Por Giuseppe Cocco, na Nuova Sociedad, agosto de 2016 | Trad. UniNômade
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Como explicar o que está ocorrendo no Brasil? Diante de um desastre tão grande, não sabemos mais como abordar a questão: se em termos de crise econômica, de crise política ou até de crise moral. A nós se apresenta o desafio de conseguir que a encruzilhada se torne inteligível e nos permita apontar algumas linhas de fuga. É uma situação de paralisia que tem duas dimensões: a do país como um todo, que afunda numa grave depressão econômica, com o seu sistema político submerso numa crise vertical, e da paralisia das forças “progressistas” ou, em termos mais gerais, da “esquerda”. E não é fácil decidir qual das duas dimensões é pior. A série de protestos de junho de 2013 decretou o fim da esquerda de governo e sua coalizão enferrujada. Mas o PT, que contava com uma maquinaria poderosa de propaganda, com milhares de empregados e centenas de milhões desviados dos cofres públicos, conseguiu converter a sua própria agonia numa irônica luta de princípios em defesa… de sua falta deles. Obviamente, essa batalha a que aderiram quase todos os movimentos sociais “organizados”, assim como o arco do progressismo universitário e praticamente a totalidade dos setores e grupos de esquerda, somente poderia mesmo se entrevar, o que nesta altura já virou um suicídio coletivo da esquerda brasileira.
O resultado é paradoxal: o PT e os seus aliados haviam convertido o seu fracasso num muro, que impede a construção de uma alternativa e nos lega a manifestação explícita daquilo que o seu governo de coalizão já continha (o presidente interino, Temer). Esta é a armadilha: lutar contra Temer e em favor de Dilma não é senão reproduzir o apoio que, a seu tempo, foi dado a Dilma com Temer. São as duas faces da mesma moeda: falsa. “Golpistas” e “golpeados” são ilegítimos: cúmplices e responsáveis, um e outro, pela crise. As lutas de resistência se encontram hoje diante do grande desafio de afirmar essa verdade: ou elas são capazes de cunhar uma nova moeda, ou não têm mais condições de ficar em pé. Dito de outra maneira, hoje, as lutas precisam opor-se ao mesmo tempo ao PT de Dilma-Lula e ao PMDB de Temer-Cunha. Temer e Dilma são o Pokémon Go um do outro: ambos encarnam a negação da brecha democrática. Qualquer mobilização que se incline a vê-los como opostos acaba por mistificar a verdadeira luta e avalizar o projeto de reforma neoliberal como a única saída para esta situação de paralisia. Não por acaso, em que pese o apoio das grandes mídias à estratégia de Temer, a maioria da população reivindica hoje que se convoquem novas eleições gerais. Não teve — nem está tendo — nenhum golpe no Brasil. Isto não é algo que se diga como que para oferecer um quadro mais ameno da situação e muito menos para banalizar a destituição da presidenta eleita. O que teve e está tendo é uma tentativa de reajuste dentro do bloco de poder, determinado por duas causas e com dois grandes objetivos.
A primeira causa determinante foram os protestos de junho de 2013. As manifestações nas metrópoles contra o regime mafioso de gestão do sistema de transporte público viraram rapidamente uma revolta geral contra o conjunto de representantes, que incluía tentativas quase insurrecionais de ocupação das casas legislativas em Brasília e no Rio de Janeiro (entre 17 e 20 de junho de 2013), ocupações efetivas de cerca de 30 câmaras municipais (em julho e agosto daquele ano) e acampamentos que se prolongaram até o mês de outubro, como, por exemplo, diante da resistência do governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Homem do PMDB e aliado importante de Lula e Dilma, Cabral tinha sido fotografado em 2012 com membros de sua equipe de governo e um empresário hoje preso, todos em festa num luxuoso hotel de Paris, divertindo-se e dançando com as cabeças enfiadas em guardanapos de pano. A foto foi emblemática da farra em que já tinha virado o projeto de poder do PT e do PMDB, com base no modelo da cidade que seria sede da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Logo depois, a multidão saiu às ruas, mas a essa altura o Titanic não conseguia mais mudar de rumo. E aí o PT, à maneira do “partido da ordem” que se tornou, passou a enfrentar os protestos democráticos por meio de dois recursos: a organização da repressão e o reforço da sua coalizão com o PMDB, a fim de ganhar as eleições de outubro de 2014. A polícia e o poder judiciário do estado do Rio de Janeiro, que Cabral governava (como também do estado de São Paulo, governado pela oposição) conseguiram com a ajuda das grandes mídias pacificar a situação para que a Copa pudesse ser levada a cabo.
Aquela fora uma restauração bem sucedida, mas ainda mais bem sucedida, no ano seguinte, foi a campanha eleitoral. A propaganda do PT conseguiu, então, polarizar o debate e desconstruir a candidatura de Marina Silva que, durante certo tempo, havia aparecido como favorita nas pesquisas. Tal sucesso, apesar disso, teve um preço muito mais alto do que simplesmente as propinas distribuídas entre consultores e agentes do marketing político. Não apenas porque tal campanha viria a desembocar em prisões, mas sobretudo porque, para bancar essa polarização contra a candidata Silva, a estratégia discursiva do PT exigiu elevar ao cubo as próprias mentiras que vinha sustentado: “A reeleição de Dilma é uma guinada à esquerda”, “Dilma não teria nenhuma necessidade de ajustar e, ainda que tivesse, não o faria”.
A sequência de atos e encontros com intelectuais de esquerda munidos de bandeiras vermelhas se encarregou do resto. Mas certo é que, uma vez reeleita, no dia seguinte Dilma já estava protagonizando uma política econômica diametralmente contrária àquela anunciada aos quatro ventos em sua campanha, com aumento de taxas, tarifaços, cortes de direitos sociais, e quebra de governos estaduais. Dessa forma, demonstrou que, ao contrário da propaganda, o país estava sim à beira da falência. Para coroar a “guinada”, Dilma anunciou uma equipe ultraconservadora de ministros, com ênfase em um Chicago Boy no comando da pasta da Fazenda e uma representante tétrica dos agronegócios à frente da Agricultura. Nessa hora, a queda de Dilma estava já dada, em face da impossibilidade de reverter a mistificação eleitoral da campanha. Uma queda que, paradoxalmente, o próprio sucesso do marketing do PT precipitou. Nessa situação, o “ajuste” que Dilma e Lula projetaram foi o pior que poderiam ter feito: um ajuste desajustado, em que a recessão cedeu a vez à depressão (-10% do PIB per capita), uma vez que tudo aquilo já não inspirava confiança de ninguém. Assim mesmo, enquanto a “esquerda organizada” se retirava das ruas, a multidão seguiu manifestando solidamente a sua indignação ao longo de 2015 e 2016, desta vez a partir de convocatórias de novos grupos liberais ou de direita atuantes nas redes sociais.
A segunda causa determinante foi a mobilização judiciária contra a corrupção, centrada na operação Lava Jato. Apoiando-se na legitimidade dos protestos de junho, o judiciário sediado em Curitiba realizou uma série de prisões, processos e condenações de diretores e proprietários das principais empreiteiras do país, o que envolveu também diretores da Petrobrás, economistas e lobistas do PT, do PMDB e do PP. No começo de 2016, os inquéritos e processos começaram a atingir os “políticos” e o governo se viu paralisado. A condução coercitiva do ex-presidente Lula foi o sinal de alerta. Diferentemente do PT, que na sua campanha tinha condenado a “seletividade” do juiz Sérgio Moro, os caciques do PMDB, bem como a oposição, estavam conscientes que a Lava Jato implicava toda a “casta” política. O recurso ao impeachment surgiu nesse contexto, como tentativa extrema para recuperar algum controle do governo diante da paralisia.
Superficialmente, a destituição de Dilma se fundou no objetivo de acatar o clamor das ruas e da “opinião pública” (leia-se: grandes mídias). Mas os objetivos reais de Temer são dois: enfrentar a crise econômica e — valendo-se de um apoio parlamentar mais coeso e uma eventual retomada dos índices de crescimento — colocar um freio na Lava Jato, assegurando “proteção” a todos os membros da casta, inclusive Lula. A destituição de Dilma foi assim “necessária”: veio dos dois lados, de um, a Polícia Federal tocando a campainha das casas dos políticos, do outro lado, a depressão econômica sinalizando um rombo no balanço das grandes empresas nacionais, como Petrobrás, Eletrobrás, Caixa Econômica Federal, Oi e Gol, sem falar na situação calamitosa — tal como oficialmente foi proclamada — do estado do Rio de Janeiro, logo depois dos investimentos exigidos pela realização da Olimpíada.
E se tem algo que se apresenta como a principal legitimação das reformas neoliberais que Temer se proporá a realizar, assim que for confirmado como presidente, não é outra coisa senão a tremenda crise em que se encontra o país, crise gerada tanto pelo PT quanto pelo PMDB, por Dilma como por Temer. A legitimidade deste último provém, paradoxalmente, do discurso petista, que o coloca à frente de um golpe e faz dele uma força política oposta à Dilma e ao PT, quando na verdade sempre foram forças conjugadas e corresponsáveis pelo fracasso do governo.
A luta contra Temer e as suas reformas requererá que seja uma luta contra o PT de Lula (e Dilma), ou do contrário não estará à altura do desafio atual. A urgência democrática segue assim o desenho de uma linha de fuga para fora desse falso binarismo. E isso é algo que poderia exigir, talvez, o abandono da própria noção de esquerda.
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Giuseppe Cocco é professor titular da UFRJ, doutor pela Sorbonne (Paris I), autor de Glob(AL) com Antonio Negri (2005), MundoBraz (2009) e KorpoBraz (2015), entre outros livros, participa da rede Universidade Nômade.
Obs.: Artigo traduzido da versão espanhola, que havia sido traduzida por Christian de Nápoli.