Por Amador Fernández-Savater, no El Diário | Trad. Alexandre F. Mendes
Sobre o filósofo que revolucionou as formas de pensar o poder, a resistência e os saberes.
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Um cenário pode nos servir para provocar esta reflexão sobre a atualidade do pensamento político de Michel Foucault, 30 anos após sua morte.
No final de 1977, socialistas e comunistas discutem a elaboração de um programa comum a ser apresentado conjuntamente nas eleições gerais francesas de março de 1978.
Chegou o momento, pensam alguns, de traduzir a revolta de Maio de 68 em uma vitória eleitoral e institucional através da necessária “unidade de esquerda”. É hora de uma política com “letras maiúsculas” e direcionada às coisas sérias, depois de tanta autogestão, tanta democracia direta e auto-organização, inconsistentes para transformar a realidade.
Ao mesmo tempo, duas publicações organizam um encontro entre pessoas comprometidas com a intervenção em âmbitos específicos da sociedade, como a educação, a assistência médica, o urbanismo, o meio ambiente e o trabalho.
Michel Foucault, talvez a estrela mais luminosa do firmamento intelectual daquele momento, responde à chamada inscrevendo-se numa oficina sobre “medicina de bairro”.
A revista Nouvel Observateur (nº. 670) colhe as impressões do filósofo no final dos trabalhos em uma curta entrevista intitulada: Uma mobilização cultural. Entre outras coisas, Foucault disse:
“Eu escrevo e trabalho para pessoas como as que estão aqui nesta oficina, pessoas novas que colocam novas questões. São as perguntas das enfermeiras e dos agentes penitenciários que deveriam interessar aos intelectuais. Elas são infinitamente mais importantes que os feitiços que são lançados na cabeça dos profissionais da intelectualidade parisiense”.
“Durante os dois dias de intensos debates e discussões profundamente políticas, já que se tratava de questionar as relações de poder, de saber e de dinheiro, nenhum dos trinta participantes do grupo ‘medicina de bairro’ utilizou as expressões “março 1978” ou ‘eleições’. Isto é importante e significativo. A inovação já não passa pelos partidos, pelos sindicatos, pelas burocracias, pela Política. Trata-se de um cuidado individual, moral. Já não perguntamos à teoria política o que fazer, os tutores são desnecessários. A mudança é ideológica e profunda”.
“Um grande movimento se tornou ativo nos últimos quinze anos, no qual a antipsiquiatria é o modelo e Maio de 68, um momento. Nos estratos que antes garantiam a felicidade da sociedade, por exemplo, o dos médicos, agora há populações inteiras que se tornaram instáveis, que se põem em movimento, em permanente procura, por fora do vocabulário e das estruturas tradicionais. É uma… não me atrevo a dizer revolução cultural, mas sem dúvida uma mobilização cultural. Politicamente irrecuperável: se percebe que em nenhum momento o problema para eles se modificaria se houvesse uma mudança de governo. E isso me alegra”.
O gesto é altamente provocador. Para um filósofo de ponta, uma oficina modesta é mais importante que a discussão sobre o “programa comum” de socialistas e comunistas, é essa oficina que está em linha direta com Maio de 68 e não a possível vitória eleitoral das frentes de esquerda. A invenção política passa por um pequeno grupo de pessoas que se mostra indiferente à mudança eventual do governo. É como se para nos colocar à “altura do momento” devêssemos nos colocar muito abaixo, como se a Política com maiúsculas se escrevesse, na verdade, com minúsculas.
Provocador sim, mas não perdido em caprichos. O gesto de Foucault é perfeitamente coerente com os avanços de sua teoria à época. O que entendia, então, Foucault por poder (já que não se tratava do poder político)? Como pensava as resistências? (por fora do paradigma do partido)? O que significava para ele uma contribuição intelectual às práticas de emancipação (se não passava por assinar manifestos e opinar sobre a conjuntura)?
Poder, saber e resistências são três problemas fundamentais no percurso de toda a trajetória do filósofo francês. Não sou especialista em sua obra, nem me atreveria a tentar estabelecer em poucas linhas toda a complexidade de sua reflexão acerca desses problemas, mas queria apontar alguns elementos para entender melhor onde residia o valor e em que sentido continuamos, ainda hoje, necessitando dessa “mobilização cultural”.
Em primeiro lugar, a questão do poder
“No pensamento e também na análise política, ainda não guilhotinamos o rei”, escreve Foucault em 1976. O que significa isso? Foucault se refere aqui à figura de um poder majestático, concentrado num lugar determinado, sempre longe e pelo alto, que irradia verticalmente sua vontade sobre seus súditos/vítimas.
Substitui-se o rei pelo Estado, pelo império da lei ou pela dominação de classe, e continua-se a reproduzir uma forma de entender o poder: uma espécie de “sala de mandos” situada no vértice da sociedade. Todo o trabalho de Foucault se dirige para romper com esse esquema conceitual/mental.
Em lugar de um poder que se concentra e se deduz das grandes figuras (Estado, Lei, Classe), Foucault nos propõe pensá-lo como um “campo social de forças”. O poder não deriva de um poder soberano, ele vem de todos os lados: milhares de relações de força atravessam e configuram nossa forma (prática) de entender a educação, a saúde, a cidade, a sexualidade, o trabalho.
Essas relações de força não se codificam unicamente em termos jurídicos (o que se pode ou não se pode fazer de acordo com a lei), mas consistem numa pluralidade infinita de procedimentos extralegais que funcionam ajustando os corpos e comportamentos à norma (diferente de uma lei). Pensemos, por exemplo, numa prisão: sua lei deixa explícito que se trata se um espaço para a ressocialização à sociedade, porém mil procedimentos cotidianos produzem um efeito diferente: uma marca, uma estigmatização do delinquente como delinquente, uma exclusão. Uma análise exclusivamente jurídica do poder é cega a essas forças determinantes.
Em um campo social de forças há, sem dúvida, “pontos de especial adensamento”: o Estado, a Lei, as hegemonias sociais. São os maiores nós da rede do poder. Mas Foucault propõe pensá-los (invertendo radicalmente a perspectiva normal) como “formas terminais”. Quer dizer, não tanto causas mas efeitos do jogo das relações de força. Não tanto instâncias “primeiras” e geradoras, e sim formas derivadas e secundárias. Perfis, contornos, pontas de um iceberg. Os aparatos estatais, as leis, as hegemonias sociais são as figuras visíveis, que se recortam sobre o fundo escuro e em permanente ebulição, das lutas cotidianas.
Formas terminais, mas não passivas. As figuras visíveis do poder são o resultado do campo social de forças e se apoiam sobre ele, mas também o fixam (mesmo que nunca definitivamente). Portanto, encadeiam distintas relações de forças concretas e locais, produzindo efeitos globais e estratégias de conjunto. Vejamos uma passagem muito clara de Foucault, discutindo com o marxismo dominante dos anos 1970: “não me parece que seja a classe burguesa (ou tais e quais de seus elementos) que impõe o conjunto das relações de poder. Digamos que essa classe as aproveita, as utiliza, as modifica, busca intensificar umas e afrouxar outras. Não há, pois, um foco único do qual todas elas saiam como se fosse por emanação, mas um entrelaçamento de relações de poder que, em suma, torna possível a dominação de uma classe social sobre a outra, de um grupo sobre o outro”.
Na famosa entrevista de Jordi Évole a Pepe Mujica, o apresentador catalão perguntou se o presidente uruguaio havia cumprido o seu programa eleitoral: “que isso?” contestou rindo Mujica, “você pensa que um presidente é um rei que faz o que quer?”. E acabou dando a Évole uma pequena “lição foucaultiana” explicando-lhe como o que pode e o que não pode ser feito está condicionado pelo campo social de forças (o que inclui o quadro jurídico que o neoliberalismo constrói sob sua medida, os mesmos desejos e expectativas dos sujeitos sociais etc.)
O poder não é um objeto que pode ser encontrado em um lugar privilegiado que se pode ocupar ou assaltar: o paradigma revolucionário hegemônico no século 20 entra aqui em crise. Sem relação com o campo social de forças, esse lugar fica vazio e o poder é impotente. Há que pensá-lo de uma forma inteiramente nova, não para descartar a exigência revolucionária, mas para reativá-la desde uma nova mirada.
Em segundo lugar, a questão das resistências
“Onde há poder, há resistências”, estabelece uma célebre máxima foucaultiana. A ideia de que o poder não se concentra em um único ponto (os dirigentes, a elite política etc.), mas é gerado e produzido por todos os lugares da sociedade não é uma tese pessimista sobre a onipotência da dominação. Ao contrário: definir o poder como uma relação de forças significa entendê-lo como a relação entre uma ação e outra ação. Uma ação de mando e outra ação que a corresponde. A força não se exerce sobre um objeto passivo, e sim sobre outra força que sempre tem a capacidade de ação e de dar uma resposta não previsível.
Em uma entrevista de 1977, Foucault denomina todas essas resistências de “a plebe”. Em primeiro lugar, a plebe é uma resposta concreta, local e situada a um procedimento de poder igualmente concreto, local e situado. De fato, reside aí a sua potência: responde ao poder ali onde ele se exerce e não a partir de um outro lado. “A plebe é menos o exterior das relações de poder que seu reverso, seu limite, seu contraponto; é o que responde a qualquer avanço do poder com um movimento para desfazer-se dele”.
Em segundo lugar, a plebe não é uma realidade sociológica (aqueles que compartilham uma condição social ou um interesse mútuo), e sim uma espécie de rasgo em identidades concebidas. Não é o povo, nem os pobres, nem os excluídos: “há plebe nos corpos, nas almas, nos indivíduos, no proletariado e também na burguesia, mas com extensão, formas, energias e irredutibilidades diversas”. Não há divisão binária entre o campo do poder e o das resistências: poder e resistência atravessam a todos (e a cada um).
Por ultimo, a plebe não é uma substância, mas uma ação: “a plebe não existe, contudo há plebe”. Acontece o mesmo quando dizemos: “não existe amizade, mas provas de amizade”. É algo que acontece ou simplesmente não existe. É um fazer, uma manifestação, um acontecimento.
A plebe, essa realidade tão móvel, heterogênea e complexa, pode ser organizada? A resposta é sim. Assim como o poder concatena e entrelaça distintas relações concretas e locais produzindo estratégias globais, as resistências podem ser “codificadas estrategicamente” produzindo efeitos gerais: revoluções.
Mas como? Trata-se de evitar ao menos duas inércias quando pensamos na organização: 1) a simplificação (só o idêntico pode ser organizado); 2) a separação (para organizar-se é preciso “sair” dos lugares concretos de onde as resistências se desenvolvem). Os “sujeitos políticos” que temos conhecido no decorrer do século 20 (o partido ou o grupo armado) seguem esse modelo: pensando-se a si mesmos como a cabeça e a articulação das resistências, se constroem na realidade como espaços homogêneos, fechados e isolados dos mundos nos quais as resistências vivem.
Pois bem, seria o caso de reimaginar a organização em termos de “circulação” entre os diferentes pontos de resistência. Assumir o caráter disperso e situado das resistências, não como um obstáculo a repelir, mas como uma potência. Pensar, não de que maneira englobar as resistências por baixo de formas centralizadas e sem relação orgânica com seus mundos, e sim como construir “laços transversais de uma saber a outro saber, de um ponto de politização a outro, os que cruzam e os que promovem intercâmbios”.
A plebe se organiza comunicando e estendendo suas práticas de resistência. Seguramente, se Foucault aproveitou tanto as oficinas de 1978 foi porque elas abriam um espaço onde as resistências podiam encontrar-se e compartilhar sem pôr entre parênteses suas diferenças e seus mundos próprios.
E por último, a questão do saber
“Cada vez que busquei realizar um trabalho teórico, o fiz a partir de elementos da minha própria existência, sempre em relação com processos que percebia se desenrolarem em torno de mim”, explica Foucault. Para elucidar a experiência vivenciada, Foucault podia se locomover para longe, no tempo e no espaço (séculos remotos, personagens obscuros, textos perdidos), mas toda a sua erudição está colocada a serviço de pensar “problemas, angústias, feridas e inquietudes do presente”.
É a diferença entre pensar com os pés na rua e pensar com os pés nos textos. Com os pés nos textos, os livros nos remetem a outros livros. Com os pés na rua, os livros ressoam com problemas da vida individual e coletiva.
Saímos mais forte, mais inteligentes e mais alegres depois de lermos Foucault e, no entanto, os problemas ficam ainda mais complicados. Como é possível? Tenho a seguinte intuição: a alegria no pensamento não tem nada a ver com o conforto das conclusões que se chega, mas como o fato de nos descobrirmos capazes de chegar a algum terreno por nós mesmos. É uma experiência que deixa uma marca duradoura: se fomos capazes de pensar algo (o que seja) por nós mesmos, podemos sempre voltar a fazê-lo.
É o contrário do que Foucault denominou de “a posição profética”, associando-a, frequentemente, ao marxismo: um pensamento mobilizador que, na verdade, acarreta a desmobilização do pensamento. Como? 1) Confundindo a necessidade histórica e os objetivos a alcançar, como se eles estivessem já escritos no curso mesmo do real (chega o fim do capitalismo etc.); 2) ofuscando o “aspecto sombrio e solitário das lutas”: as dificuldades, as contradições e as luzes contrastantes da realidade, as fases de silêncio e invisibilidade nas quais uma luta não goza de protagonismo midiático ou da atenção dos holofotes; 3) buscando a todo o momento nossa adesão a uma tese, mas sem requerer-nos nenhum tipo de trabalho pessoal.
Em lugar da posição profética de superioridade, que funciona como uma voz “em off” que descreve o que se passa sem que saibamos onde se encontra, Foucault entende a teoria como uma “caixa de ferramentas”. Não como um sistema teórico válido sempre, mas como um instrumento adequado para decifrar a lógica própria de uma relação de forças concreta. Não como um diagnóstico fechado e perfeito, mas como lentes que devemos ajustar por nós mesmos. Um pensamento inacabado que solicita a ativação do outro: “gostaria de produzir efeitos de verdade que sejam tais que possam ser utilizados numa possível batalha, conduzida por qualquer um que deseja travá-la, em formas por inventar e organizações a definir. Deixo essa liberdade no final do meu discurso para quem quiser fazer qualquer coisa com ela”.
O intelectual (qualquer um) que entende a teoria como caixa de ferramentas não é um guru, um oráculo, ou um guia, mas aquilo que Foucault denominou de “intelectual específico”. Não é porta-voz de valores universais, e sim de situações concretas. Não é quem traça linhas a seguir, mas quem traz ferramentas que podem ser usadas livremente. Não a voz “em off” que tudo sabe, mas um prolongamento da potência que luta.
Pensar no plural
Nas oficinas de 1978, desenrolaram-se discussões “profundamente políticas” e, no entanto, Foucault preferiu falar em uma “mobilização cultural”. Por que? Acredito que Foucault percebeu ali uma transformação nas formas de ver e de pensar, ou seja, uma mudança cultural ou de paradigma. Notou alguns elementos da “nova imaginação política” que ele reivindicava.
Poderíamos, talvez, definir um dos seus elementos desta forma: pensar no plural. Por exemplo, não entender o poder como um monopólio do Estado, mas como um campo social de forças. Não entender as resistências como um monopólio dos partidos políticos, mas como possibilidades ao alcance de qualquer um, em qualquer lugar. Não entender o saber como um monopólio de especialistas e das Vozes Explicadoras, mas como uma caixa de ferramentas sem autor nem proprietário, da qual todos podemos nos servir e para a qual todos nós podemos contribuir.
Nosso momento histórico é, como se sabe, muito diferente daquele dos anos 1970, mas não continua sendo imperiosa a necessidade de pensar no plural, sem centro? Pensar e fazer uma mudança social, não como algo que se passa num só plano (partidos-eleições-poder político), mas como uma pluralidade de tempos, espaços e atores?
Um critério, melhor que um simples critério temporal, para distinguirmos a “velha política” da “nova política” poderia ser esta questão: pensar no plural ou pensar como “Um” (como centro).
Com efeito, a velha política seria aquela que retoma o centro o tempo todo, absorvendo todas as energias sociais em torno de poucos espaços temporais, lugares e atores. Esses poucos centros acumulariam poder ao custo da passividade e da desertificação de todo o resto (sempre em nome da eficácia, etc.).
Por outro lado, a nova política seria a que esvazia, cada vez mais, o centro potencializando os demais. A que abre possibilidades de intervenção política ao invés de deixá-las em alguns poucos espaços privilegiados, a que multiplica a capacidade de qualquer um (de fazer, de dizer, de pensar) em lugar de produzir simples espectadores, a que ativa conversações e não monólogos.
Uma das lições foucaultianas a qual nós podemos recorrer hoje é que a maturidade do pensamento político não consiste em passar do pequeno ao grande, ou em assaltar os corredores das instituições (ou o contrário), mas em guilhotinar finalmente o rei e inventarmos linguagens e mapas para empurrar uma mudança que será (no) plural – ou não será.
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Amador Fernández-Savater, filósofo e ensaísta, é autor de vários livros e escreve regularmente no jornal espanhol El Diário.
Tradutor: Alexandre Fabiano Mendes é doutor e professor em direito pela UERJ, no Rio de Janeiro.