Por Alex Régis –
Resenha de CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto; as manifestações no Brasil em 2013 (jun-out). São Paulo: AnnaBlume, 2013. 156 pág.
A multidão foi ao deserto é um livro que exala paixão pela resistência, resultado da práxis de um “pensador-manifestante” (p. 9). A cartografia das lutas e microinsurreições é tecida em vinte textos: duas entrevistas, quatro textos escritos em parceria e catorze publicados inicialmente em seu blogue Quadrado dos loucos, em que o autor articula literariamente o “campo das lutas e das ideias”, “produzindo conhecimento nas lutas e para as lutas” (p.120), produto de copesquisa.
Se a narrativa captura por dentro um evento inscrito no tempo e espaço, contextualizados serão igualmente os interlocutores que, durante os acontecimentos, travaram debates analíticos e teóricos sobre os desdobramentos múltiplos das manifestações. Parte da interlocução se realizou com os pesquisadores colaboradores da rede Universidade Nômade (UniNômade brasileira), entre os quais Giuseppe Cocco, Alexandre Mendes, Hugo Albuquerque, Bárbara Szaniecki e outros, que mobilizam o arsenal teórico e analítico do filósofo italiano Antonio Negri, para pensar as relações e processos insuspeitados conformando as transformações do devir brasileiro e mundial.
Pensando o livro objetivamente, se pode afirmar que exala política, política em sentido bruto; as formas pelo que razões, interesses e afetos “selvagens” se convertem em resistências e lutas extrainstitucionais face ao poder da ordem, do poder constituído.
Trata-se de uma lúcida análise de conjuntura do Brasil contemporâneo! Apresenta-se, portanto, não apenas como parte da política, é em si mesmo um ato político. Como diria Betinho (2009:8), faz análise política quem faz política, mesmo sem saber. Neste caso, o autor do livro, Bruno Cava, sabe que seu texto é “uma arma de combate” pela qual articula estrutura e conjuntura do Brasil contemporâneo, mapeando acontecimentos, cenários, atores e correlações de forças explicitadas de forma aguda no evento1 de junho.
A imersão do autor no interior das lutas se comprova pela etnografia dos acontecimentos, lugares, performances e seus atores. Sua militância se homologa pelo risco assumido entre o ricochetear das balas e lançamentos de gás lacrimogêneo acionados pela política da violência e criminalização. Legitima-se pela expressão fenomenológica que o texto apresenta; captando intuitiva e intelectualmente ritmos, movimentos, sonoridades, cores e sensibilidades que atravessaram os corpos da multidão enquanto experiência ontológica. Consciência e evento, experiência e razão, campo de lutas e de ideias são mobilizadas processualmente para constituição do texto, “um evento no evento” segundo Giuseppe Cocco, alem de “um belo momento de luta”, sem insinuar-se “vanguarda”.
É assim que Cava apanha criticamente no interior das manifestações o movimento real do campo político brasileiro; mapeia as lutas e suas respectivas agendas, táticas e estratégias; registra as artimanhas do poder dominante com suas formas de controle e captura dos poderes que colocam a “terra em transe”. Sua análise corresponde a uma desnaturalização de um Brasil “Maior”, realizada por um mosaico de micronarrativas tecidas “por dentro” das manifestações, no calor das lutas e no sofrimento de corpos que não apenas resistiam a um “choque de ordem”, mas igualmente denunciavam as rachaduras, contradições e conflitos de um Brasil escravocrata, racista e colonial. Sim! Este livro se fez nas lutas e pelas lutas e trata, sobretudo, das relações e tensões do poder constituído contra o poder constituinte.
Cava deixa claro que o ciclo de lutas atacou frontalmente não apenas a imagem superlativa de uma Brasil “para inglês ver” mas, sobretudo, a máquina representativa, responsável por operacionalizar uma democracia mesquinha de baixa intensidade, capturada pela lógica econômica que regula, pacifica e converte os votos e zonas eleitorais em territórios onde os fluxos de capital devem circular com segurança.
Evidência que ciclos de protestos e indignações não são particularidades de países que estão inscritos em crises econômicas e financeiras, que existe um “fator global” em cena, disparado pelas revoluções árabes em 2011 (p. 51). Segundo Cava, as manifestações no Brasil “se inserem no ciclo global de lutas insurrecionais e constituintes” (p. 81). Lutas e microinsurreições podem igualmente ocorrer em momentos de expansão do capital, de crescimento econômico e inclusão social. Aliás, segundo o autor as manifestações também expressam um revolta com um certo tipo de inclusão (p. 109). Resumidamente, Cava sugere, captando os sentidos em mudança, que a “realidade está solta, sem gentileza pros esquemas” (p.46; 56; 55), por isso a mídia corporativa com seu arsenal de jornalistas e os partidos tradicionais erraram amplamente na explicação do evento.
A multidão de junho em sua retroalimentação entre redes e ruas atravessou o Brasil de Oiapoque ao Chuí num contexto de relativo crescimento econômico, baixas taxas de desemprego e forte inclusão social, realizada na última década que criou as condições para emergência da “nova classe média”; “monstro” forjado pelo lulismo, seu melhor produto e pior pesadelo, que de repente ousou “querer mais” e saiu às ruas, gerando incompreensão e perplexidade da direita à esquerda. Estas, impossibilitadas de ler a multidão de junho (p. 43;78;106), trataram imediatamente de desqualificá-la (p. 86), criminalizá-la. Da mobilização produtiva de caráter econômico originou-se por dentro das políticas oficiais uma criativa mobilização produtiva da multidão de pobres, emergentes e bárbaros que ousaram não apenas dinamizar o mercado interno (atenuando o impacto da forte crise que atingia a Europa e os EUA), mas também abalar o mundo político brasileiro, dinamizando igualmente as condições históricas e políticas para a mudança social.
O livro está recheado de intuições e lampejos teóricos que transbordam de texto em texto, contudo, para finalizar a presente resenha, cabe sugerir o que seria o argumento central do conjunto de textos: que o ciclo de lutas, protestos, tumultos e resistências se inscreve em um contexto de “constituição selvagem” ainda em curso, uma mudança subjetiva de larga escala nascida do crescimento econômico (p. 11) e caracterizada pela nova composição social brasileira (p. 106) que, em um certo momento de sua ascensão, cansou das múltiplas e naturalizadas violências e humilhações de que seu corpo ainda é objeto; uma violência seletiva, “cristalizada no ônibus, no metrô, no hospital, na escola, na arquitetura” (p .103), na atuação da polícia que mata, enfim, nas operações de higienização, remoção e expropriação explicitadas em um projeto de cidade que privilegia grandes projetos e eventos em detrimento do trabalhador metropolitano. Sim! Os corpos da multidão se chocam contra um projeto de cidade (p. 59), contra um estado distante da composição social, “incapaz de comunicar-se, de ser perpassado desde baixo” (p. 117) e que prossegue bloqueando perspectivas de vida, ampliação de liberdades.
A mudança na esteira das manifestações de junho converteram-se em novas relações entre Estado e sociedade, mas impactaram especial e irreversivelmente a percepção política de toda uma geração, traduzindo-se numa mudança em curso da cultura política brasileira que apesar de funcionar pela “pacificação do dissenso” e “esquemas de governabilidade” nada transparentes, agora se vê mexida “por forças subterrâneas e míticas, até então mantidas escravas e domesticáveis (…) que desobstruíram forças, desataram conflitos, desencadearam possibilidades. Nascidos de pressões insuportáveis, pelas quais se movem e vivem as tensões sociais, políticas e econômicas do novo Brasil e os ‘custos do progresso’. Foi como se placas tectônicas tivessem se mexido, transmitindo abalos em vários níveis, mudando a paisagem, reconfigurando espaços e temporalidade da políticas brasileira” (CAVA,2013, p.134).
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REFERÊNCIAS
SOUZA, Herbert J.S. Como se faz análise de conjuntura. 3ª Edição. Petrópolis, RJ:Editora Vozes, 2009
NEGRI, Antonio.Kairós, Alma vênus, Multitudo: Nove lições ensinadas a mim mesmo. Rio de Janeiro: DP&A,2003
NOTA:
1 Kairós, prolegômenos do nome comum. In: NEGRI, Antonio. Kairós, Alma vênus, Multitudo, p. 39. Evento significa um temporalidade histórica onde o “nomear e coisa nomeada nascem ao mesmo tempo. Ambos são chamados a existir: nesse sentido, o nome e nome comum constituem um evento.