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Os desafios da Venezuela pós-chavista

Por Pablo Stefanoni, no Línea de fuego, em 1/12/15 | Trad. UniNômade

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“A nação venezuelana depende agora dos jovens profissionais que migram; como no caso da diáspora armênia, eles é que serão os encarregados de preservar a nossa cultura.” A frase, dita por uma “senhora de bem”, reflete dois sintomas da Venezuela hoje: as tendências escapistas de uma parte dos críticos do regime de Nicolás Maduro e, ao mesmo tempo, uma situação que parece tocar um nervo profundo e — por razões reais ou imaginárias — ver na emigração o único futuro para muitos profissionais jovens pertencentes às classes médias ou altas.

Um vídeo do youtube de 2012 se refere à Caracas como uma “cidade de despedidas”. “Meus fins de semana são para me despedir dos amigos”, diz um dos participantes; “estou apaixonado por Caracas, mas não podemos viver juntos”, ressalva outro, enquanto a canção de fundo reza: “parece que a minha vida deixou de ser interessante”. Ao mesmo tempo, os rostos e fenótipos (brancos), assim como as marcas sociais (classes médias e altas) revelam uma das divisões da sociedade venezuelana, que não se abriu com Chávez, mas que se politizou a partir do final dos anos 90. Hoje, a crise fomenta esses discursos, mas a decepção também parece incluir muitos “chavistas mas não maduristas”.

Se a fonte de legitimidade do chavismo foi a poderosa combinação de carisma do líder e elevado rendimento do petróleo, difundindo-se por toda a América Latina, o falecimento do comandante supremo, oficialmente em 5 de março de 2013, bem como a queda dos preços do petróleo, erodiram as fundações da revolução bolivariana. Entre a oposição, predomina a expectativa sobre as eleições parlamentares de 6 de dezembro, ainda que sem a certeza que a crise penda automaticamente em seu favor, nas dimensões que os seus líderes e apoiadores desejariam. Agora, a aposta é o “fator López”: quem, após a sua recente condenação, se transformou em virtual mártir da democracia e das liberdades, a partir do cárcere de Ramo Verde.

Economista, 44 anos, descendente de Simón Bolívar por parte de mãe, bom orador e ex-prefeito de Chacao, Leopoldo López foi preso faz um ano e meio, acusado de incitar os protestos e “guarimbas”, em que o dirigente antichavista buscou apoiar-se nas ruas para a estratégia conhecida como “a saída” (para forçar a renúncia de Maduro, cujo mandato termina apenas em 2019). E, em 10 de setembro passado, López foi condenado a quase 14 anos de prisão pela juíza Susana Barreiros, que ocupa a sua magistratura em caráter “provisório”. “Se me condena, você vai sentir mais medo em ler a sentença do que eu em recebê-la”, interpelou o dirigente da oposição à magistrada na última audiência, quando em Caracas se esperava com ansiedade a decisão do tribunal.

Essa ocupação das ruas — que culminou com 43 mortos, cerca de 600 feridos e centenas de detidos — na época se chocou com a aposta eleitoral de líderes como Henrique Capriles, do partido Primero Justicia, que em 2013 esteve prestes a derrubar Maduro nas urnas. Agora, a oposição convoca a “canalizar a insatisfação” no voto, em 6 de dezembro. No novo cenário, sair às ruas para protestar significa acorrer em massa para votar contra o governo. “A justiça na Venezuela está podre, hoje +q nunca entendemos q o caminho à liberdade de Leopoldo e todos começa no #6D”, tuitou rapidamente Capriles.

“Matar un tigrito”

Os chamados “bachaqueros” [camelôs] são um grupo social emergente da crise venezuelana. São os revendedores de produtos básicos que não podem ser conseguidos nos supermercados, cuja escassez fez com que longas filas voltassem a fazer parte da paisagem venezuelana. Muitos desses produtos são regulados pela Lei dos Preços Justos, que também penaliza com cinco anos de cadeia essa atividade. A lei não consegue conter a “praga”, que é como o poderoso presidente da assembleia nacional, Diosdado Cabello, chamou os bachaqueros. O prefeito governista de La Victoria, Juan Carlos Sánchez, foi mais longe: na lógica da “reeducação”, obrigou vários bachaqueros presos a realizar trabalho comunitário vestidos de mamelucos, em cores berrantes, com os dizeres: “sou bachaquero, quero mudar”. E a mesma coisa aconteceu em Puerto Cabello, pesem as críticas de organismos de direitos humanos, assinalando que os prefeitos não podem impor penas.

Mas essa “praga” tem como caldo nutriente uma situação de escassez que o presidente Maduro atribui à “guerra econômica” contra o seu governo. Muitos venezuelanos passam 7 ou 8 horas por semana em filas (em função de sua disponibilidade de tempo). Em teoria, cada um pode comprar somente no dia que lhe cabe, segundo o último algarismo do número de identidade, mas muitos ferem o rodízio negociando o lugar na fila, para “dar um jeito”, para “matar um tigrito”. Ainda assim, para comprar certos produtos regulados, é preciso por o dedo numa leitora eletrônica de digitais.

Em Caracas, dizem que antigamente o termo “bucear” [sondar] era usado quando alguém buscava um garoto ou garota na rua, mas que agora é usado também para o ato de observar, com maior ou menor dissimulação, o que os outros levam em suas bolsas: farinha PAN (usada para fazer arepas [tortas de milho]), xampu, desodorante, máquina de barbear e mesmo papel higiênico, assim como numerosos remédios, esses são alguns dos produtos “escassos” e/ou excessivamente caros no mercado negro. A falta deles tira o sono dos venezuelanos.

O fechamento da fronteira com a Colômbia no estado de Táchira está ligado ao mesmo problema: a corrupção e o contrabando, sobretudo de combustível, que na Venezuela é quase grátis. Encher um tanque de automóvel custa cerca de 4 bolívares, enquanto uma caixinha de chicletes chega a 60. A isso, soma-se o fato de que operam simultaneamente quatro tipos de câmbio, que vão desde 6,30 por dólar (usado para importar remédios e alimentos) até 700 bolívares (o dólar paralelo), passando por um de 13,50 (usado para bolivarizar os gastos dos viajantes que obtêm permissões para sair) e outro de cerca de 200 bolívares.

Uma prática cada vez mais frequente consiste em viajar ao exterior para “raspar tarjetas”. O procedimento consiste em obter dólar mediante compras falsas, a seguir essas compras são “bolivarizadas” pelo valor oficial, e os bilhetes conseguidos, referentes a produtos que jamais foram importados, na volta são trocados no mercado negro. Em várias cidades da América Latina, existem lugares especiais para “raspar”. Os ganhos justificam a viagem e a estada fora da Venezuela.

Numa reunião da ONG Unión Vecinal, no bairro popular de Catia, na zona oeste de Caracas, os críticos têm primazia e também o ceticismo. “Temos que fazer filas quilométricas para comprar dois frangos, temos que ir à luta todos os dias. O que esperamos? às vezes, não esperamos nada”, diz Mercedes Pérez, que lidera o coletivo de mulheres empreendedoras ATRAEM. Outro, para explicar a sua má situação, diz: “Eu não tenho nem pistolão, nem sou peixe de ninguém, nem tenho contatos com o governo” e um terceiro explica por que a oposição demora tanto a crescer, mesmo no cenário atual de crise: “Alguns oposicionistas creem que estamos na 4ª República [pré-Chávez], e que só porque a gente está enojada com o chavismo iria votar na oposição. Antes era assim, mas já não funciona mais dessa maneira.”

A oposição está articulada ao redor da Mesa de la Unidad Democrática (MUD), ao que se somaram 30 partidos. Ela é controlada pelo denominado G4, composto pelos partidos Voluntad Popular, de Leopoldo López; Primero Justicia, do ex-candidato presidencial Henrique Capriles; a tradicional e hoje debilitada Acción Democrática (AD), e Un Nuevo Tiempo, liderado pelo também ex-presidenciável e ex-governador de Zulia Manuel Rosales, atualmente exilado no Panamá. Um problema da oposição para chegar aos setores populares é a origem como “filho rico” de seus três principais líderes (Capriles, López e María Corina Machado), num contexto de classismo e racismo estruturante de hierarquias sociais que Chávez foi capaz de tornar visível e politizar, apresentando-se ele próprio como um mestiço. Por isso, muitos antichavistas o chamavam de “mono”, fazendo um jogo de palavras com “mico-mandante”.

Enquanto o partido liderado por López — Vontade Popular — se considera a si próprio como social-democrata, — a ponto de ser aceito como observador na Internacional Socialista, — para o governismo se trata de uma oposição de extrema-direita que pretende desestabilizar o governo com apoio estrangeiro.

Hoje, no contexto de deterioração econômica e da falta de liderança carismática, o chavismo vive uma crise emocional. Partidos menores, como Marea Socialista, busca capitalizar a insatisfação na chave “chavista mas não madurista”. O eixo de sua campanha, nesses dias, é a plataforma para uma auditoria pública e cidadã para “deter o desfalque, a fuga de divisas e a corrupção”. “Marea busca conter os decepcionados, evitando que se rumem para a oposição”, resume o seu líder Nicmer Evans. Ele considera que o seu partido sofre uma espécie de proscrição, tendo em vista a quantidade de membros cuja candidatura foi impugnada, inclusive o próprio Nicmer.

Socialismo militar

Uma pedra angular do chavismo foi, desde o começo, a forte presença dos militares no governo. Essa presença não parou de crescer depois da morte do comandante. “Nunca os militares tiveram tanto peso econômico e político, nem sequer na época da ditadura de [Marcos] Pérez Jiménez (1953-58)”, diz o historiador Tomás Straka. 12 dos 23 governadores vêm das forças armadas. Uma grande proporção dos altos funcionários luziram ou ainda luzem em uniformes verde oliva. O próprio Chávez disse, em 2013, que Pérez Jiménez tinha sido um dos melhores presidentes da Venezuela.

Hoje, alguns chavistas críticos se veem entre a espada: os militares, e a parede: Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez, ex-motorista de ônibus e homem muito próximo de Cuba. Maduro revalidou o seu poder diante de Capriles vencendo por uma margem mínima (50,6 x 49,1%), em 14 de abril de 2013. Hoje, os militares são acusados, com evidências, de formar parte de vastas redes de contrabando na fronteira com a Colômbia e estar envolvidos em numerosas corruptelas, com as importações de alimentos e equipes médicos, sobretudo a partir da China.

O problema é que se o chavismo tem filões autoritários — e violadores da divisão de poderes — ele também falha em gerar uma ordem. O autoritarismo, frequentemente, tem um condão desorganizador em várias dimensões. Nesse marco autoritário, a Venezuela vive uma profunda crise de segurança: a vida noturna de Caracas foi apagando-se no ritmo das estatísticas que a posicionam como uma das mais perigosas do mundo; os sequestros são parte dos argumentos para migrar, e as prisões funcionam como fortalezas em que o estado somente controla as muralhas, deixando operar em seu interior todo tipo de redes criminais, lideradas pelos chamados “Pranes” (Preso Reincidente Asesino Nato).

O assassinato da miss Mónica Spear, em janeiro de 2014, comoveu os venezuelanos e pôs o tema nas mídias internacionais. Em cada restaurante de Caracas, está pendurado um aviso que proíbe o porte de armas e munições. Esse clima de violência está na base da ativação da controversa Operação de Liberação e Proteção do Povo (OLP). Para o organismo de direitos humanos Provea, a OLP impulsiona ações das forças armadas sem qualquer respeito às garantias; aliás, chavistas críticos consideram que termina por criminalizar os bairros pobres e a pobreza.

A essa situação, se somam grupos políticos armados diversos, como alguns dos chamados coletivos, organizados para “defender a Revolução” e que respondem a diferentes lideranças. Entre eles, se encontram La Piedrita, Tupamaros, Alexis Vive ou 5 de Mayo. Mas também outras organizações militares, como os Comandos Populares Antigolpe, las Milicias Estudiantiles y Campesinas, a Brigada Especial contra las Actuaciones de los Grupos Generadores de Violencia, a Fuerza de Choque de la Fuerza Armada Nacional Bolivariana ou as Milicias Obreras.

Maduro volta a apelar a um programa conhecido: denuncia tentativas de assassinato da direita uribista, a guerra econômica e outras ameaças — reais, exageradas e imaginárias, — sem prestar atenção suficiente às próprias dinâmicas econômicas que geram a desordem monetária. O salário mínimo é de 10 dólares na cotação do paralelo e está fora de controle, o que termina encorajando a criatividade popular para conseguir os gêneros básicos. A Venezuela segue importando quase tudo o que consome, o que agrava a crise. A “semente do petróleo” novamente foi uma quimera, assim como no auge petrolífero anterior dos anos 70 com a Grande Venezuela de Carlos Andrés Pérez e seu estado de bem estar.

A morte de Chávez e a desorganização econômica acabaram com a perspectiva de algum tipo de “socialismo do século 21” (o criador do termo, Heinz Dieterich, é hoje um radical opositor a Maduro). O próprio Cabello alertou, apoiado em seu programa “Com el mazo dando”, sobre os riscos de divisão no interior do chavismo e do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV). Nesse programa, o líder da ala militar do chavismo utiliza informação dos “patriotas colaboradores”, isto é, informantes destinados a combater os “esquálidos”, como ele denomina os opositores na militarizada linguagem chavista.

Cenário incerto

A oposição pensa em ganhar a Assembleia e, a partir daí, abrir espaços de negociação com o governo. Mas, pese a crise, o cenário eleitoral não é simples e, além disso, a ordenação das circunscrições eleitorais beneficia o governismo. De imediato, muitos da oposição tratam de descolar-se da pecha de direitista, como são tratados pelo chavismo. Por exemplo, Freddy Guevara, 29, parte da geração de estudantes que se mobilizou em 2007, um dos líderes do partido de Leopoldo López, marcou entre as suas influências “a social-democracia, o socialismo liberal, o anarquismo de Kropotkin e a democracia liberal”.

Num clima de expectativa, há quem imagine barcos cheios de comida descarregando logo antes das eleições e outras manobras oficiais de última hora, sempre vinculadas ao consumo de primeira necessidade. Algo estilo “Dakazo”, em referência à ocupação governamental da rede Daka e a colocação à venda de seus produtos pelos “preços justos”, no marco da narrativa da guerra econômica, por ocasião das últimas eleições para cargos locais.

Em algumas santerías caraquenhas, hoje se vende a imagem de Chávez e a grande incógnita é o que farão os chavistas desencantados no 6D. O que está claro é que cada vez menos opositores parecem imaginar uma substituição integral do chavismo e antecipam um cenário intrincado e sinuoso de pactos entre setores do governismo e da oposição, a fim de projetar a Venezuela pós-chavista.

Depois da tentativa frustrada de golpe em 1992, Hugo Chávez foi encarcerado e logo liberado pelo presidente Rafael Caldera… “por ora não pudemos”, profetizou. Então tem que ver no que vai dar a dura condenação judicial do líder da Voluntad Popular e da oposição em seu conjunto.

 

Pablo Stefanoni é economista e doutor em história, é chefe de redação da revista Revista Nueva Sociedad e coautor de La revolución de Evo Morales e Debatir Bolivia.

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