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Será a vez de “Erdogan-tem-de-partir”?!

Por Pepe Escobar | Trad. Coletivo da Vila Vudu

Publicado no Asian Times, 3/6/13.

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Primavera Turca? Não. Ou, pelo menos, ainda não. O primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan será o novo Mubarak? Não. Ou, pelo menos, ainda não.

A história não se cansa de ensinar que basta uma faísca para incendiar uma fogueira política. A faísca mais recente em Istanbul foi um pequeno grupo de jovens ambientalistas, que organizaram uma acampada pacífica, estilo Occupy, na Praça Taksim, para protestar contra a destruição planejada de um dos poucos espaços verdes remanescentes na cidade, o Parque Gezi.

A destruição do Parque Gezi segue um padrão globalmente testado de neoliberalismo: o parque será substituído por um simulacro – no caso turco, uma réplica das tendas da artilharia otomana – que abrigará – e o que seria?! – mais um shopping center. É crucial observar que o prefeito de Istambul, também do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, de Erdogan), é proprietário de uma cadeia de lojas de venda a varejo que reinará, com certeza, no novo shopping center. E o homem que controla o contrato de mais esse “redesenvolvimento” é ninguém menos que o genro de Erdogan.

Como se poderia adivinhar que aconteceria e aconteceu, a repressão policial violenta contra os manifestantes levou os principais quadros do principal partido de oposição a Erdogan, o Partido Republicano do Povo (CHP), a unirem-se aos manifestantes. E, sem demora, o tema ‘verde’ da Praça Taksim foi transformado num “Abaixo o ditador!” à imagem da Praça Tahrir.

No sábado, a Praça Taksim já estava tomada por dezenas de milhares de pessoas; uma multidão atravessou a pé a Ponte do Bósforo, da parte asiática de Istambul, batendo panelas e frigideiras à imagem do ‘panelaço’ de 2002 na Argentina – numa aberta e declarada violação da lei que proíbe o trânsito de pedestres sobre a ponte. A Polícia, correspondentemente, aprofundou a repressão, com canhões de água, spray de pimenta e gás lacrimogêneo.

A atitude de uma super acovardada televisão turca foi, previsivelmente, horrível – o que surpreende talvez menos, se se sabe que 76 jornalistas estão presos na Turquia acusados de apoiar “o terror” e de outros “crimes” não especificados. Pode ser interpretada também como reflexo do mando absoluto de EUA e OTAN sobre um aliado precioso. Coisa do tipo “OK, quebrem alguns ossos, mas nada de mortos.”

A mídia impressa fez um pouco melhor. O jornal Hurriyet – que costumava usar suas faculdades críticas – recobrou um pouco da própria dignidade e publicou manchetes como “Erdogan já não é intocável”.[1] Zaman – da rede do movimento islamista moderado Gulen – divulgou, em editoriais, sua extrema preocupação com o poder ilimitado de Erdogan e de seu partido AKP; condenou o comportamento “excessivo” de ambos e apoiou os protestos de rua.

Enquanto isso, nos EUA e na União Europeia, Ancara não foi, de fato, condenada: só as “preocupações” ocas, superficiais, de sempre. A Turquia, afinal, é o mais recente cenário-país e cartão postal da CNN. Está totalmente presente “nas telinhas”, com mensagem alinhada ao ideário da rede, de ditadura simpática ao neoliberalismo (como as petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo). Condenar violentamente e ameaçar com ataques e drones são reações reservadas, com exclusividade, ao Irã e à Síria.

Take it to the bridge[2]

Faz perfeito sentido que tudo tenha começado com o “redesenvolvimento” do Parque Gezi. Mas não passa de pequeno detalhe, num esquema gigante – a quantidade imensa de megaprojetos do Partido AKP por toda a Istambul, que excluem totalmente a opinião da sociedade civil.

A Turquia pode até ter-se tornado a 17ª economia do mundo, mas está crescendo apenas 3% em 2013 (que já é muito melhor que o que se vê na Europa). O partido AKP com certeza percebeu que o milagre econômico à turca tem pés de barro, baseado em produtos de baixo valor agregado, muito dependente  de mercados – agricultura, pequena indústria ou turismo.

É onde entra uma terceira ponte sobre o Bósforo – parte de uma nova rodovia de 260km e US$2,6 bilhões, unindo a Trácia à Anatolia, contornando a metrópole de Istambul; e um dos entroncamentos chaves do Corredor de Transporte Europa-Cáucaso-Ásia [orig. Transport Corridor Europe-Caucasus-Asia, TRACECA], apoiado pela União Europeia.

Nas eleições de 2011, Erdogan abriu sua campanha com o anúncio de um “projeto louco”: um canal de 50 km, do Mar de Marmara ao Mar Negro, a ser concluído em 2023 – centenário da República Turca –, ao custo de mais de $20 bilhões. O objetivo não é só descongestionar o Bósforo mas, com a construção de uma terceira ponte e de um terceiro porto, transferir o eixo de Istanbul para o norte da cidade, ainda não desenvolvido. O projeto inclui duas novas cidades e um terceiro aeroporto.

O partido AKP apresentou essa política ambiciosa como “transformação urbana”. O pretexto é o risco de um grande terremoto – como o de 1999. Para o que se resume a uma vastíssima bonanza da mais pura especulação imobiliária, Erdogan e o AKP dependem de duas agências do governo, TOKI e KIPTAS – que têm fixados preços altos demais para os turcos médios. O alvo prioritário são as camadas mais altas da classe média – que votam AKP.

O partido AKP é absolutamente obcecado com controlar Istanbul – que elege 85 dos 550 membros do Parlamento (Ancara, a capital, elege apenas 31). Erdogan e seus correligionários estão no governo da Grande Istambul desde 1994 (nessa época, como membros do Partido Refah). Erdogan começou a conquistar a Turquia a partir da capital otomana.

Os megaprojetos apadrinhados pelo partido AKP foram concebidos como a mais moderna plataforma a partir da qual projetar a Turquia emergente no rumo da pós-globalização, extraindo o máximo do clichê de “uma ponte entre civilizações”. Afinal de contas, 50% das exportações turcas originam-se em Istanbul. O marketing urbano-político desses megaprojetos condicionará a credibilidade global da Turquia entre os suspeitos de sempre, os “investidores internacionais”. Nada tem a ver com coesão social ou respeito à natureza ou ao meio ambiente. Pode-se dizer, sem exagero, que os homens e mulheres que se reúnem nos movimentos da Praça Taksim compreenderam total e perfeitamente as implicações dessa lógica autoritária de desenvolvimento, sedenta de lucros.

E então?! Quem se candidata a “Amigos da Turquia”?

Erdogan pode até ter admitido, contra vontade, que seus policiais exageraram. Mas o máximo que pode fazer é acusar os manifestantes, dizer que estão ligados “ao terror”, que têm “laços obscuros”. O único objetivo dos “saqueadores” seria roubar votos do AKP nas eleições parlamentares de 2015. Jactou-se de que podia pôr nas ruas um milhão de apoiadores seus, para cada 100 mil opositores. Bom… 5 mil opositores já começaram a apedrejar o prédio de seu escritório em Besiktas.

Os protestos já se alastraram para Izmir, Eskisehir, Mugla, Yalova, Antalya, Bolu, Adana e, até, para tradicionais bastiões do AKP, como Ancara, Kayseri e Konya. A multidão nas ruas conta-se às dezenas de milhares. Se se somam os carros que buzinam e as pessoas que batem panelas das janelas e sacadas dos prédios, em apoio aos manifestantes – como se ouve todas as noites em Ancara e Istanbul (até nas pacatas áreas residenciais no lado asiático) –, já se pode falar em centenas de milhares.

Não há dúvidas de que o movimento “Praça Taksim/Occupy Gezi/Abaixo o ditador” já se vai expandindo, cobrindo toda uma parte da Turquia secular que se opõe totalmente ao partido AKP e ao mix encarnado em Erdogan: conservadorismo religioso somado a um neoliberalismo linha duríssima, em governo altamente personalizado/centralizado/autocrático.

Os turcos seculares veem também claramente que Erdogan tenta extrair o máximo de proveito possível de um nebuloso “processo de paz” com o PKK, partido dos curdos, para obter votos suficientes para um referendo constitucional. Esse referendo apagará da Constituição o sistema parlamentar, para ali instalar um sistema presidencial – muito oportuno, dado que o mandato de Erdogan como primeiro-ministro expira em 2015; e ele aspira a continuar ao leme, como presidente.

Erdogan pode ter ainda maioria sólida em toda a Anatolia conservadora. Mas pode, também, estar brincando com fogo. É o homem que, há dois anos, gritava que “Mubarak tem de ouvir seu povo”. E o mesmo deveria fazer também Assad na Síria. Hoje, a maioria dos turcos rejeita completamente o “apoio logístico” que Ancara insiste em oferecer às gangues ‘rebeldes’ na Síria.

A cereja do bolo da ironia, hoje, é Damasco, que já ordenou que Erdogan contenha a violência de sua polícia contra o povo; que ouça “o povo turco”; ou que renuncie.

E agora?! Erdogan implanta uma zona aérea de exclusão sobre Istanbul? (Ou a OTAN implanta uma zona aérea de exclusão sobre Erdogan)? Os “rebeldes” turcos receberão apoio direto de Damasco, de Teerã e do Hezbollah? Damasco convoca uma reunião da ‘comunidade internacional’ e cria os “Amigos da Turquia”? 


[2] Lit. “Leve lá p’ra ponte”. É expressão que parece assumir diferentes significados, conforme o contexto em que apareça. Pode significar “[leve para a ponte] para descartar”, “[leve para a ponte] para jogar no rio”. Todas as sugestões de tradução são bem-vindas. A frase aparece, por exemplo, em “Sex machine”, James Brown, 1971 (ouve-se em http://www.youtube.com/watch?v=Ajzpd-ONOdo) [NTs].

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