo começo nem uma conclusão”, a teoria “apenas remove o campo dos erros”, e quando os reduz à inoperosidade, a teoria se abre à prática.
Ausência de movimento
Se as coisas estão assim, vale em primeiro lugar fixar um instrumento, construir um ponto de vista que persiga aquele horizonte ainda infindo. Como conferir futuro à forma de vida e à potência da inoperosidade: isto é, à “potência destituinte”? A trama do livro se concentra nessa tarefa. Retornemos a um momento anterior. É sabido que na vida nua reside a condição do exercício do poder. É na exceção que o homo sacer está incluído/excluído da cidade e é sobre a excepcionalidade que o poder se funda. Esta, de tom schmittiano, é nada menos do que uma nova maneira de falar Thomas Hobbes. Sobre este nó, todavia, a insistência foi extrema. Como sair dessa condição? A Comunidade que vem, nos anos 1990, nos mostrava o negativo, a falta, revestida e coberta de desejo — hoje, em vez disso, só se tem a potência destituinte, a convicção de que não há alternativa para uma fuga no enfrentamento com o poder. O poder é dominação. Isto não assume dinâmica interna nem relação, como sustenta Agamben. Para ele, não há movimento: então, todo poder constituinte não é heterogêneo, mas sim consubstancial ao poder constituído; e todo arché é ao mesmo tempo origem e dominação, fonte e ordem — por isso, essas relações devem ser em todo caso desativadas. Porque, na perspectiva de uma arqueologia filosófica, se poderia apenas chegar a um ponto de origem ambíguo, e segundo Agamben, se trata exatamente de desativar essa origem. A desativação é a produção da inoperosidade. Resta um problema: e se, em vez disso, a relação arquetípica, origem-comando, fosse somente um modelo de mistificação, um modelo de legitimação de um poder soberano? É a esta a questão que deve responder o filósofo político: o que fazer? como abrir a temporalidade?
No passado, neste escopo Agamben se apoiava em Heidegger — agora não mais. Já em O reino e a glória [ed. brasileira pela Boitempo, 2012], o distanciamento de Heidegger parecia particularmente forte. Aqui, ele é confirmado, e é confirmado de maneira definitiva. A ruptura, na verdade, se refere à própria dimensão do ser heideggeriano, a sua relação constitutiva temporal, a tonalidade emotiva fundamental que domina o pensamento de Heidegger. É uma possibilidade ainda muito densa, muito plena de temporalidade: ela associa o homem à humanidade como tarefa e a determinação sempre pode abrir-se numa indicação política, e numa tarefa política (afirmativa? real? o nazismo de Heidegger decerto o foi). E também quando o vivente é reduzido, no último Heidegger, ao ser-aí que afirma a sua animalidade e faz dela a possibilidade do humano, Agamben considera tudo isso ainda interno à história metafísica do ser, imputada à incapacidade de subtrair-se da relação e da obra. Que extrema, mas também estranha conclusão! Para evitar uma resposta à questão sobre a temporalidade, recuar também ele — Agamben — à animalidade, e fazendo retroceder o problema, fazendo-o repousar sobre um naturalismo mítico. O inteiro Intermezzo II mostra em Heidegger a desarticulação da temporalidade e do projeto como definitivamente contraditória e indissoluvelmente ligada à incapacidade de distinguir o “ser-projetado” e o “ser-portado”.
Os pares irredutíveis
Também em Foucault, Agamben havia se apoiado para tentar resolver o problema da temporalidade. Agora não mais. Igualmente violenta é, na verdade, a ruptura aqui com o pensamento de Foucault e com a temática biopolítica. Insuportável para Agamben é o fato que ele havia evitado o confronto com a história da ontologia que Heidegger havia se colocado como tarefa preliminar (mas não era exatamente isso que era reprovado em Heidegger?). A forma de vida em Foucault não se destaca nunca da relação consigo e com os outros, remetida a uma subjetivação ética cuja organização acontece mediante relações estratégicas — tudo isto é rejeitado por Agamben. É somente no ingovernável, no inoperoso, portanto, do ponto de vista ético, que a vida se dá. No Intermezzo I, Agamben acerta as contas com Foucault e, de novo, o faz ao redor do par poder constituinte x poder constituído, subjetivação x governo, que constitui para ele uma relação ontologicamente irredutível. “O que Foucault parece não ver… é a possibilidade de uma relação consigo e de uma forma de vida que não assuma nunca a figura de um sujeito livre; isto é (se as relações de poder se referem necessariamente a um sujeito), uma zona da ética totalmente subtraída das relações estratégicas, um ingovernável que se situa além tanto dos estados de dominação quanto das relações de poder.”
Não era difícil imaginar que iria terminar assim, na repetição de uma fuga do ser, quando bater-se ao redor do nada seria reconvertido em felicidade. Agamben, depois de tantos anos, corre o risco de reencontrar-se com Massimo Cacciari. Já era de causar suspeita que a inoperosidade devesse realizar-se como um sexo sem alegria de gerar, em que somente o contato, pontual e desesperado ao redor do nada, pudesse portar um testemunho do ser. Os volumes precedentes, o inteiro percurso de Homo sacer já causavam suspeita disso. Agora está dito. E quanta dor no interior desse percurso.
O problema da técnica
Mas tomemos uma das derivas da inoperosidade. Tomemos, por exemplo, a afirmação de que o poder constituinte está inteiramente ligado ao que é imanente àquilo que o constitui. O poder constituinte é, antes de tudo, luta contra o poder constituído: certo, mas também luta contra si próprio. O poder constituinte é, sempre, desejo, movimento, relação de força. No biopolítico, ele foi reconduzido ao conceito de trabalho vivo, e foi assim colocado numa relação que o torna, ao mesmo tempo, assimétrico a respeito do poder constituído, e decisivo não apenas ao requalificar a realidade deste último, mas também em superar-lhe a determinação. Se a deriva inoperosa de Agamben é entendida como esclarecimento desta dinâmica constituinte e, portanto (sem que ele o queira), a esclarecer-lhe também o efeito destituinte nela vigente, essa deriva é útil.
Existe outro ponto particularmente interessante no livro e é a análise largamente levada por Agamben sobre o pensamento heideggeriano da técnica. Realiza essa história desde longe, Agamben, desde a figura do escravo assim como é definida em Aristóteles — até chegar a conclusões que revolvem a destinalidade niilista da técnica em Heidegger. “A escravidão está para o homem antigo como a técnica para o homem moderno: ambas, assim como a vida nua, guarnecem o limiar da condição verdadeiramente humana, e ambas se revelaram inadequadas nesse escopo, a vida moderna se revelando no final não menos desumana do que a antiga.” Apesar disso, atrás da constatação desconsolada, existe aqui uma retomada (finalmente!) da corporeidade, porosidade, ergon (trabalho) enquanto uso operoso do corpo — se a técnica tem um destino eticamente negativo, se tem apesar disso, aqui, e pela primeira vez, uma retomada do corpo em relação ao destino, uma “instrumentalidade animada”, atrás do que aparece com força aquela mesma relação constitutiva-destitutiva que o poder constituinte propunha. Seria uma reapropriação do capital fixo da parte do trabalho vivo?
E ainda, quando queremos experimentar o mundo como bem supremo, quando, baseando-se na recusa da propriedade, do próprio, reconhecemos o uso em relação ao inapropriável — também nesse caso aquela ambiguidade intrínseca da relação se despedaça: porque, de um lado, existe no uso o risco de anular-se no inapropriável; do outro , dentro dessa tensão do inapropriável, reconhecemos a enorme positividade do ser comum da potência. Ao animal cabe a primeira destinação, ao homem a segunda. O franciscanismo vivenciou essa alternativa.
E é assim ao longo do livro inteiro, onde a cada vez a relação coloca com toda a sua força um operar que confronta o efeito negativo da dominação, que o devora e o destrói. A cada vez nos encontramos diante da alternativa de fechamento da relação, um fechamento que leva a um fora da própria relação, e na ilusão abstratamente lógica de estar fora de qualquer relação — submergindo assim numa espécie de béance, uma inoperosidade enquanto vácuo impossível de ser preenchido — noutras palavras, como em toda experiência radical de imanência (como em Spinoza), ao encontrar o outro chifre da contradição, aquele da plenitude operosa, ética e política da beatitude.
O fundamento do sujeito
A mim, que sou marxista, essas parábolas agambenianas causam o efeito de assistir a um espetáculo em que alguém pegou o problema e não quer, melhor, não pode mais resolvê-lo. O que quer dizer desativar o dispositivo do operar? Para um marxista, significa desativar a relação entre dominação capitalista e trabalho vivo: uma relação que está sempre fechada dentro do capital mas que, ao mesmo tempo, está sempre fora, assimétrica, autônoma em relação a ele — uma relação que o trabalho vivo mostra que está fora da medida, desmedida do lado da produtividade que somente o trabalho vivo produz. Pode o trabalho vivo desligar-se do capital, ou ser desligado do capital? Pode sim, organizando-se e rompendo a relação. Uma ruptura nunca absoluta, mas que sempre se repete e se repetirá, inscrevendo-se ontologicamente na história do ser. Recusar-se a ver esta relação como o único destino presente ao operar é o defeito de Agamben.
Apesar disso, Agamben, neste trabalho, definiu de maneira cristalina e positiva a situação atual da pesquisa ontológica. Depois de Heidegger, no pós-moderno, a ontologia se define não mais como o fundamento do sujeito, mas como uma máquina linguística, prática e cooperativa, como tecido da praxis, e o dispositivo ontológico como eixo de recomposição constituinte do operar e da linguagem no comum. Esta requalificação da ontologia leva a qualquer coisa menos ao nada. Um bando de “filósofos não-profissionais”, de Nietzsche a W. Benjamin a Foucault, começou a ler essa nova relação ontológica como decisiva no horizonte do operar. E reabriu em Marx um terreno de ação. Este Agamben parece o desenho negativo dessa sequência — mas o reconhecimento de uma nova época da ontologia é pleno. Obrigado!
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