Nesta semana, começando com a aguda intervenção de Rodrigo Guerón, a UniNômade traz à discussão artigos sobre a “questão evangélica” na política brasileira, tomando o caso do deputado Marco Feliciano (PSC), que assumiu a presidência da comissão de direitos humanos e minorias da Câmara.
Bandeira LGBT na catedral de Washington, que celebra casamentos gay
Por Rodrigo Guerón, filósofo, professor da UERJ e cineasta. Autor do livro “Da Imagem ao Clichê, do Clichê à Imagem. Deleuze, Cinema e Pensamento”.
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Quem pensa que vai derrotar a violência fascista e escravocrata que atravessa a sociedade brasileira transformando a campanha (importantíssima!) para derrubar o fascista do deputado Feliciano da CDHM numa campanha anti-Lula, anti-Dilma e anti PT está, no mínimo, cometendo um erro político sério, e não está ajudando em nada nesta campanha.
Que o acordo que o PT fez para compor a base do governo foi decisivo para a eleição do deputado, é verdade. Mas o PSDB, por sua vez, cedeu suas cadeiras na comissão para que os suplentes evangélicos e do PSC votassem no Feliciano. Por outro lado, os deputados do PT da comissão se opuseram à eleição do pastor racista enquanto puderam, depois se retiraram do plenário e o pastor foi eleito graças ao supracitado apoio dos partidos de oposição. O presidente anterior da comissão, Deputado Domingos Dutra, do PT do Maranhão, sempre foi comprometido com a luta dos direitos humanos. Também a deputada Luisa Erundina, do PSB, que é da base aliada, resistiu bravamente à eleição de Feliciano. Noves fora, o silêncio das secretarias de direitos humanos, da igualdade racial, e mesmo da dos direitos das mulheres da presidência da república, sobre este episódio, são inadmissíveis.
Mas as coisas não são mesmo nada simples. Por exemplo, um certo fundamentalismo ecológico, uma idéia de natureza pura e imaculada que vai caracterizando cada vez mais o discurso em torno da Marina Silva e de seu novo “partido”, também é sintoma da transversalidade dos neoconservadorismos que atravessam a sociedade brasileira. É espantoso que o tal “novo partido” da “nova política” já comece pulando fora da luta pelos direitos dos homossexuais, da união homoafetiva, e que sua “guru” suprema seja contra as pesquisas de célula tronco, afirmando a sua fidelidade à bíblia protestante enquanto pretende ocupar um cargo no Estado. E o que dizer então de uma aparentemente intransigente defesa dos povos indígenas ao mesmo tempo que xamãs e pajés são perseguidos de forma inquisitorial em nome da “obra de Deus”?
Seria preciso escrever um grande artigo, com análises minuciosas, para entender o fascismo – com fortes tons de escravagismo – na maneira como este atravessa hoje a sociedade brasileira. Trata-se de um fenômeno que acontece não só hierarquicamente, de cima para baixo, como transversalmente. É uma história que vem de longe, mas o capítulo mais recente tem a ver com o ódio anti-Lula identificado como um ódio aos pobres, isto é, uma reação odienta contra as pessoas que puderam se deslocar socialmente, ocupar novos espaços e territórios na sociedade, se relacionar com os que se sentiam “naturalmente” superiores a elas com nova força e dignidade, aproveitando-se e/ou se aliando às brechas abertas pelas políticas sociais/econômicas do governo Lula.
Mas atenção, senhores, muita atenção; é igualmente fascista e escravocrata cair na equação: evangélicos = pobres = ignorantes. Já a vi rondar, e até mesmo se explicitar, em alguns discursos de “indignados” contra a eleição do Feliciano. Se for esse o discurso feito contra o fascismo das ambições teocráticas de alguns políticos-pastores, e da captura que mobiliza de forma molecular o medo que os pobres têm da permissividade violenta do poder que sempre os atingiu – além do medo da volta à pobreza ¬–, os pastores vão terminar por nos agradecer pelos novos adeptos que os ajudaremos a arregimentar.
Acredito que, ao contrário, grande parte da potência anti-fascista está em geral em tudo que horroriza grande parte da nossa pequena e grande burguesia em seu aberto ou disfarçado sentimento anti-pobre (ou anti ex-pobre). Falo de uma criatividade que se levanta nas favelas e periferias, o que se inventa como novas estéticas e novos modos de vida – portanto novas possibilidades econômicas –, o que está surgindo de uma universidade onde uma nova produção científica, intelectual e profissional começa a ser feita por quem nunca ali tinha estado; enfim, todo um potencial desejo do novo que está nas mil cores e formas de expressão que nascem de um empoderamento dos pobres que tem a ver, em geral, com o processo de monetarização pelo qual eles passaram.
E quando falo de “monetarização”, falo de dinheiro como potência para além do capital, porque dinheiro não é sinônimo de “capital”; é preciso entender bem isso, antes de fazer o próximo discurso moralista anti-consumo “padrão Bauman” de qualidade. O problema não é o consumo em si mesmo, mas a separação entre o consumo e a produção operada pelo capitalismo (como nos ensinou um certo filósofo barbudo). É esta separação que faz com que todo o nosso desejo seja despejado na aquisição dos bens: a aquisição dos produtos-subjetividades prontos nas prateleiras do capital. O desejo – e o próprio consumo – é assim esvaziado de sua dimensão produtiva, inventiva.
A propósito, de controle do consumo como parte de uma estratégia de controle da produção (da produção desejante), quem entende bem são os fundamentalistas evangélicos. Se é para fazer pura e simplesmente um discurso anti-consumo, se achando de esquerda a anti-capitalista, é melhor passar a frequentar logo de uma vez o culto neo-pentecostal mais próximo de sua casa. Eles são exemplares do anti-consumo que o capitalismo precisa engendrar no coração do consumo do qual ele mesmo depende. Em outros termos: o capitalismo é a única forma de organização social que nasce, e não pode jamais prescindir, de um processo de liberação dos fluxos do desejo, mas é esta liberação mesma que mais o ameaça e que ele precisa sempre tentar reverter. A obediência a uma lei rigorosa como condição para a aquisição e a manutenção da prosperidade, a interdição a qualquer desvio deste modo de vida, e portanto a manutenção de um nicho de consumo e de um nicho econômico muito bem delimitado, é típico destes grupos neo-protestantes.
O que no fundo assombra os pobres é a volta da pobreza e da violência de classe que está na sua memória e vive por rondar o seu presente, do comentário da madame ao zapear da TV. A chantagem emocional da religião acontece quando ela se instala nesse medo e o potencializa ao extremo. Além disso, essas igrejas fundamentalistas têm sido muito mais eficientes que as esquerdas ao capturarem o sentimento de classe como ele se dá no capitalismo contemporâneo. Não tanto trabalhadores x burgueses mas, sobretudo, pobre x rico, numa disputa social que é uma disputa entre modos de vida. O “rico” é assim articulado com a permissividade da riqueza, agente de um aparente desejo descontrolado que é na verdade o temor do desejo – da potência – do outro: temor que vira a própria violência do poder. A obediência sistemática da lei cuida de oferecer como compensação uma dignidade estável para os novos ex-pobres: o único e reto caminho baseado num único e reto modo de vida.
E assim a impressionante potência criativa que se libera de um processo de ascensão social é paralisada por um sentimento de dívida, e o Deus neoevangélico se torna ao mesmo tempo um severo juiz e um rigoroso banqueiro de seus fieis devedores. Mas admitamos, senhores, é preciso compreender o quanto pode parecer melhor e “seguro” para este ex-pobre o terno limpo, ascético e digno, e a família padrão, hierarquizada e socialmente aceita, das comunidades evangélicas. O que ele tinha antes? A posição que o catolicismo o relegava: um pedinte aos farrapos na porta da igreja, um dependente da caridade para si e sua família: a piedade dos ricos que não parava de naturalizar, a partir da religião, o lugar social inferior dos pobres.
A caridade cristã do tipo católica, no Brasil – mesmo que possamos abrir um grande parênteses para a teologia da libertação dos anos 1970, início dos 80 – foi, na maioria das vezes, nada mais que a outra face de uma violência escravocrata que perdurou por dentro de nosso estranho capitalismo oligárquico. Mas, na verdade, tudo isso é muito menos diferente de um capitalismo “convencional” do que parece. Mesmo que tantas vezes não sejamos classicamente “burgueses”, com o modo de vida que se espera das elites e das camadas médias de uma sociedade industrial, num certo sentido o capitalismo é assim mesmo. Frequentemente tem-se a impressão de que, nele, tudo volta, e assim vão aparecendo neo-arcaísmos por todos os lados, como nos simulacros de velhas irmandades medievais que viraram típicas organizações fascistas na Europa do século passado. Até mesmo o fundamentalismo islâmico mais ressentido e moralista, ou o sionismo mais arcaico e segregacionista, são, no fundo, fenômenos típicos do capitalismo contemporâneo: um lugar onde as velhas batalhas por “mercado” que geraram as sanguinárias guerras do século XX – as mais sanguinárias das guerras das mais civilizadas das civilizações – transformaram-se em batalhas de “modos de vida” contra os “perigos” das linhas de fuga que ameaçam os territórios muito bem delimitados dos desejos, ou seja, os tais “mercados”.
Aceito, e acho mesmo necessária, a grande frente ampla que vai se formando, meio que espontaneamente, contra o recrudescimento autoritário e fascista, para reagir, não só à eleição do Feliciano, mas a tudo que ela significa. Surpreendi-me disposto até a marchar ao lado da Xuxa! Mas não pensem que vão reverter este avanço sinistro sem os milhões de pobres e ex-pobres que têm votado e apoiado convictamente os governos de Lula e Dilma. Pode parecer paradoxal, mas se estes podem ser, em certos aspectos, os mais fáceis de serem capturados por esta onda de fascismo, são eles também a maior potência anti-fascista, anti-ódio e anti-intolerância da sociedade brasileira, exatamente porque são a possibilidade de diversidade e de novos modos de vida.A própria maneira como várias vezes não embarcaram na campanha violenta e sórdida anti-Lula da oposição concentrada nas grandes corporações de comunicação, mantendo convictamente suas posições políticas, já é uma prova disso.
O anti-fascismo está no funk, na dança do passinho, no hip hop, nos coletivos políticos-artísticos-produtivo
Não vai dar para derrubar Feliciano só com a minguada bancada de deputados do Psol e seus eleitores, ou os eleitores não evangélicos da Marina (o que já reduz seu eleitorado consideravelmente). Não é a defesa de uma pureza transcendente que vai nos livrar desta sinistra versão de fascismo teocrático que nos ronda; mas é fazendo política, inclusive negociando com uma série de deputados e políticos que podem ser nossos aliados. E só o serão se maquiavelicamente (no melhor sentido do termo) demonstrarmos força. Não nos esqueçamos que o discurso de uma grande demonização do “mundo”, que inclui aí os “políticos todos corruptos”, a produção do “apocalipse now” e da distinção dos puros e bons em meio à degeneração e ao caos, é exatamente o que nutre a violência do fascismo. Na perigosa dança entre fascismo e anti-fascismo é preciso, pois, ficar esperto e se movimentar sempre, para não se surpreender, de uma hora para outra, do lado errado.