Por Hugo Albuquerque, blogueiro do Descurvo, UniGaroa
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Redação da fala ao colóquio QUEREMOS, 14/11/2014.
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A questão da institucionalidade está posta de forma incontornável no turbulento Brasil de hoje. No entanto, muitas dúvidas e sombras envolvem a questão da institucionalidade — e o próprio conceito de instituição –, o que exige que se faça uma delimitação prévia do seu significado; de tal forma, a título eminente prático, podemos dizer que “instituição” é uma zona de consistência mínima para suportar, de alguma forma, um certo fluxo de atividades coletivas.
A recorrente identificação de “instituição” [política] com órgão de Estado é um equívoco óbvio, embora perfeitamente explicável. O estatismo precisa disso. A instituição política não é, necessariamente, um aparelho ou dispositivo estatal: existem aquelas que são, sem dúvida alguma, contra (e além d)o Estado, as quais servem para abrigar processos emancipadores; são as instituições do comum.
Feita essa colocação prévia, é preciso pensar, à luz da paradoxal última eleição, a respeito de um processo muito curioso que ocorre no Brasil desde o último ciclo de confronto contra a ditadura: justamente no momento em que a ditadura, com o esmagamento da reivindicação política e a vitória sobre a luta armada, parecia ter conseguido sua vitória absoluta, ela foi derrotada com manifestações multitudinárias potentíssimas.
Primeiro foi a cerimônia ecumênica da Praça da Sé, em cima da comoção pelo martírio de Vlado Herzog, depois a luta por Anistia, pelas Diretas, pela eleição de Tancredo no colégio eleitoral, pela nova constituinte, contra Collor, contra o neoliberalismo, pela eleição de Lula etc etc.
Trata-se de um processo constituinte que, em poucos anos, transformou a “revolução de 31 de Março de 1964” no golpe militar de 1º de Abri de 1964. Alterou consensos, moveu montanhas, teve vitórias relativas, mas perdeu várias vezes — como nas Diretas ou na eleição de Collor — e nem por isso deixou de se levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima.
O governo Lula é um marco no sentido em que, pela primeira vez, esse processo constituinte criou ele próprio num espaço que se não era seu por completo, ao menos ele conseguia estar dentro (mesmo que para ser, eventualmente, contra). E as mudanças que Lula trouxe, sobretudo no campo do regime desejante, ao fazer as minorias se sentirem autorizadas a desejar produziu um giro antropológico: a ascensão selvagem da classe sem nome, a classe inominável.
E essa multidão de pobres, negros, mulheres, índios desafiou e desafia o Brasil clássico, o republicanismo positivista, ele próprio colonialista de terras, florestas e corpos na sua pretensa “modernidade”.
Com Dilma, como é sabido, a ideia de que era preciso “arrumar” esse exuberante caos numa sociedade inclusiva mas calcada em modelos ideais se tornou chave. Na sociedade sonhada por Dilma, a classe média emergia como grande sujeito e, também, projeto político e social. Era preciso fazer menos política, gerir a economia e a energia, colocar o resto no seu papel secundário.
O desenvolvimentismo, no seu voluntarismo, involuntariamente causou um déficit de política enquanto havia um superávit afetivo. Ele se chocou com a nova vida desejante que era gestada desde 2002: como no mito do Frankenstein, o Dr. se chocou com sua criatura. Eis que temos Junho de 2013 e suas consequências avassaladoras, inclusive na crise mais aguda do governo petista com a multidão.
No ápice da efetivação das mudanças sociais imaginadas nos anos 1970, o processo constituinte de direitos encontrou sua maior encruzilhada. Mais ainda quando a eleição se aproximava, com a Copa, a (re)união dos dispositivos de segurança de Estado, a prisão de ativistas — e o avanço de uma direita social como há tempos não se via.
Se tínhamos o melhor presente, passamos a ter um futuro pior que foi se apresentando, se tornando aqui-agora.
E passado tudo, foi um paradoxo, daqueles bem irônicos, que Dilma Rousseff tenha vencido a eleição presidencial e sido mantida na presidência por um eleitorado francamente mudancista. Mas este sequer é o maior paradoxo do processo em curso.
O mistério de uma gente que optou pela continuidade sem ter deixado de desejar a mudança é o ponto de partida desta reflexão. Embora alheias ao processo constituinte que atravessa o Brasil há décadas, as últimas eleições não deixaram, contudo, de ser afetadas por ele, de modo colateral.
Ainda que PT e PSDB não desejem, nem sejam, os avatares propriamente ditos das aspirações da sociedade brasileira, eles terminam tensionados pelas pretensões e energias dos blocos sociais dos quais dependem.
A força constituinte que se apoiou, curiosamente, da campanha de Dilma está para o PT como as forças favoráveis à intervenção militar, em retaliação às urnas, estão para Aécio e o PSDB. Ainda que Dilma seja menos transformadora que seus apoiadores, e Aécio menos golpista que os seus, tal fenômeno ilustra o resultado da porosidade relativa das duas principais forças programático-partidárias do Brasil.
O PT flerta com o processo constituinte — se distanciando dessa aliança que, embora ocasional, foi recorrente sobretudo em Lula — enquanto o PSDB com o faz com o poder tradicional, com lado arcaico e profundo abaixo do modernismo brasileiro. A relação das duas forças partidárias com esses processos que se desenvolvem em paralelo nas profundezas do Brasil é, pois, o mistério em jogo.
Nos finalmentes, Dilma venceu, mas não teve a vitória da forma que desejava. E não venceu por uma operação de propaganda política, por mais que queira imaginar isso: a multidão, amoral e pragmática, jogou pela conservação de seus direitos e tomou sua decisão em cima disso. Pois o mais simples dos comuns sabe que tipo de democracia é esta.
O eleitores de Dilma, hoje, são seus maiores opositores. Se ela capitular à política de austeridade que ela acusava os adversários, estará politicamente liquidada. Mas o que interessa na política brasileira está bem além das disputas partidárias, mas no jogo político real que se dá além dos aparelhos.
Se há, de um lado, uma aspiração legítima pelo direito de existir socialmente por essa classe sem nome, por outro, o aparato do poder pensa numa restauração violenta, quem sabe na forma de uma economia de crise — a qual visa menos os benefícios objetivos e mais a liberação do desejo.
A questão que emerge é que embora as contingências históricas obriguem que tal processo se ampare em instrumentos precários, o desafio institucional significa, hoje, a criação de zonas de consistência próprias, de instituições do comum que sirvam, pela primeira vez, como abrigos próprios a esse processo constituinte: na sua intenção e na sua natureza.
Não basta o mero avançar do processo, como fio desencapado, sem instituições que lhe deem vazão propositiva, mas também não é possível imaginar que instituições de Estado ou com forma Estado venham lhe servir adequadamente.
O problema não é termos uma democracia de Estado, isto é, termos arrancado dispositivos do sistema a ponto de termos uma liberdade relativa, mas não a ponto de conseguirmos uma liberdade efetiva, o ponto é nos conformarmos com isso. É preciso — e possível! — ir além.
Qualquer decisão dessa Democracia de Estado é parcial e atinge efeitos colaterais. Nela, não se encontra uma representação depurada das forças sociais existentes, mas de um força social particular que pretende ser o espaço monopolizador da legitimidade da decisão política. As instituições do comum servem para corporificar a entidade que é o processo constituinte.
O desafio institucional do Brasil contemporâneo significa, pois, construir um mecanismo suficiente para dar sustentação, coesão e apoio para que esse processo constituinte realize sua tarefa maior e mais urgente, trazendo, assim, a política para a imanência social, ampliando as poucas vias existentes e abrindo tantas outras.