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O êxodo da multidão: em busca de um mundo novo

Por Silvio Pedrosa

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A multidão que tomou as ruas do Brasil em junho abriu uma brecha no consenso forjado pelo aparato midiático-policial: a guerra aos pobres, eixo articulador da dinâmica capitalista (o ‘neodesenvolvimentismo’) que se afirma no país, em suas variadas expressões (remoções, ‘guerra às drogas’, gentrificação, etc.), foi alçada ao centro do debate político. O(s) Amarildo(s) (homens e mulheres de rostos e nomes) de todo o Brasil vêm à tona através da fresta instaurada pelos mascarados que são ‘ninguém’, sem nome e sem rosto. O paradigma de segurança pública militarizada que produz o consenso da paz sem voz entra em crise, simultaneamente aos seus correlatos (e parceiros) no campo político e midiático: os partidos, cuja capacidade de dar um canal de expressão à potência da multidão se esgotou completamente, e a mídia oligopólica, anacronismo aberrante em tempos imediatos (e imediáveis), tornam-se alvos dos manifestantes que vão às ruas escancarar a crise da representação, que é também a crise da soberania, como deixa clara a corrosão do apoio à polícia militar como instituição.

No meio do turbilhão político e social em que o Brasil se debate, fica claro que o projeto do Brasil Maior – do neodesenvolvimentismo que se alimenta da renda e do consumo dos pobres, a quem a propaganda governamental chama de ‘nova classe média’ – unifica setores da esquerda e da direita, o processo acelerado de indiferenciação ideológica tornando-se claríssimo à luz das reações bastante similares com as quais ambos os lados respondem à ‘crise’ (admitindo-se que qualquer movimento fora da ordem é expressão de uma crise e não que a ordem – assassina de negros e pobres – seja a própria crise à qual a multidão vem às ruas responder). Cidadãos nas ruas expressando descontentamento são inaceitáveis, ainda mais quando à resposta policialesca tem a ousadia de não se calar, insistindo em protestar e mesmo, supremo escândalo, em resistir à violência policial.

À instabilidade e incerteza produtivas e constitutivas da multidão brasileira, que não se deixa nomear, impedindo qualquer homologação, a esquerda no poder responde com uma dupla operação, criminalizando o movimento dos movimentos, através de seus filósofos oficiais e dos seus sacerdotes da ordem ‘progressista’, enquanto tenta, ao mesmo tempo, se apropriar, capturando o novo, através de uma homilia que prega a renovação dos votos na democracia representativa, articulando a última ao mais novo arcaísmo produzido no país: a mídia de multidão que pretende se estabelecer como marca registrada do ‘novo’, identificando e capturando os desejos da plebe, enquanto se sustenta através de práticas exemplares do que há de mais velho. O Fora do Eixo/Mídia Ninja, entretanto, após passar pelo teste da mídia caduca, uma roda morta de debates, não resiste ao verdadeiro teste do novo e é destroçado por uma rede viva que faz lembrar: não existe amor fora da luta! A multidão é imediável!

Só ‘ninguém’, como dessubjetivação criadora, sabe o que a multidão deseja, porque a multidão é uma abertura à materialização de múltiplas vozes, rostos e desejos: multiplicidades. É um corte no tecido vivo do tempo do mundo que se abre ao instante do kairòs, borda do ser onde o trabalho vivo da própria multidão cria o porvir. E é nessa abertura, que instaura um novo porvir pela luta, essa abertura do kairòs (que é radicalmente diferente do porvir do tempo cronológico, repetição incessante e patológica do mesmo), que os pobres das favelas (da Maré, Rocinha e Vidigal), os índios da Aldeia Maracanã e os jovens pobres da periferia, revoltados com a paz da servidão em que vivem, conseguem fazer valer seus desejos. Aqueles que insistem nas definições sociológicas para entender os eventos recentes falham miseravelmente não apenas pelo fato dos manifestantes serem social e economicamente muito heterogêneos, mas porque sua revolta não se deixa definir por um recorte simplório de renda, antes significando um encontro de singularidades (e não indivíduos!) que produz novos horizontes de desejo e luta.

A gentrificação dos espaços das cidades, a precária mobilidade urbana, que restringe o direito à cidade para todos — e, portanto, abrevia também o direito à diferença nos encontros que a urbe possibilita –, assim como a subsunção de direitos constitucionais, como saúde e educação (transformados em serviços), no capital restringe a renda de todos, são os fenômenos que correspondem a uma economia reguladora que insistentemente diz ‘não!’, de forma escalonada, aos desejos, delineando novas hierarquias no interior das cidades. Essa ordem que vinha sendo inscrita nas capitais e cidades de todo o Brasil é o que a multidão recusa. Ela sai em êxodo em busca de um novo mundo, forjado na luta que constrói o amor.

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