Editorial UniNômade
—
—
Existe alguma contradição entre a vitória do oxi (não) em 5 de julho e o acordo assinado, oito dias depois, entre Tsipras e a troika (o comitê composto por Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional)?
A Grécia do Syriza desafiou o núcleo da governance da Fortaleza Europa para, ato contínuo, aceitar as imposições dos credores. Teria sido covardia, falta de fibra, capitulação de Tsipras? Nas últimas semanas, a pergunta inquietou a esquerda grega e mundial, com uma tonalidade emotiva alternando entre um amargo desencanto e raivosas denúncias. O anticlímax causou perplexidade.
A resposta, no entanto, não pode cair no diagnóstico de algum vício da vontade. É preciso descartar, de antemão, qualquer avaliação que se limite a julgar a intenção do agente em relação a uma escala de firmeza moral, entre os mais ou menos corajosos em seu propósito anticapitalista. Ainda que a guerra de classe na Europa seja um fato, certamente não convém reeditar alguma Ordem n.º 227 que rotule todo recuo como traição e não hesite em dispor pelotões de retaguarda para fuzilar os traidores, ainda que seja um fuzilamento ideológico. Por outro lado, não pode ser o caso de conceder a indulgência da tática a fim de absolver os vaivéns de Tsipras, a título da correlação de forças, como se o governo do Syriza tivesse atingido, objetivamente, seu limite máximo. “Vontade política” e “correlação de forças” costumam ser argumentos automáticos, ex post, para justificar qualquer ação política. Entre a doença da vontade e o determinismo da conjuntura, há que se localizar o tempo úmido da virtù maquiaveliana, aquela que força a abertura de um espaço político de manobra onde antes não havia. O contrário disso é condenar-se a reviver interminavelmente uma espécie de Groundhog Day (Dia da Marmota) da Esquerda, restaurando a cada fracasso a nostalgia por tempos que jamais voltarão (amém).
Além disso, é desnecessário repisar a lamurienta reclamação sobre a ilegitimidade da dívida grega, assim como de qualquer outro país ou devedor no mundo capitalista. Trata-se de dominação de classe à vista de todos em que a relação credor-devedor não passa da incessante extorsão da riqueza social e subjugação dos povos. Isto é de uma obviedade indisputável. Nesse aspecto, o Syriza provou o óbvio, desnudando os violentos dispositivos de gestão e extração de produção e riqueza sociais. O que falta explicar, ainda assim, é por que a classe dominante europeia precisa de algo como a UE, o euro e o grupo de Bruxelas, para exercer a violência extorsiva? E por que diante do mantra “não há alternativa”, com efeito, continua não havendo alternativa? Por que não se consegue nomear o sujeito de luta e implicar-se nesse próprio sujeito, um que conferiria os elementos materiais a partir do que se poderia, alegremente, declarar: eis a alternativa? Apostemos-lhe.
O Syriza é o primeiro vetor institucional do ciclo de lutas que, grosso modo, ganhou momentum com as revoluções árabes, disparando com a insurreição de Túnis e da Praça Tahrir, no Cairo. Sim, temos que dar o passo da ousadia e identificar o terreno da recomposição global. É fácil reclamar precisão geográfica e denunciar o achatamento de particularidades, muitas vezes com algum arcabouço identitário de seleção das diferenças; difícil mesmo é apreender a dimensão global no local e vice-versa, coisa que a governance financeira faz muito bem há pelo menos 40 anos, desde a transição ao pós-fordismo.
Ter assim a ousadia para afirmar que, crucialmente, as lutas anti-austerity cujo epicentro foi a Praça Syntagma são as mesmas, essencialmente as mesmas, que as lutas no norte da África, as mesmas ao longo do 15-M de 2011, do Occupy norte-americano, das jornadas de junho de 2013 no Brasil, de Parque Gezi em Istambul, ou da Praça Maidan, em Kiev. Tal constatação não significa nivelar dinâmicas singulares, mas reconhecer que o mesmo tecido conjuntivo em que opera o capitalismo mundializado faz brotar tendências antagonistas, uma composição de classe que, com todas as particularidades, é impulsionada por esses antagonismos. É a mesma composição ultraconectada entre praças e redes, entre a politização do cotidiano e a recusa da classe política, entre o ato ético do indignado de implicar-se na luta coletiva e a denúncia da corrupção das “castas”.
O Syriza, portanto, é uma continuação dos afetos políticos que circularam por todos esses anos e, por isso mesmo, a primeira experiência, frágil e precária, em levar o antagonismo ao nível institucional duro. Não é pouca coisa. O Syriza não está entre movimentos e instituições, como se existissem dois planos concêntricos ou separados, com lógicas próprias, e entre eles um intermezzo conectivo. Esta divisão esquemática, entre movimentos e instituições, significaria admitir a autonomia do político, que é justamente o que está em xeque quando as multidões afirmam “não nos representam”. Nas últimas décadas, a mudança da qualidade dos antagonismos vem determinando paulatinamente a obsolescência dos formatos de movimento social orgânico e da militância ideológica, com suas estruturas rígidas, identitárias, programatistas, que demarcam com exatidão o dentro e o fora, a produção exotérica e esotérica. Como se, para se situar no campo da militância, fosse necessário atravessar a fronteira do engajamento para converter-se à comunidade da esquerda, diante do que se prestam contas e de tempos em tempos nos reconciliamos, sob pena da excomunhão.
Se o Syriza detém uma força à altura dos antagonismos hoje, não consiste em estar assentado sobre a constelação do que, na Grécia, se chama de “campo de esquerda”. Sua singularidade está, isto sim, na capacidade de operar no contínuo, no difuso, em borrar as fronteiras e se derramar pelo tecido conjuntivo, independente das profissões de fé ideológica ou das identidades sociais — nisso, precisamente, em que a governance estende os mecanismos de dominação e exploração e funciona dispensando códigos significantes e fixos. A liquidez da organização não é impotência ou ironia pós-moderna, mas potência social de tipo diverso.
Não admira, em consequência, que a reação emocional da esquerda grega e mundial diante do “recuo” de Tsipras coabite com a indiferença geral daqueles que não compartilham dos métodos obsoletos de organização e atuação. Estamos falando da grande maioria da população, que não se comoveu com o escândalo da esquerda. Se muitos não condenam o governo grego por não ter provocado ele próprio o Grexit, talvez não seja porque estejam presos na caverna das falsas ideias, mas porque UE e euro, para eles, assim como para os revoltados da Maidan, assumam um sentido pragmático e imediato. Que não é, pace Zizek, simplesmente um ideal de Europa. Ao contrário, ele consiste, em primeiro lugar, na percepção que a alternativa estatista e soberanista não é alternativa alguma, que tal discurso é tão ideológico quanto algum ideal de Europa. Estatizar os bancos, forçar o meio circulante nacional e então o quê? um Plano Quinquenal? O antieuropeísmo de esquerda só tem conseguido repetir fórmulas estadocêntricas do século passado ou, então, pontuar vagas referências à Rússia ou à China, como se os BRICs pudessem, em qualquer medida, apoiar um projeto de contrapoder. Em segundo lugar, a percepção que a alternativa possível, calcada na criatividade do ciclo em que o Syriza está engrenado, ainda depende de uma cauda longa de circuitos econômicos virtuosos, de alianças e contágios. O oxi foi não à Europa da troika, que hoje é a única que existe, porém não implicou, de maneira linear, partir para alternativas em que as próprias pessoas não se veem implicadas. Não ainda.
A troika estar preparada para ejetar um estado-membro pela janela não é sinal de sua força, como se Schäuble, Merkel e Juncker fossem um novo poder soberano no interior da UE. Essa apelação a uma política “time-out” significa, em vez disso, a fraqueza que consiste em acionar a coerção direta. O objetivo da chantagem está em desmobilizar politicamente as alternativas em gestação, diante de um ciclo que vai da Islândia às riots inglesas, de Portugal à Ucrânia, impedindo assim que o medo volte a mudar de lado. Além de frustrar nas negociações a possibilidade de reestruturação financeira grega, em Bruxelas estava em jogo o estrangulamento deliberado do primeiro governo de um partido forjado nas lutas antiausteridade, servindo de exemplo para outros vetores que vêm sendo construídos, especialmente no sul da Europa. Sobretudo, na Espanha, onde a formação do Podemos e as vitórias das confluências municipalistas em Madri, Barcelona, Zaragoza e outras cidades, sinaliza a emergência de alternativas. Com o Syriza derrotado, seja através do Grexit, seja de um acordo de impossível sustentação, a troika busca esconjurar a alteridade que a espreita nas novas formações partidárias e eleitorais, que avançam os antagonismos sobre o terreno institucional duro.
Enquanto isso, no Brasil, o governo do Partido dos Trabalhadores, no poder já há 13 anos, prossegue com o saque social. Não o faz por estar “refém das circunstâncias”, mas por uma dupla e consciente escolha, de que o PT e sua coalizão são responsáveis. Primeiro, a imposição da virada autoritária do crescimento econômico, mediante subsídios a montadoras, frigoríficos e empreiteiras, megaobras, megabarragens, megaeventos, gigantescos empreendimentos do agronegócio. Depois, quando o Brasil Maior afundava em meio à falência do projeto econômico e os sucessivos casos de corrupção sistêmica, com a imposição da austeridade neoliberal contra os pobres. A presidenta assume que o “ajuste fiscal” é bom para o país, enquanto mobiliza as engrenagens de velhos movimentos e centrais sindicais do orbe petista, para blindá-la da inestancável oposição institucional e social.
Com esse pano de fundo, a leitura política do “recuo” de Tsipras feita no Brasil é exemplar da operação de sustentação de um governo de austeridade que, curiosamente, consegue apresentar-se (pelo menos ideologicamente) como de esquerda ou “progressista”, sobretudo fora do país. Requentando análises de conjuntura que teriam seu grau de validade política nos anos 2000, quando o lulismo no Brasil e os demais governos progressistas da América do Sul continham brechas e ambivalências; na década de 2010 essa manobra não passa de uma tentativa cada vez mais vazia de prolongar indefinidamente o esquema entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo, entre o imperialismo americano e os BRICs (nem que seja para estimar a conveniência tática dos checks and balances da multipolaridade). Daí a pressa em domesticar a experiência do Syriza e, com isso, apaziguar as inquietações e agitações entre as suas fileiras de simpatizantes, grandes ou pequenas.
Governistas e esquerdistas brasileiros se reencontraram na condenação a Tsipras, há apenas 6 meses no governo do país mais atingido pela crise na União Europeia. Os primeiros, adeptos do extremismo de centro, se comprazem com a capitulação. Seria prova de que não há alternativa, e que no mundo de hoje a dialética do menos pior resta inexorável. Já condenavam as mobilizações desde Túnis pela “falta” de uma alternativa de poder e agora condenam-na também. Os últimos, conclamando um mistificado “poder popular” ou fórmulas vazias dosadas pela palavra reconfortadora “estado”, se adiantam para desmascarar o que já sabiam desde o princípio: a traição do Syriza diante das lutas globais, ao avançar sobre o terreno eleitoral e institucional, excedendo-se. O primeiro pela falta, o segundo pelo excesso, ambos se complementam em sua mistura de verdadeiro cinismo e falso radicalismo. Mais uma vez, o moralismo impotente e o imoralismo cínico do poder se retroalimentam entre si, como vimos nas eleições de outubro de 2014, na adesão esquerdista à campanha governista do medo. Similarmente equivocados, ambos interpretam a vitória da Troika sobre o Syriza como ato final de uma tragédia. Para ambos, nada de novo a ver na Grécia, logo, para trás! Não podemos compartilhar desse giro de 360 graus.
Para Tsipras e o Syriza, ganhar tempo não pode ser distender a crise indefinidamente. De nada vale trocar o fim amargo por uma amargura sem fim, normalizando novamente a crise. Continuar a lutar, claro. E continuar a lutar sem perder de vista o terreno novo em que opera a tendência antagonista, em meados do século 21. Na década de 1840, Marx e Engels não cansaram de criticar a Liga dos Justos por seu caráter sectário e isolacionista, num momento histórico em que, à luz dos impasses, era preciso passar à massificação do movimento de classe. A horizontalidade também nutre uma estranha verticalização, quando interpreta seu descolamento das dinâmicas da vida social com uma chave moralista de pureza. Aí, a autonomia do político se reintroduz na figura da militância sentada em seus próprios princípios e métodos, o que corre o risco de se converter ainda noutra teologia política. Não era Marx quem dizia que a grande maioria se move por interesses materiais e não por modelos utópicos ou pertencimentos comunitários? É por isso que o capitalismo funciona com tanta resiliência, já que para ele a única comunidade autêntica é a do dinheiro. É nesse sentido, na passagem da geometria (horizontal ou vertical) à mecânica dos fluidos, dos coletivos e movimentos sociais à sociedade em movimento, que grupos como Syriza ou Podemos têm a contribuir para a intensificação de um poder de ruptura.
—
21/7/2015